Goreti Dias
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« em: Outubro 22, 2007, 16:32:46 » |
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"Avião despenha-se no Japão; 2 portugueses a bordo; luto na “Electron” de Guimarães...” Guida não ouviu a restante parte do Sumário. O coração bateu-lhe aceleradamente. Electron? – perguntou-se. Meu Deus, fazei que não seja verdade o que estou a pensar, por favor, eu vos imploro – foi a prece que saiu dos seus lábios. Mas a notícia chegou concisa: “ – Avião despenhou-s, hoje de manhã, no sul da ilha menor do Japão: Choguku. Um tufão vindo do Pacífico, acompanhado por chuvas torrenciais vulgares nesta época da monção de Verão, fizeram despenhar um avião onde viajavam 2 portugueses a caminho de Tóquio. Um deles, sócio da empresa Electron com sede em Guimarães, natural de Setúbal, 36 anos de idade, Mário Amorim Gonçalves. O outro, pertencente aos quadros superiores da empresa, era natural de Guimarães, 40 anos de idade, de nome Afonso Guilherme de Sousa.” Guida recusou-se a acreditar. Jamais o poderia ver? Não, não podia ser. Ela precisava vê-lo ainda mais uma vez, falar-lhe, saber o que tinha acontecido ao amor deles. Passou uma noite horrorosa, andando de um lado para o outro, como uma fera enjaulada. Que faria? Que não faria? A manhã rompeu limpa e luminosa. Ligou para o escritório avisando que não iria trabalhar nesse dia. Esperou ansiosamente as primeiras notícias na televisão. Precisava urgentemente confirmar a notícia do dia anterior. Poderia ter sido só um pesadelo, quem sabe? Mas não foi. A notícia foi transmitida, então, de forma alargada, com fotografias dos mortos e filmagem dos destroços do avião. Foi revelado, ainda, que os restos mortais de Afonso chegariam ao aeroporto Sá Carneiro, no dia seguinte, de onde continuariam viagem até Guimarães. Os de Mário seguiriam do aeroporto da Portela para Setúbal, sua terra natal e onde habitavam os seus pais. Pensou deslocar-se a Lisboa para acompanhar o cortejo fúnebre e assistir ao funeral, mas desistiu. Como explicar à família quem era? E o que restava de Mário? Uns quantos ossos carbonizados dentro de uma urna de madeira. Para quê, então? Preferia recordá-lo vivo, alegre, de olhos azuis e falar meigo. Morrera e ela não se pudera despedir dele, não lhe dissera o quanto se sentia humilhada pela atitude dele, morrera e ela jamais lhe diria quão grande era o seu amor, morrera sem saber quanto a fizera feliz naquele primeiro dia em que fora sua, tão sua que uma parte da sua alma partira com ele, rumo ao Infinito que lhe parecera tão distante quanto estava agora perto. Para lá partira ele, qual viajante clandestino, à socapa, sem ninguém imaginar que tal pudesse acontecer de forma tão absoluta. E gritou: “Leva-me, leva-me!”. Lembrou-se de alguns poemas que lhe tinha dedicado e nunca mostrara. Pegou num e leu em voz baixa, dolorosamente. A última frase do poema foi já gritada dolorosamente. Como queria partir ao seu encontro! Ah! Se tivesse a certeza de que para além da Morte poderia encontrá-lo!...
