A prima desconhecida Liguei à Rosalinda e pedi-lhe para sair na estação seguinte, apanhar um táxi e dirigir-se para o escritório, onde irÃamos fazer o ponto da situação. TÃnhamos concretizado o principal objetivo da nossa missão: identificar o homem. Analisava o dossiê do caso do “marido desaparecidoâ€, quando Rosalinda chegou. Comparava a foto que tirara com a que me foi fornecida pela cliente. Apesar da má qualidade da imagem instantânea, não havia dúvida: o homem fotografado era o marido desaparecido de Idalina. Na verdade, um falso desaparecido. Preferi, por precaução, não informar Rosalinda. Continuava convencido que tinha a casa sob escuta. Dirigi a conversa para assuntos pessoais. - Sobre a operação que hoje executámos- disse - falaremos mais tarde. Ainda estou a rever a informação. Para já é prioritário resolvermos a sua situação familiar. Em primeiro lugar, considero que lhe devo uma explicação. Decerto que se lembra do nosso almoço, na taberna… Aquele em que me falou do seu passado e das suas origens. - Como me podia esquecer, foi um dia especial para mim. Para além do bom momento gastronómico, pude desabafar e fazer um pouco de terapia sem pagar consulta. - De psicólogo e louco todos temos um pouco. Para mim também foi muito importante conhecer o seu passado, que afinal já se tinha cruzado com o meu. - Eu sei, detetive. Já me contou o divertido encontro no Rossio, quando eu vendia flores. - Não se trata disso, Rosalinda. O que lhe quero contar aconteceu muito antes. Aconteceu quando a Rosalinda era uma criança com pouco mais de um ano, e esteve na aldeia serrana dos seus avós paternos. Hesitei em dizer-lhe até hoje, mas a pessoa que a recebeu, a Amélia, era a minha mãe. Eu tinha cerca de dez anos e lembro-me de estarem na nossa casa, durante uma semana, até fazer a sua recuperação da tosse convulsa. O que lhe estou a dizer é que ainda somos primos. E resolvi esclarecer isto para reafirmar que, para além de razões humanitárias, a minha preocupação com a sua vida familiar tem motivos acrescidos. - Nem por sonhos estava à espera de uma notÃcia dessas, mas é uma boa notÃcia. Eu era muito pequena e não tenho memórias desse perÃodo. Sei da situação porque a minha mãe a lembrava frequentemente. Nesse ano, talvez 1956, o meu pai estava ausente. Nós vivÃamos do cultivo da terra, mas nos tempos de menos trabalho nos campos, José, assim se chama o meu pai, dedicava-se ao contrabando para conseguir melhorar a nossa situação. Entre a sementeira e a monda, entre esta e a ceifa, e entre a ceifa e a nova sementeira, ausentava-se por cerca de duas semanas. Com o seu companheiro de contrabando, atravessavam a fronteira com um carregamento de café, cedido por um comerciante/ contrabandista. Partiam, altas horas da noite, para não serem vistos pelos guardas, de um e do outro lado da fronteira. Atravessavam o Guadiana a nado, rebocando a carga num saco de lona flutuante. Ao chegarem a Espanha, caminhavam com a carga até chegarem à terra de destino. De dia dormiam em sÃtios isolados, em palheiros, e de noite caminhavam. Ao chegar ao local combinado, entregavam o produto e recebiam o pagamento. Rentabilizavam a sua parte do dinheiro, comprando alguns produtos baratos como tecidos, cosméticos e calçado de baixo preço. Era um trabalho duro e arriscado que correu sempre bem, exceto numa viagem em que foram abordados quando atravessavam o rio, no regresso. Primeiro sentiram o barulho de uma lancha a remos, depois uma voz que lhes era familiar a mandá-los parar. O instinto de sobrevivência fê-los largar os sacos que rebocavam com os produtos adquiridos. Todo o seu lucro, assim como a própria roupa, se perdeu. O guarda que os abordou e que nem estava de serviço, parou para recolher os sacos e deixou-os seguir. Chegaram a casa apenas vestidos com o chapéu na cabeça onde, por sorte, guardavam o dinheiro do comerciante. O meu pai precisava dos rendimentos que tirava do contrabando, mas sempre me pareceu que exercia aquela atividade com gosto. Podia fazer como os outros agricultores que procuravam trabalhos complementares, como as ceifas no Alentejo. Mas ele preferia aquela vida: mau grado o risco, nunca desistiu. - A minha mãe recebeu a prima renegada pelo pai, que poucas vezes vira e fez o melhor que pôde para vos ajudar. Sei que durante muito tempo mantiveram contacto por correspondência. E até que a sua mãe se mostrou disponÃvel para me receber quando vim viver para Lisboa. Mas preferi manter a minha independência. Agora que por acaso nos reencontrámos, podemos restabelecer esses laços familiares, começando por dispensar o tratamento formal. E indo a coisas mais recentes, já pensastes na relação com o teu marido? - Sei que tenho de voltar a casa. Sou casada com o Damião e falaremos sobre o nosso futuro, com a certeza que não estarei sozinha. - Muito bem. Vou então telefonar-lhe para o informar que pode vir buscar-te, com as condições que vais exigir. Entretanto, vamos analisar as fotos do caso do “marido desaparecidoâ€. Aproximei-me da janela com vista para o rio. No porto havia um movimento desabitual. Carros de polÃcia. Uma zona fechada.
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