gdec2001
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« em: Novembro 29, 2013, 19:33:44 » |
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Impressionante, disse ele. Não. Isto é assim há muito tempo e toda a gente devia sabê-lo - é uma maneira de dizer -. Mas nisto, como na maior parte das coisas, o conhecimento verdadeiro só chega com a experiência e a experiência chega, as mais das vezes, demasiado tarde para ser aproveitada. Ou seja, para dizer as coisas de outra maneira: Raramente se pode experimentar. Mas agora, deve ser Você a contar-me alguma coisa da sua vida. Fica para a próxima. Mas não julgue que se escapa, terminou ela. Enquanto caminhava para casa ia pensando se contaria à Adélia esta conversa. Decidiu que não devia contar. Em primeiro lugar porque era uma conversa como já tivera tantas, apenas com a diferença de ser uma mulher o seu interlocutor; depois porque as relações entre ele e a sua mulher não estavam próprias para palestras inconsequentes, como seria necessariamente aquela em que lhe contasse tal conversa ; depois, ainda, porque se ela tinha segredos em coisas importantes da vida, ao menos ele podia ter um segredo em coisas sem importância nenhuma. E não contou nada e sentiu-se bem como há muito se não sentia. Ao mesmo tempo apelidava-se de estúpido por dar tanto sentido a uma coisa que não tinha sentido nenhum. E, nos dias seguintes, não foi à cervejaria umas vezes porque o seu trabalho o não permitia e outras vezes para provar a si próprio que não tinha nenhum desejo de encontrar a Dr.a Lurdes. No entanto começava a sentir-se mal, outra vez. Aquele sentimento que era parecido com o ciúme, mas que ele não queria aceitar que o fosse, prometia, mais uma vez, apossar-se dele.
Cabeça que matuta muito, por vezes desvaira.
Ultimamente dera por si a pensar naquele que seria o pai do José. E era um verdadeiro tormento pensar numa pessoa que nem sabia se era alto ou baixo, gordo ou magro, careca ou com muito cabelo. Censurava-se amargamente, por ter calado a Adélia e não a ter deixado contar, mais um pouco, sobre aquela relação, mas agora parecia-lhe demasiado tarde para saber alguma coisa. É claro que não supunha que a relação continuava, uma vez que acreditava que ela apenas tinha feito aquilo, seguindo a sua sugestão, mas, por outro lado, quem sabe?, quem sabe ?... Um dia não suportou mais e perguntou: Quem é? E ela, surpreendida pelo tom da pergunta: Quem é, o quê ? O pai do miúdo, do José. É ... é o meu colega, António Chouto. Ah ! Ela, então, explodiu: Não julgues que a nossa relação continuou. Nem te atrevas a julgá-lo, porque eu só gosto de ti e de mais ninguém e mesmo que me deixes, só de ti gostarei e de mais ninguém. Sabes bem porque fiz isto, e se escolhi um homem... bonito, foi apenas para que o nosso filho fosse também bonito, como é. Ele ficou surpreendido com aquela explosão e apeteceu-lhe dizer-lhe que também ele só gostava dela e de mais ninguém. Dominou-se, porém e apenas perguntou: Ele sabe que é o pai do José? Não sei se sabe. Nunca falamos disso nem mesmo da relação que tivemos e eu nunca lhe disse qual era a minha intenção quando aceitei...provoquei, aquela relação. Na verdade ele casou-se, entretanto, e consta-me que vai ter um filho. Pronto, pronto, deixa lá, disse ele. E ficou a reflectir nas informações que tivera. Na verdade conhecia o António ainda que superficialmente. Era um homem extremamente sisudo e que ele não supunha ser capaz de ter uma aventura. Mas olha, também, quem fala , respondeu a si mesmo...ainda que sem qualquer razão. Parecia-lhe bem que ela tivesse arranjado o companheiro dentro do seu trabalho, pois já a imaginara, na rua, à procura de um homem. Uma coisa... pavorosa. Por outro lado, parecia-lhe mais perigoso que ela continuasse a contactar com ele, ainda que, é claro, acreditasse nela, quando dizia ter acabado aquela relação. O pior desta espécie de ciúme é que é um ciúme silencioso, pensou ele, porque, na verdade, não posso censurá-la de coisa alguma. Bem; preciso esquecer-me disto tudo, concluiu.
Voltou, por isso, à cervejaria e logo ali encontrou a Dr.a Lurdes. Cumprimentou-a um pouco de longe mas ela disse logo: Não, não julgue que se escapa. Venha sentar-se ao pé de mim. Ele foi, satisfeito. Já sei que quer a sua imperial. Sim, mas hoje pago eu. Como quiser. E depois que bebeu o primeiro gole, ela atacou: Conte-me então, alguma coisa sobre si. Bom. Sou alentejano e motorista de camiões . Ela, que já o sabia, espantou-se, mesmo assim, um pouco: Já me tinham dito e eu não sabia se devia acreditar. Tenho uma ideia bastante estereotipada do que é um motorista de camiões e você não lhe corresponde nada. A sua ideia é errada . Hoje não é preciso ter muita força - e, realmente, nunca foi necessário ser-se um bruto - para ser motorista de camiões. Mas, na verdade, também não foi para isso que me eduquei... . A minha famÃlia vivia, e vive, bastante bem e o sonho deles era que eu fosse doutor, como geralmente é o sonho das famÃlias portuguesas. Ao princÃpio tentei fazer-lhes a vontade. Fiz o liceu normalmente e entrei para a faculdade de letras, curso de história. Quando chegaram as férias, depois do primeiro ano da faculdade, resolvi fazer uma viagem até à Alemanha, à boleia, no camião de um amigo, actualmente meu colega.
Quem sonha viaja e quem viaja sonha
Viajámos principalmente de noite e nem calcula como gostei. O meu gozo verdadeiro foi a viagem e não o que vi nas terras em que parámos. Na Espanha ele deixou-me guiar um pouco, embora eu só tivesse carta de ligeiros, e isso deu-me um prazer inigualável. Esse meu amigo é um rapaz pouco falador e por isso andámos centenas de quilómetros sem dizer palavra, apenas cantarolando, ora um ora o outro, ora os dois ao mesmo tempo , para que não adormecesse o que estava a guiar. Entretanto Ãamos sonhando sonhos brandos e assim aportávamos, aonde quer que fôssemos, quase sem dar por isso . Quando cheguei a Portugal, tratei logo de tirar a carta de pesados e comecei a tratar de arranjar um emprego como motorista de camião. Não foi nada fácil e já tinha quase o segundo ano da Faculdade, quando o consegui. Os meus pais, principalmente a minha mãe, ainda tentaram dissuadir-me mas, nada feito. E digo-lhe que estou bastante satisfeito ainda que, é claro, nem tudo seja como então sonhei. Mas não parece assim tão satisfeito. Não; as causas das minhas preocupações, são outras. Mas perdoar-me-á se me calar acerca delas. É claro. Isto aqui, não é uma igreja, nem eu sou um padre. Isso faz-me lembrar a maneira como me tornei ateu ou, talvez melhor, agnóstico, enfim infiel. Se ainda tem paciência posso contar-lhe porque, não sei bem como, me parece que diz muito sobre como sou. Mas, sem dúvida... Então cá vai . Tenha paciência porque é uma história longa. E desculpe se lhe parecer que sou um pouco rude na descrição . Oh. Oh ! Sou completamente adulta...julgo eu.
Geraldes de Carvalho
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