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17h 30m! Impossível! Ligo o intercomunicador e pergunto: - Fernanda, o meu relógio parou. Importa-se de me dizer as horas? Uma voz simpática responde do outro lado: - Com certeza, Sr.ª Dr.ª ! São 17h 30m. Não posso acreditar! Onde estive nos últimos 30 minutos? O que são trinta minutos? O que aconteceu ao tempo? Estou demasiado confusa, mas tento acalmar-me. Olho a paisagem lá fora. A chuva cai serena, agora, e o sol espreita a medo pelas nesgas de céu azul. O Mundo parece estar encantado. As folhas lisas dos eucaliptos brilham molhadas e a luz reflecte-se nas agulhas finas dos pinheiros. Tudo tem o brilho da seda verde, vestido de donzela adornado de jóias. O ouro, flores de giesta, os brilhantes, gotas de água pura. E eis que o sol espreita mais. A chuva pára um pouco e ganho olhos de criança. Estão as bruxas a pentearem-se! Era isso que em menina de escola ouvia às minhas colegas a respeito deste chove que não chove abrilhantado pelo sol. E ficávamos à espera de um arco-íris, contávamos as cores e corríamos ao seu encontro até àquele tronco grosso de eucalipto cortado na sua larga base e rodeado de rebentos novos. No seu interior construíramos um belo altar para brincar às igrejas. Alguma de nós arranjara uma imagem de N.S.ª de Fátima, outra uma jarra onde colocávamos flores que víamos refulgir com as pequenas gotas de água que escorriam dos ramos delgados e maleáveis dos rebentos do velho eucalipto. Em dias de “provas” íamos mais cedo para a escola e corríamos para o velho tronco. Ajoelhávamos e fazíamos a nossa inocente prece à Virgem, para que tudo corresse bem nessa tão temida avaliação. Rezávamos uma oração especialmente escolhida para que a Virgem tivesse dó da nossa amiga Fátima. Fátima era uma rapariga tímida, medrosa, até. Fraca aluna, era espancada pela professora. Recordo com revolta, ainda, as bofetadas que apanhava e que, por vezes, a faziam desequilibrar e bater com a cabeça no quadro negro. De uma das vezes, bateu com o nariz e o sangue soltou-se escorrendo-lhe pela cara, tingindo-lhe a blusa. A partir daí, a professora batia-lhe com a régua nos ombros e Fátima passou a vestir camisolas de lã, umas por cima das outras, para que não lhe doesse tanto. Felizmente eu era boa aluna e não apanhava. A professora gostava muito de mim e até me pegava ao colo. No final dos períodos lectivos dava-me livros de histórias. Um dia, ofereceu-me mesmo uma pequena boneca com casa de banho completa, cor de rosa. Adorei o brinquedo, mas continuei a não gostar dela pelo mal que fazia às minhas amigas. Viviam aterrorizadas à espera do dia em que vestisse de vermelho. Esse dia era dia de pancadaria certa. Lanço de novo os olhos para a paisagem. Lá está o arco-íris! Não é o dos dias da minha infância mas é igualzinho, com as mesmas cores, o mesmo brilho, o mesmo encanto!” Só não corro para ele! Apenas os meus olhos o seguem desejosos de compartilharem com ele o Infinito do Céu azul já que o outro Infinito... nem sombras dele! De que adiantam os meus anseios? Jamais encontrarei o que me faria feliz: um grande Amor em que não fossemos dois mas apenas um, onde ele fosse eu e eu fosse ele, num sentimento pleno onde fosse impossível medir a intensidade da paixão, onde Razão e Loucura estivessem tão misturados que fosse impossível destrinçá-los. “Isso não existe, cresce!” – digo a mim mesma. Forço-me a voltar ao trabalho. Pego, ao acaso, num processo. Um caso de partilhas não muito difícil, diga-se de passagem. A complicar, apenas uma doação que os pais do meu constituinte fizeram a outro irmão. Revejo os dados: dois irmãos, uma vivenda, dois apartamentos na Póvoa de Varzim, uns tantos artigos rústicos de média dimensão em Santiago de Bougado e uma teimosia desmedida por parte do irmão do meu cliente. Resolvo tentar de novo um acordo. Será a última tentativa antes de enviar a Tribunal. Rascunho um acordo um pouco mais favorável à facção contrária do que o anterior e junto-o ao processo. Faço a seguir cartas pedindo aos interessados o favor de comparecerem no meu escritório. Chamo Fernanda pelo intercomunicador e entrego-lhe o processo recomendando-lhe: - Faça seguir já hoje as cartas e ... deixe ficar a porta aberta, por favor. Está demasiado abafado aqui dentro. A secretária olha espantada e pergunta: - Quer que lhe baixe a temperatura do ar condicionado? - Não, obrigada – foi a resposta um tanto seca que recebeu. Olho fixamente a parede em frente: branca, lisa, sem uma porta, atrai-me a atenção como um hímen...
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