NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Novembro 12, 2009, 16:34:18 » |
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O som inquietante de múltiplos mastigares de boca aberta reclamou para si a tarefa de preencher o vácuo deixado no quarto pelo silêncio incómodo que se seguiu à última coisa que Pace tivera o desplante de dizer. Worms estava agitado. Quando a múmia se agitava, agitavam-se também as mandÃbulas que inexoravelmente o iam devorando. A sua exaltação dirigia-se ao homem do chapéu de abas largas que acabara de dizer, muito tranquilamente, que Worms não passava de uma personagem enjeitada perdido numa história mal contada de algum “criador†inapto. Se não fosse pelos trapos imundos que lhe cobriam o rosto, Pace e a companheira poderiam apreciar toda a beleza ferina do seu sorriso de escárnio, e do arreganhar de todos os dentes que nesse sorriso viviam.
- Estou a rir-me por dentro – garantiu Worms numa rosnadela que era novidade para os outros, – das asneiras que está para aà a falar. Estou a rir-me às gargalhadas.
Pace conservou o silêncio. Compreendia que a sua teoria pudesse desinquietar os outros. Por essa razão nunca antes a tinha verbalizado. Era um assunto delicado de abordar com terceiros. Mais apropriado a ser debatido de si para si, na segurança relativa das suas ideias. Era melindroso, aquele assunto dele. Tinha potencial para causar enorme desgosto a quem o ouvisse e virar os outros contra si. Observou Bliss, que estava invulgarmente calada. Olhava-o sem dizer nada. A sua expressão era uma de indecisão. E ressentimento.
- Porquê o seu mundo, Pace? – Perguntou Worms. - Porque é que só o seu mundo é o real e os nossos são as histórias?
- Até onde podem recuar nas vossas lembranças?
- Eu… – Worms coçou a cabeça.
- É mais velho que eu, Worms. Deve ter lembranças de como o… – Pace quase dissera “seu mundoâ€, – …mundo era quando era criança.
- Eu… Esqueci-me muita coisa desde que cheguei. É este lugar, este Motel. Baralha-nos as ideias e…
- Algum de vocês se lembra de ter visto o sol? Como eu vi? Ou de viver num mundo diferente, antes deste? As minhas memórias…
- Não são de fiar – completou Worms. – Você disse que não punha as mãos no fogo por elas. Nunca ouvi essa expressão antes, mas consigo perceber muito bem o que quer dizer. Sei o que quis dizer porque as minhas também são… incertas. Às vezes lembro-me de coisas que não sabia que tinha esquecido, e depois, e depois esqueço-me dessas também.
- Também me acontece – confessou Pace com um meneio.
- E então? – Worms dedilhou as costas da cadeira, a precisarem de verniz, demasiado agitado para se voltar a sentar. Apontou um dedo ao homem alto. – Não sou de faz-de-conta, Pace. Não sou uma personagem. Sou um homem. – Abriu o roupão como que para comprovar que o era. – Tenho carne e ossos. E tenho dentes que magoam demais para ser só imaginação. Minha ou de quem quer que seja. – Olhou para a outra pessoa de carne e osso presente no quarto. – Bliss, diga-lhe. Diga-lhe, por favor. Diga-lhe que é real.
Bliss não o ouvia.
- Somos todos reais – disse Pace, perante o silêncio demorado da companheira. – Não importa de onde originámos. O mundo está de tal forma que agora somos todos reais aqui. Reais e, talvez, imaginários. Como a miúda que ainda não se calou desde que chegámos. Como as pessoas que a estão a torturar. Estou apenas a dizer…
- Disparates – talhou Worms. Depois, repetiu num sussurro a palavra para si próprio como se estivesse a tentar convencer uma criança pequena de que não havia motivos para preocupações. – Disparates…
A conversa parecia terminada. Pace tirou o colt que pertencera a sua mãe do coldre que trazia a anca direita e premiu a mola para destacar o cilindro, verificando as cápsulas no seu interior. Seis cartuchos vazios que ele derramou no monte de peças inutilizadas do braço perdido. O latão das cápsulas ocas trinou de encontro ao metal dos fragmentos mecânicos deixados sobre a colcha. Pace tirou, uma a uma, seis balas do cinto de munição que trazia à bandoleira por cima do colete e, uma a uma, inseriu-as no tambor do revólver. Voltou a fechá-lo, ouvindo o clique metálico familiar. Já não lhe restavam muitas balas. Nem grandes esperanças de poder vir a encontrar mais no caminho. Acariciou a madeira do punho. O toque de Bliss tinha destruÃdo a gravação e arruinado a suavidade do acabamento. Tentou afastar a sensação impertinente de que em breve se esqueceria das letras e das figuras que estavam gravadas na madeira. Foi um instante de desconforto, após o qual efectivamente se esqueceu. Apanhou-se a olhar para o punho da pistola. Guardou-a no coldre, ocultando-a com a gabardina, não pensando mais nisso. Quando levantou os olhos, Bliss ainda o olhava fixamente.
- Quando me encontraste na caravana… – disse ela, – agiste como se me conhecesses…
Pace respirou pesadamente.
- Sim.
- Conhecias-me de… Sou… – Bliss precisava de saber a resposta para aquela questão mais do que tinha vontade de a colocar. – Sou uma personagem de alguma história que tu leste?
O único olho que restava a Worms abriu-se mais na direcção dela.
- Não me diga que vai na conversa tola do seu amigo?
