NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Maio 27, 2009, 22:04:47 » |
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“O que seria de vocês?†A sua mão enorme apertou o ombro a Mihalis, deixando-lhe uma mancha escarlate junto ao pescoço que também lhe lambuzou os cabelos louros nas pontas. Se sangue dele, se de urso, difÃcil asseverar. “Os meus rapazes tornavam-se soldados no exército de um sodomita e as minhas lindas raparigas seriam mulheres de soldados desse referido exército. E que dizer da minha mulher, amada e acarinhada, que peço aos Deuses nunca venha a ser viúva dum vulgar garimpeiro?â€
“Há destinos piores†disse a mulher, passando a agulha pela carne do marido.
“Mas a haver melhores que esses, até aqui na floresta funda entre Morgo e Todor, queres-me repreender por ter lutado por eles?†Savedris virou a cabeça para olhar a mulher.
“Visto que também não tenho desejo algum de viuvez†disse ela, “sou forçada a usar dalguma repreensão, homem. Não vires a cabeça desse modo quando estou a coser o teu pescoço ou posso acabar o que o urso te deixou a meio.â€
“Lutou, pai?†Perguntou Ciamis, desse modo chamando a atenção do pai de volta ao relato. “Lutou com o urso?â€
“Lutei. Sabia que o urso se ia pôr de pé. Tinha de alçar as patas da frente para se chegar a mim, que estava por cima das quedas baixas, junto ao tronco. Quando o fez, assestei-lhe o meu golpe mais certeiro no pescoço.†Savedris exemplificou aos filhos o movimento do braço que agora segurava no jarro de hidromel quase vazio. “Ele sacudiu-se com um urro, levou-me a picareta da mão mas não conseguiu soltá-la do cachaço. O primeiro golpe foi fundo e julgo que eu também não seria capaz de a reaver para um segundo.â€
“Aço Istústio†lembrou Elenis.
“Saiu-me barato†concordou o pai, “à vista das coisas.â€
“E depois?â€
“Depois, filho, se o sangue do urso jorrou primeiramente, o meu jorrou seguidamente, que é como quem diz, logo a seguir. Acertou-me o cabrão, com a pata, e as garras furaram-me as peles, assim de forma como está a vossa mãe agora a fazer-me com a sua agulha, mas com menor pendor para a sevÃcia.â€
“E assim que terminar de o fazer a ti, fá-lo-ei à s tuas peles†disse ela. “Não sei qual de entre vocês precisa de maior remendo, mas adivinho qual se queixa maisâ€
“Peles†prosseguiu o pai, “a minha e as que trago vestidas, verrumadas aqui ao longo do peito pelo urso que a esta altura se zangou. Um pouco acima com aquela sua patorra e estaria a contar-vos esta história pelo olho do cu.â€
“Com a dificuldade que lhe é conhecida†disse Ciamis sorrindo, “no que toca a expressar-se correctamente por essa sua extremidade.â€
“Coro-te já as bochechas, umas e outras, se me voltas a falar assim, rapariga†disse o pai com um sorriso raro. Os filhos riram-se também e até Ranis piscou o olho a Ciamis, sorridente. Savedris bebeu do jarro, regando as barbas longas para o que faltava contar. “Ainda estava com o machado, que por pouco não me escorregou da mão quando o urso cresceu para mim e me acertou como já contei. Consegui atirar-lhe um bote mas acertei-lhe com a face da lâmina, não com o gume, porque mal conseguia ter o cabo a direito na mão. Mesmo assim, queixava-me mais se não lhe tivesse dado no focinho. Ele sentiu a pancada, o cabrão do urso.â€
“Cabrão do urso†disse Karis, e pôs a mão na boca.
“Sim†disse o pai à filha mais pequena, “o cabrão tentou outra vez apanhar-me e ao mesmo tempo subir o rochedo das quedas baixas para me chegar melhor. A corrente empurrava-o e as pedras não são poiso firme, nem para pata de urso nem para a de homem, mas ele estava a pontos de ficar à minha altura e eu a pontos de me tornar merda de urso.â€
“Que fez o pai?†disse Milhalis.
