Maria Gabriela de Sá
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« em: Outubro 15, 2013, 22:08:57 » |
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A Irmã Teresa disse-me que temos uma nova doente. É uma rapariga de 20 anos, vem de Amarante e pelos vistos os pais vão para o Brasil. Levam as outras três filhas. Mais uma que talvez apodreça neste belo edifÃcio, erguido na montanha como um santuário maldito. O ar é puro, cheio de fragrâncias, mas pergunto-me se serão os pinheiros, os abetos e as outras árvores capazes de limpar os pulmões dos que chegam minados por este flagelo. Serão, a clausura a que os submetemos quando chegam a cuspir sangue, a escrupulosa higiene e as vaporizações com aroma a eucalipto suficientes para a curar e restitui-la à famÃlia?
Tão jovem e a vida está a negar-lhe tudo. Talvez até tenha já pensado em ser mãe. Mas se foi assim é mais um projecto adiado, queira Deus que não ad eternum. Acontecerá isso se eu, este sanatório, as abnegadas freiras e todos os que aqui trabalham a não conseguirmos salvar. Aqui morre-se e vive-se com o mesmo oxigénio. A diferença entre uma coisa e outra é um miserável bacilo surgido do nada e propagado nas asas do vento com um anjo maléfico disposto a ceifar vidas sem contemplações.
É difÃcil ser médico a pouco menos de metade do século XXI e ainda mais trabalhar com tuberculosos. É um drama. Quase todos os dias há gente a partir, sem surpresa para mim e para os meus colegas que lhes vemos as sombras acoitadas no peito como necrófagos à espera de carne putrefacta. Quanta compaixão não é precisa para pintar ao doente uma tela que o tenha como tema, curado e com um futuro risonho à frente. Mas, numa grande parte das vezes, a realidade é outra e perante os nossos olhos está o espectro abominável da morte, cujo esqueleto vemos antecipadamente naquelas malfadadas chapas cinzentas reveladas em contraluz num frio consultório onde a impotência se instalou. De vez em quando o desânimo abate-se sobre mim. Não sei por que fiz aquele juramento a Hipócrates se não salvo todas as vidas que queria e as que mereciam ser salvas. Todas, sem excepção. Quantas me fogem por entre os dedos como areia com pressa de voltar à rocha de onde se fragmentou e à natureza que a criou!...
Depois, penso na metáfora da areia e reconforto-me, pensando que talvez quem parte não esteja senão a regressar a casa onde não faltará, nem paz, nem amor, nem compaixão, nos braços de Deus e na sua infinita misericórdia, depois de o mundo lhes ter sido tão cruel. É quando eu próprio mais preciso de Deus. Preciso Dele para me reerguer, continuar e olhar com abnegação os olhos de quem vem até mim pedir a esperança que às vezes não tenho, como se eu fosse o próprio Deus e não tivesse o direito de desiludir… Talvez os olhos desta rapariga, que chegou sem saber se um dia poderá vir a ser mãe.
A jovem já está instalada na ala feminina e a ficha dela diz-me que o pai era ferroviário. Examino-a mal posso, analiso o seu historial clÃnico e tenho um estranho pressentimento. Este não será um caso abençoado dos que, felizmente, ainda me vão acontecendo.
Trajando já a roupa que distingue os doentes das outras pessoas, conversamos os dois. Ela dum lado e eu do outro da divisória que separa dois mundos. Apetece-me transpor esta barreira mas não devo fazê-lo, em nome dos outros doentes. Subsiste sempre o receio de que o maldito bacilo decida não embocar na janela de saÃda alojando-se por aà onde eu o possa respirar incautamente.
Ela diz-me que os pais irão para o Brasil e que aà se lhes juntará mal esteja curada. Pergunto-lhe se no lugar morava havia mais alguém doente e responde-me afirmativamente, um rapaz colega do pai, com quem foi forçada a acabar o namoro quando a famÃlia decidiu partir deixando-a aqui. Foi, com toda a certeza, o infeliz a contaminá-la e pergunto-lhe por ele. Obtenho como resposta que não sabe o nome do sanatório onde o jovem está.
Penso então em Camilo e no seu “Amor de Perdiçãoâ€. Também neste caso um perdeu o outro, nos beijos trocados com a inocência de quem julga ter uma vida inteira pela frente.
Fico arrasado enquanto Celeste fala do coro da igreja onde ensaiava para cantar no domingo seguinte na missa. A irmã Doroteia, que está com ela, protegida com uma máscara branca, esboça um sorriso de aprovação. “Esta rapariga conhecerá o céuâ€, deve ter pensado. Concordo com mágoa, depois de lhe sentir uma tosse cheia de purga vinda dos pulmões contaminados pelo mal.
Pergunto-lhe se gosta do sanatório, ela diz que o acha muito bonito. Perdido na montanha e com tanta gente parece uma cidade em que nada falta. Só é pena não poder ir onde quiser, por causa das restrições de circulação- diz. Gosta sobretudo das grandes janelas debruçadas na montanha e semelhantes aos claustros do Convento de S. Gonçalo.
Prometo curá-la, sai agradecida… Deus nunca castigará um médico pelas suas mentiras, quantas vezes o único remédio para quem não tem outro… Como a Celeste, um anjo dentro em breve a subir ao céu, se não ficar aqui perdido para sempre como um fantasma triste.
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