Maria Gabriela de Sá
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« em: Janeiro 26, 2021, 21:14:54 » |
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“Então como estás, minha querida?†“Na mesma, tiaâ€, na mesma†Desde que a Covid lhe bateu à porta, nunca mais falámos ao telefone sem este assunto ser aflorado logo de inÃcio, antes mesmo de lhe perguntar pelo marido e pelo filho, bem como dos sucessos deste na escola. Sobretudo das teimosias que tanto a aborrecem. A primeira é o Tiago, um miúdo com doze anos, não gostar da lÃngua portuguesa e muito menos de ler. Diz que os livros que lhe são impingidos são todos demasiado infantis. Harry Potter incluÃdo. Ele que, antes dos quatro anos, já lia os preços dos bens no supermercado e aos seis, ou por volta disso, falava dos cogumelos tratando-os pela designação latina. A mãe, a Cláudia, foi logo infectada na primeira vaga, Março, antes do uso obrigatório da máscara. Ela bem lavava as mãos e desinfectava sobretudo o volante do carro em que ensina os candidatos a conduzir, os puxadores das portas e o tablier, mas não lhe valeu de nada. Um dia, a uma hora em que não era suposto dar-se aquela aula, apareceu-lhe lá uma jovem que nem sequer era sua aluna. Pretendia aproveitar a estadia no Porto para aprender mais um bocado da condução, a fim de um dia poder vir em transporte próprio e sem precisar de esperar pelos horários da camioneta. A Cláudia, tendo disponibilidade horária, foi indigitada pela escola para fazer o gancho. A rapariga vinha de Castro Daire, trazia uma tosse esquisita e disse que, lá pela terra, a Gripe A andava desenfreada a fazer vÃtimas. Passados uns dias, foi a Cláudia a sentir-se esquisita, quase desmaiou, e, embora sem tosse nem febre, tinha perdido o olfacto e o paladar. A seguir, ficou duplamente em casa: por via do confinamento e da doença. Não lhe fizeram o teste atempadamente, e quando, por fim, se lembraram de lho fazer, o resultado foi negativo. Duas vezes. Depois, o surto no lar de idosos em Castro Daire fê-la pensar: “Deus me perdoe, tia se com isto peco, mas eu tenho quase a certeza de que foi a rapariga que mo transmitiuâ€. “É bem provávelâ€. “Eu não sei se foi o destino ou o raio que o parta, mas tinha de sobrar para mim. Os meus colegas bem me disseram depois, “devias ter recusadoâ€. Mas a rapariga também não teve culpaâ€. Hoje, mais de dez meses passados, a Cláudia continua sem paladar e sem olfacto. Já foi ao médico, pelo menos uma vez, e este diz que tanto um como outro podem nunca voltar. A Cláudia tem vindo a habituar-se à nova condição. Mas, diz que tem saudades de cheiros como a maresia, terra molhada e até dos da cozinha, que tantas vezes invadem a casa antecipando uma refeição apetitosa à mesa com todos. Come broa com azeitonas de memória, e lembra-se de quanto aquilo lhe sabia bem. Com resignação, faz o mesmo com todas as coisas, umas tripas à moda do Porto, ou um arroz de favas tenrinhas com uma costeleta de porco, mas, diz ela, está viva graças a Deus e pode continuar a tratar do filho, sentir o amor da famÃlia e o afecto dos amigos. Conseguiu, entretanto, a proeza de distinguir o doce do salgado. E, como pode, lá vai cozinhando para os três quando não tem de ser o marido a fazê-lo por ela estar a trabalhar. Agora, na maioria das vezes, é ele a rectificar, ou ratificar, o sal que ela coloca na comida como colocava antes por ter a mão mais ou menos calhada para a função. Mas corre o risco de um dia, sem querer, fazer uma salmoura intragável, se por acaso a panela tiver de aumentar ou diminuir conforme o número de pessoas que tenha sentado à mesa. Um dia destes fez um tachão de Feijoada à Transmontana. Distribui-a depois por uns amigos e pelos pais. Toda a gente elogiou a feijoada, mas a Cláudia só a pode comer como, de resto, come todas as coisas, com a memória. Não sabe se algum dia voltará a comer com o prazer de outrora, quando azeitonas com broa eram azeitonas com broa e não uma coisa que, para a sua lÃngua e papilas gustativas, é igual a todas as outras, apenas diferente na textura, no toque e sobretudo ao olhar. Às vezes o Tiago brinca com a mãe por causa do cheiro, quando este é desagradável. Há tempos, era ainda verão, ela foi buscar o filho à escola e tiveram o azar de seguir atrás de um camião do lixo que destilava um cheiro nauseabundo. “Ui mãe, que fedor! Não sentes?†“Não filho, nem uma pontinhaâ€. “Não sabes a sorte que tens!†“Achas, filho? “Estou a brincar, mãeâ€. “Quem me dera poder sentir todos os cheiros, Até este, que sei que não é nada agradávelâ€. Na escola de condução em que a Cláudia é instrutora, o seu contágio por uma doença tão terrÃvel é quase tabu. Não que ela seja olhada como uma tuberculosa e segregada, como, sessenta anos atrás, eram tratados os tuberculosos. Mas para os colegas e até alunos, como para muita gente, é quase um castigo alguém ser apanhado nas garras de um vÃrus tão terrÃvel. E se, por acaso, quando ela está a tomar um café ou a beber um sumo, alguém aborda o assunto, fá-lo em segredo como se a doença pertencesse ao domÃnio do paranormal em que é sempre tão difÃcil acreditar. A Cláudia lá vai vivendo a sua realidade. De novo confinada, de cinco sentidos antes da maldita pandemia, ficou apenas com três. E talvez ela passe agora a ver e a ouvir o mundo com outros olhos e outros ouvidos, porque o tacto para abraçar e beijar os que lhe são queridos tê-los-á certamente intactos quando todos e cada um de nós deixarmos de ser a ilha em que que a maldita Covid 19 nos transformou.
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