“Mijei um pouco mais as calças†respondeu ele, “ou talvez o sangue me tivesse escorrido por baixo das peles até onde as pernas me nascem do corpo e fosse o seu calor que eu senti. Não me perdi a pensar no que seria o quê, congeminei antes um plano.â€
“Um plano?†disse Elenis
“Um desses, sim, capaz de ser o meu último se fosse o caso de não prestar para nada. E que passava por me empoleirar no tronco caÃdo antes que o urso trepasse pelas quedas acima no que seria o ponto final desta história, comigo morto e convosco, meus filhos, em lágrimas. Resta saber o que estaria a vossa mãe a fazer.â€
“Talvez a cerzir algo que se mexesse menos que tu, homem.â€
“Feres-me com as tuas palavras, não só com as tuas agulhas.â€
“Se for para o teu bem…†disse ela. “Conta lá o resto que essa ferida no peito precisa de ti deitado para que seja vista.â€
“Portanto, quando atirei o corpo para trás as costas deram ao tronco deitado e joguei logo a primeira perna ao focinho do cabrão do urso sempre sabendo que se ele abrisse a boca no instante em que o estava a fazer me comia o pé, bota de garimpar e tudo. Ainda pensei que talvez o urso perdesse o equilÃbrio nas pernas por causa da minha patada, mas a sorte que tive já foi em razoável medida e não me deu para esmolar por mais. Foi como pontapear uma rocha, uma coisa muito parva de se fazer, mas que naquela situação fazia todo o sentido. Estivessem lá para ver e logo viam. Com o impulso da minha perna na cara dele, veio-me o corpo para trás, como de acordo com o plano, e eu dei um cambaluz por cima da árvore caÃda. A minha ideia era cair direito do outro lado, mas o urso, que não me comeu a bota com o pé lá dentro, foi então que aproveitou o ensejo para me abrir nas costas tantos lenhos quantas unhas tinha.â€
“Também tens feridas nas costas, homem?â€
“Tenho, mas dessas mantém-te arredada com as tuas pinças†disse Savedris. Olhou à vez para Elenis e Mihalis. “Não se dá as costas a mulher alguma, muito menos se ela for de Ãndole costureira.â€
“Deste-as ao urso†lembrou Ranis.
“E quase morri por isso, o que só vem demonstrar o rigor do meu pensar. Deixa-me acabar para que possas tu também acabar a tortura à minha pessoa.â€
“Acaba, marido.â€
“Quando o urso, cabrão que estava a ser naquela circunstância, me arranhou as costas, as unhacas dele desenvolveram um apego sinistro à s minhas peles, à s que uso por cima do pêlo, e fiquei preso, pendurado do outro lado do tronco tombado. Preso a uma das patas e à mercê da outra passando-me vezes sem conta sobre a cabeça, por pouco não me reduzindo esta narrativa à s poucas palavras que eu seja porventura capaz de proferir pela extremidade há pouco referida, e nem uma palavra sobre a eloquência ou falta dela quero ouvir de qualquer uma das vossas bocas. Sob risco de vos reduzir eu à mesma condição.â€
Dos filhos, nem pio. Esgotado o hidromel, chegava-se também ao fim da história.
“Por sorte, o urso não me atingiu.â€
“És de sortes.â€
“Diz isso sem essa malÃcia toda, Ranis, e talvez me sinta feliz por sê-lo.â€
“Digo da maneira que digo, não quero dizer nada com isso, homem.â€
“Foi pela sorte, esta tendo-me em melhor conta que a vossa mãe me parece ter, que o cabrão peludo não me atingiu e ainda por cima as minhas peles se libertaram, por sorte, das garras deles e tanto eu como o urso caÃmos, cada qual por seu lado, atrevo-me a dizer, por efeitos da tal sorte. Eu acima das quedas baixas, ele outra vez lá em baixo. Mas com ódios de voltar a subir. A desavença entre mim e o urso arrastava-se para além do razoável e se fosse uma questão de se ver quem se esvaÃa primeiro, é certo e sabido que o urso tem mais para dar que um homem. Sempre com o olho em não vir, posteriormente a ser comido, ser cagado pelo urso, surgiu-se-me terminar a dança, e a forma como fazê-lo.â€
“De sortes e para mais esperto†tornou a mulher. “Eis o homem que amo.â€
“Eis-me aqui, sem dúvida†disse ele, “devido à minha esperteza e à s sortes que nunca até este dia tive naquele rio.â€
“Bendito rio†disse Karis.