- Bliss, ouve…
- Não! – Worms voltou a interromper Pace. – Não o ouça. Não o ouça, Bliss.
Bliss olhou para o homem mumificado. Apenas o olhar foi o que chegou para remeter Worms a um silêncio apressado. Até as bocas dele pararam de mastigar. Ela pode voltar-se para Pace, segura de contar com a sua honestidade.
- Apareci nalgum livro que leste?
- Não – disse-lhe Pace.
- Mas reconheceste-me?
- Sim.
- Desembucha, Pace. Acabaste de dizer que eu sou feita de faz-de-conta. Que invadi o teu mundo e dei cabo de tudo o que tu conhecias. Quero saber como sabias quem eu era.
- Não sabia – respondeu Pace. – Reconheci-te porque… porque és igualzinha a uma actriz de cinema muito famosa no meu mundo.
- Actriz de cinema? – A pergunta de Bliss era apenas um eco da resposta de Pace. Pareceu reflectir na resposta durante os longos momentos que se seguiram. Depois, o semblante dela mudou e uma réstia de esperança monopolizou-lhe as linhas suaves de um rosto que era muito bonito. – Então, porque é que eu não posso ser essa… essa mulher? Essa mulher do teu mundo?
Pace sentia-se tentado a deixá-la ficar com essa esperança. Terrivelmente tentado. Arrependido de alguma vez ter tocado no assunto. A teoria do seu pai talvez não passasse disso mesmo. Duma teoria. Ele é que andara demasiado tempo perdido no caminho, sem companhia nem grandes distracções, e as especulações do pai tornara-se para si uma verdadeira obsessão. Podia tudo não passar disso. Uma abstracção da sua mente obcecada. Nada mais. Antes fosse.
- Bliss… sabes o que é o cinema?
Foi a vez dela respirar pesadamente. Desviou o olhar dos olhos de Pace para que não visse reproduzida neles a morte da esperança que se permitira sentir. Nem sabia o que era uma actriz. Virou-se de costas para ele.
- Talvez me tenha esquecido... dessas coisas todas – disse ela, sem acreditar numa palavra que fosse.
- Talvez.
- Disseste que também te esqueces de coisas, Pace.
- E esqueço. Muitas coisas.
Bliss voltou-se, tão depressa que o seu longo cabelo chicoteou o ar parado do quarto, e castigou o companheiro com o olhar.
- Oh, poupa-me à tua condescendência, Pace.
- Desculpa. – O amigo sorriu ao vê-la tão prontamente recomposta. Ia precisar da sua têmpera aguerrida para o que tinha em mente.
- O que faz uma ac… uma…
- Actriz de cinema? Representa.
Bliss abanou a cabeça perante a inutilidade daquela resposta. Pace tentou de novo.
- Faz de conta que é outras pessoas.
- E porque me pareço com essa mulher, que faz de conta que é outras pessoas? Como é que me encaixo na tua teoria?
- Bom… – Pace escolheu as palavras directamente do empobrecido banco das memórias onde guardava, entre outras, as coisas que o pai dizia. – O meu pai achava que a familiaridade presente nalgumas das coisas que vÃamos passar da noite se devia ao facto do número de ideias originais ser muito reduzido. Ele culpava a o sucesso da cultura pop para explicar porque era que um forasteiro nos soava tão… tão familiar. Se as ideias de um criador pouco original, que era a hipótese que o meu pai defendia, estavam a invadir o nosso mundo, não tardaria a vermos passar defronte da nossa parte figuras de fraca originalidade. A princÃpio, o meu pai chamava-lhes “plágios.†Ou “plagiatos.†Era só especulação da parte dele, mas… Sim, começaram a surgir forasteiros que eu reconhecia de lugares-comuns na ficção, com rostos de actrizes e actores conhecidos. Nem sei se começaram a surgir depois do meu pai ter colocado a hipótese de virmos a vê-los, ou se sempre os tÃnhamos visto e só agora é que estávamos atentos. Ou mais atentos. Algum tipo de estranheza constituÃa ainda a maioria, mas muitos dos forasteiros que atravessaram o nosso pátio, realmente, já os tÃnhamos visto antes. Levei tempo a admitir que o meu pai estava mais uma vez certo nas suas suposições. Lembro-me de estar a aliviar os meus intestinos uma vez e começar a ouvir um ruÃdo de qualquer coisa a esgravatar debaixo de mim. Levantei-me e vi a tentar subir pela retrete algo muito que era parecido com o Rato Mickey.
- Um rato? – Worms encolheu os ombros. – Ratos são assim tão extraordinários no seu mun… lá de onde você vem?
- Não, são uma praga, mas este parecia-se com um rato em particular. Um rato faz-de-conta. Rebentei-lhe os miolos com um tiro da minha espingarda, nunca andava muito longe de mim, depois puxei o autoclismo e fui contar ao meu pai que tinha acabado de matar o Rato Mickey. Lembro-me de que ele me ter dito que já era tempo de alguém lhe tratar da saúde.
Pace sorriu para si, que a piada estava irremediavelmente perdida para os outros, e depois o rosto dele foi tomado de sombras. Era a primeira vez que se lembrava dos episódios que acabara de relatar. O rato na sanita, a teoria do pai sobre os forasteiros-plágio e os lugares comuns de certas ideias que tinham invadido o mundo deles, tudo coisas que não faziam parte das suas memórias. Não faziam, até ao momento em que passaram a fazer. Como se alguém as tivesse imaginado e as colocasse em palavras na sua boca.
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