Nação Valente
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outono
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« em: Janeiro 31, 2020, 19:57:44 » |
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Vivia na casa de dona Gina. Anos setenta, do século passado. A passagem de ano era sempre uma aventura, e dependia dos convites inesperados. Num fim de ano, 1973, o meu amigo Quim chegou e falou: -Zé, queres ir à passagem de ano do cinema Monumental? Vou com a minha macaca e uma amiga, que precisa de aconchego. Bem, não me vejo como um aconchegador, mas que podia dizer ao meu amigo “Bora lá Quimâ€, pois não vou deixar essa tal macaca desamparada. Solidariedade sempre. Enfiei-me nuns trapos costurados por costureiros de pronto a vestir, e lá fomos ao encontro das nossas acompanhantes. A moça amiga da sua amiga, de nome Maria, já andava na idade madura. Palavra puxa palavra, fiquei a saber que andava perto da ternura dos quarenta, que era divorciada, e que estava viúva de afectos. Fomos para ali de corpo e alma para nos divertirmos, e foi o que fizemos. Comemos, bebemos, e dançamos ao som de músicas de orquestra especializada em bailes. A Maria teve a pachorra de me arrastar noite dentro, carregando-me e aos meus pés de chumbo. Rolamos e transpiramos. Quando o cansaço pesava, a música foi baixando de ritmo, até chegar à fase de constituir famÃlia. O corpo roliço da Maria deixou-se envolver, e entregou-se de corpo e alma. Acabou por sair afogueada para para tirar soutien que a estava a incomodar. Roupa em excesso só atrapalha. Voltou mais leve e continuamos a redopiar noite adentro. Quando chegaram os ciganos que tomaram conta do palco (creio que era tradição) e fizeram a festa com as suas danças e cantares, decidimos que estava na altura de nos pormos na alheta. SaÃmos da festa e regressamos a casa, cada um à sua, naturalmente. Mas mais tarde vim a saber que aquela dança era para continuar. Tempos passados, recebi outro convite do Quim para ir passar um fim-de-semana à Ericeira, a convite da Maria, que tinha lá um apartamento com vista para o mar. O cheiro e o som do mar convenceram-me. As virtudes culinárias das moças motivaram-me. Cabia-me levar no meu carro os viajantes, numa altura em que ter viatura própria não era comum, e porque eu a tinha, lá teria de os transportar talvez como uma espécie de uber avant la lettre. TerÃamos ido e regressado, depois de disfrutar das belezas naturais. Uma história sem história como tantas outras, se a Dona Gina, não se tivesse metido com os seus comentários verrinosos. Dona Gina tratava-nos como “filhos adoptivosâ€, mas não se coibia de manifestar opinião sobre os nossos encontros e desencontros. Em relação a este fim-de-semana começou a meter o bedelho, assim que foi informada. “Então menino josé, quando é marcado o casamento?†Foi um dos mimos com que me presenteou. Podia ter feito ouvidos de mercador, mas não fiz. Tive a percepção que se a dona Gina metia a sua lÃngua afiada ao barulho, as coisas podiam dar para o torto. Acobardei-me. Quem não teve o seu dia de fraqueza. Pensei, repensei e decidi sair fora. O problema era como dar o dito por não dito. Estávamos no perÃodo de restrições de combustÃvel, em que o abastecimento era condicionado por letras da matrÃcula. Nem mais nem menos. Logo avisei o Quim que não podia ir porque não tinha gasolina suficiente para a viagem. Pensei que o assunto estava arrumado, e dormi descansado. Mas eis que o Quim me aborda de novo a dizer que não havia problema porque o combustÃvel estava assegurado. Raio, pensei. Neste paÃs há sempre um fora da lei. Mas já tinha decidido e desculpei-me com um pneu furado, sem hipótese de substituição. O Quim acabou por encontrar uma solução. Substitui-me pelo seu irmão que estava em vias de contrair matrimónio. Ele e o irmão, o Tó, arranjaram alternativa de transporte e foram curtir a brisa marÃtima. Foram e voltaram são e salvos, como se previa. Sãos e salvos excepto na lÃngua da dona Gina. Estava a tomar o pequeno-almoço, quando ela se aproximou no seu robe colorido. -Bom dia menino José. Já sabe o que se passou na Ericeira? -Como posso saber, dona Gina, se não estava lá? - O Tó teve uma nega… -Uma nega? A Maria negou o quê? -Uma nega de si próprio. Quer dizer, não conseguiu consolar a moça. -Como assim? -Ora como assim? Acha que foi para pau de cabeleira? -Estou com o raciocÃnio um pouco lento, dona Gina. Ainda não estou bem acordado, mas acho que já percebi. Acontece, e nem é da minha conta. -Foi castigo, jurava. Deixar uma menina tão linda à beira do altar, é coisa que se faça…Bem fez o menino… No raio de acção de dona Gina não deve ter havido cão ou gato que não soubesse, mas era o que esperava. Não me interessou o que aconteceu ao Tó, quem vai à guerra dá e leva, perde ou ganha. O Tó casou com a sua prometida, e a vida continuou. Fiquei foi com pena da Maria, que tanto investiu naquele fim-de-semana, depois do aquecimento do baile de passagem de ano. O que lá vai, lá vai, mas ainda hoje me arrependo, de ter tido medo da “quadrilhice†da dona Gina e aprendi que nunca se de deve deixar a meio, uma coisa começada. Fazer o treino e entregar o carro na prova a ruim condutor é o que dá. O Monumental já nem existe, mas quem sabe se noutra reencarnação, corrijo o erro.
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