“Tanto mais quanto molhado é†concordou o pai. “O urso viu-me assomar a cabeça ao cimo tronco mas lá de baixo não me chegava a unha. Urrou e fez-se quedas acima, patinhando. Tinha o flanco vermelho do sangue que esguichava em escarradelas da ferida da picareta, o aço Istústio não despega uma vez fincado fundo naquele cachaço ou no que quer que seja que o finquemos. Ainda havia o machado. Tinha-o perdido quando dei a cambalhota por cima do tronco, pensei que tivesse ido no rio. Mas a lâmina é pesada e ele ali estava, sob a árvore, preso nas rochas debaixo da corrente. Joguei a mão a ele, e depois segurei-o com as duas.â€
“É um bom machado†disse Mihalis.
“O urso não estava bem das pernas mas estava quase em cima de mim. O que fiz a seguir não foi corajoso. Foi glorioso!†Savedris levantou-se de repente da cadeira erguendo o jarro com ambas as mãos acima da cabeça aos sarrafos do telhado, assustando as meninas e arreliando a mulher que ainda o estava a coser. Os rapazes ficaram suspensos no gesto do pai quando este subiu para cima da cadeira num acto de precário balanço que mimetizava o que tinha acontecido. “Trepei ao tronco com o machado assim ao alto e antes que o urso me pudesse cortar ao meio com as patas, desci-lho sobre a cabeça com as forças que me restavam e o ódio que o medo naquela vicissitude me consagrou.â€
O pai arremeteu o jarro que se estilhaçou contra a cabeça decepada e aberta do urso. Cacos soltaram-se para todo o lado. Um deles, pelo menos, deu a Savedris uma nova ferida com que entreter Ranis e as suas agulhas, um corte profundo no pulso. Não lhe deu importância. Sorria e enchia o peito de ar.
“E foi assim, e não de outra forma, que esta cabeça de urso veio dar à nossa mesa.â€
Karis largou num aplauso infantil que contagiou a irmã e, estes num tom mais solene, os irmãos. A mãe atirou as agulhas de volta à cesta e começou a apanhar os cacos do jarro, não fosse algum dos filhos magoar-se neles. Exibiu o que restava da pega da peça perdida.
“Espero que o urso tenha valido o nosso último hidromel e o nosso melhor jarro.â€
“É minha opinião que sim†disse o marido, "valeu por ambas as coisas."
“E não lhe podias ter cortado um bocado que pudesse cozinhar-se? Esta cabeça, um pouco à semelhança da tua, é demasiado avantajada para as minhas panelas.â€
“É um troféu, mulher, não é comida.â€
“Mesmo assim, esta noite os nossos filhos verão ser-lhes servida carne de troféu, se é que esta cabeçorra tem alguma para uma sopa ou um guisado. E tu vais tirar partido do nosso leito, antes que afocinhes para aà e me precipites o tal estado de viuvez de que há pouco falavas não me desejar.†A mãe virou-se para os filhos. “Rapazes, ajudem o vosso pai a fazer por merecer a sorte de ainda estar connosco hoje. Atem-no à cama se a oportunidade se apresentar. Daqui a pouco já lhe vou servir um pouco da lÃngua deste urso, para que ele possa dar ao cabrão do bicho o mesmo destino que receava que o cabrão do bicho lhe desse.â€
“Quero crer que será uma justa cagada†disse Savedris, amparado por um filho de cada lado a caminho da cama. “Atrevo-me a dizer, épica!â€
FIM
(ou apenas o começo de algo maior)
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