Araci
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Ainda não sei o que sou, mas sei quem eu sou
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« em: Março 01, 2015, 08:03:46 » |
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O meu nome é Madalena, e dei-me conta de que perdi o sentido da vida num dia normal. Era o começar de uma manhã de um dia ainda frio de Primavera. Eu tinha entrado num comboio, como sempre fazia todos os dias da semana, mas naquela manhã ao sentar-me do lado esquerdo, ( quem é inteligente e gosta de beleza tenta sempre sentar-se ali pois já sabe que durante grande parte da viagem a locomotiva passa por dunas selvagens de onde se consegue avistar o oceano, que ainda consegue ser mais encantador em dias tempestuosos de Inverno,) tudo se desfez.
Este fenómeno, que foi como se tivesse ficado sem chão, iniciou-se dentro de mim primeiro sorrateira e levemente como o vento de uma brisa marÃtima a bater-me na cara, até seria agradável, mas seguida da brisa veio um vento mais forte que trouxe consigo a areia que esvoaçava pelo ar e batia em mim com tanta força que me fazia fechar os olhos e apertá-los bem, e mesmo sendo finos os grãos eles doÃam, e eu sentira-me enganada subitamente por um vento leve que supunha ser agradável, nisto tudo, tentara abrir os olhos e ver onde estava realmente, mas já nem apenas o chão tinha desaparecido como as caras das pessoas que se encontravam ao meu lado começaram a ficar distorcidas, as próprias paredes da carruagem eram penetráveis, estavam diluÃdas e alguns pedaços formavam bolhas enormes que esvoaçavam pelo ar, assim como as palavras inúteis dos outros passageiros, os risos e até roncos de quem não acordara eram já sons diluÃdos entre o barulho do comboio, tudo pareceu-me de repente uma pintura surrealista ainda mais fabulosa que muitas de DalÃ. Assim se sentia de repente o perder o sentido da vida, penso que aconteceu exactamente ao mirar o mar com muita intensidade, mais do que habitual, e ao ver projectado no vidro da janela do comboio o meu rosto transparente. E então aà desconheci aquela cara que via, e deixei de me conhecer, não reconhecia mais aqueles olhos castanhos, aquele cabelo preto forte que se espalhava até ao fundo das costas e do qual toda a gente parecia invejar.
Em jovem estudara todos estes conceitos, o professor Manuel de filosofia falava apaixonadamente deles, do transcendente, do colocarmos em questão tudo o que nos rodeia, do famoso Jean Paul Sartre que me perturbava com os seus olhos revirados, e da sua mulher Simone que também se encontrava numa fotografia a meio do livro. Eu era uma boa aluna, era sim, mas até então só tinha assimilado os conceitos apenas na razão, estudava e assimilava, mas a vida era segura até aÃ, tudo não passava de teoria. Naquela manhã senti profundamente o que era finalmente isso de que ele tanto nos tentava em vão explicar, se não o sentirmos não há razão que nos valha.
E então por breves momentos flutuei pelo comboio, contemplando as caras tristes de toda a gente. E tive um sonho, um sonho de uma menina vestida de branco a correr pela praia a chamar pela sua mãe, não sei quem ela era, não sabia o que era coisa alguma na verdade. O sentimento foi tão intenso que ao flutuar senti-me tão leve, de uma leveza tal que quase evaporei e saà em direcção à s nuvens, mas ao mesmo tempo com a súbita vontade de correr de voar até aos que mais amo e contar-lhes a minha revelação: estamos todos sem chão, sem paredes e sem tecto, e as paredes são penetráveis, e a segurança é apenas uma palavra que deram aos filhos enquanto a sua mãe os abraça, agora isso não existe, e a estrada onde fazes o teu caminho foi feita em cima de areias movediças. Queria-lhes mostrar como me tinha transformado nessa forma gasosa, mas voar já era mais difÃcil, ter uma direcção e rumar era difÃcil, o vento e o ar deixavam-me à deriva, qual barco sem remos em alto mar. Tinha subitamente que descer e correr até eles, falar-lhes disso, dizer-lhes que estão completamente errados, que passaram a vida toda a fazer tudo mal, que a vida não se pode jamais ensaiar, que o tempo nos escapa como areia nas mãos.
Uma tremenda e assustadora ansiedade começou a apoderar-se de mim, e um peso enorme da responsabilidade de transmitir esta mensagem fez-me sentir como se eu carregasse o mundo à s minhas costas, e se por breves momentos flutuava, o mais certo agora era desfazer-me numa corrente enorme de água e cair como uma cascata pesada no chão do comboio, salpicando com os meus restos em cima de todos os outros humanos. Eu já fiquei debaixo de uma cascata, são milhares de litros a caÃrem a uma velocidade estonteante, são inúmeras forças que caem sobre os teus ombros, não te permitem falar, ver nem quase te mexer, apenas te deixam com o fardo de todo o peso que cai em ti enquanto ouves o ensurdecedor barulho da água a cair nas pedras. Chega até a ser difÃcil de poder sair dali, e os que estão fora olham para ti numa visão meia perturbada, sem saber muito bem onde realmente te encontras, e tu de lá impossÃvel de os enxergar.
Felizmente consegui voltar ao meu estado fÃsico, milagrosamente o revisor da locomotiva apareceu a pedir o bilhete do maldito aparelho, o que me fez voltar à minha anterior realidade.
Agora passava a odiar comboios, porque a revelação tinha acontecido ali. Até então a minha vida seguia calmamente.
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