Antonio
|
|
« em: Setembro 29, 2007, 09:21:19 » |
|
Em 1972 resolvi ir passar as férias num campo de trabalhos na Inglaterra. Já tinha vinte e três anos e nunca tivera uma experiência do género. Como iria ganhar dinheiro, com esses proventos pagaria as despesas que teria de fazer. Naturalmente dei conta da minha intenção a meu pai e minha mãe, sendo que o primeiro se prontificou a pagar as viagens de avião, a meu pedido. Tratei do assunto através de um organismo da Universidade de Lisboa cujo nome não lembro. O perÃodo de labuta seria de vinte e dois dias, em Agosto, no Friday Bridge Agricultural Camp, perto da cidadezinha de Wisbech, no Cambridgeshire, uns duzentos quilómetros para norte de Londres. Como é meu péssimo hábito (e ainda por cima empurrado por minha mãe que queria que levasse mais coisas, não fossem elas necessárias), arrumei um montão de tralhas numa mala enorme cujo peso aguentava com alguma dificuldade. Para obstar a qualquer inusitada falta de dinheiro, que eu considerava pouco provável pois ia determinado a trabalhar o que fosse preciso para ter fundos suficientes que me garantissem o essencial e algumas coisas acessórias, o meu pai emprestou-me nove contos. Assim, ele ficava mais sossegado. E eu também. Embarquei no aeroporto de Pedras Rubras para um voo directo a Heathrow. Ao fim de duas horas cheguei. Ao sair do avião vi uma senhora que era professora de inglês no Alexandre Herculano, liceu que frequentara. Era a famosa e solteirona Carolina, de quem nunca havia sido aluno, mas cuja fama de severidade era sobejamente conhecida nessa escola. Era mesmo célebre por bater com os grossos dicionários na cabeça dos alunos quando estes não respondiam a preceito à s suas perguntas. Imediatamente me ocorreu que, atrelando-me a ela, teria a vida facilitada. E logo a abordei. Acabou por se mostrar uma pessoa muito simpática que, segundo me disse, todos os anos ia a Inglaterra para não perder o contacto com a lÃngua inglesa. Apanhamos o autocarro para o centro de Londres onde ela se transferiria para outro transporte que a levaria a um lar de freiras onde ficaria alojada. Eu iria, no metro, para um hotelzinho em Earl’s Court cujo nome me fora fornecido pela tal organização de Lisboa onde tratara dos assuntos. E assim aconteceu (pelo menos comigo; com a doutora não sei). O hotel era de qualidade abaixo do aceitável mas, pela numerosa clientela que se apinhava na sua entrada, tudo malta muito jovem e não britânica, achei que estava no sÃtio mais adequado. Quando, depois de uma espera de largos minutos, chegou a minha vez de fazer a marcação do alojamento, a inglesa que nos recepcionava, bastante mal encarada, mal penteada, nariguda e com os dentes podres, perguntou: - Single or sharing? E disse os preços respectivos. Como ia na desportiva, respondi: - Sharing, please. Decidi, portanto, partilhar o quarto com alguns outros visitantes da capital do Reino Unido. Paguei e dirigi-me ao quarto indicado. Sem chave. Como era muita clientela, a gerência não autorizava que os clientes do sharing usassem esse instrumento que sempre me parecera fundamental, quanto mais não fosse, por razões de segurança. Mas, como diz o provérbio, em Roma sê romano. Seriam umas quatro da tarde. O tempo estava bonito, com sol. E pude ver que o enorme quarto que me fora destinado tinha nove camas com roupa lavada, uns quantos guarda-fatos e um lavatório com uma torneira. Nem sabão, nem toalhas. Mais nada. Mas, pensando bem, se eu ia para um campo de trabalhos, qual proletário, tinha de começar a habituar-me a algumas incomodidades. É assim que se fazem os homens, cogitei. Reparei que algumas camas já tinham sobre elas malas ou sacos. Sinal de que tinham sido “reservadas†por alguém. Fiz o mesmo. Coloquei a bagagem sobre o leito que me pareceu melhor posicionado e fui conhecer a mundana cidade de Londres. Apanhei o metro para Piccadilly Circus e depois fiz a pé o circuito Regent Street, Oxford Street, Charing Cross Road, Shaftesbury Street com regresso à praça donde partira. Pelo caminho, ainda vi um espectáculo com golfinhos e pude apreciar quão cosmopolita era, de facto, Londres. Havia gente de todas as cores, raças, nacionalidades, enfim…um mundo. Já era noite quando me meti no Soho onde visitei a que era para os jovens, na época, a rua mais popular da Grã-Bretanha: Carnaby Street. Jantei e depois andei a visitar umas casas de espectáculos, todas de muito mau gosto qualquer que fosse a perspectiva pela qual fossem analisadas (ai Paris, Paris…). Só pouco antes da meia-noite apanhei o metro (o último, segundo me disseram) para regressar ao hotel (chamo-lhe assim porque não me ocorre um termo mais adequado; espelunca seria excessivo). Subi as escadas. A porta do quarto estava entreaberta e a luz apagada. Acendi-a. Logo ouvi uns urros que não entendi, ou melhor, entendi perfeitamente que significavam: Apaga a luz! Fi-lo imediatamente, mas o pequeno intervalo com o compartimento iluminado foi suficiente para ficar assustado com o que vi. As camas já estavam quasi todas ocupadas. E, de sob os lençóis, emergiam abundantes adornos capilares. Toda a cena me fez lembrar as casernas de trabalhadores de minas que vira num ou dois filmes. Mantive a porta aberta para que a luz do corredor iluminasse um pouco o local onde deveria estar a minha mala. Mas que raio! A minha cama já estava ocupada! Pé ante pé fui caminhando o mais silenciosamente possÃvel, procurando a bagagem. Finalmente vi-a arrumada a um canto. E cama? Acomodei-me numa que estava sem “marcação†e ficava perto da porta. Com a máxima cautela lavei as mãos e a cara e limpei-as ao lençol para não abrir a mala. A higiene dental limitou-se a um gargarejo. E, sorrateiramente, encafuei-me sob a roupa só com as cuecas vestidas. Estava o sono a chegar quando entrou outro retardatário. Acendeu a luz e…bom, desta vez vinguei-me e também disse um palavrão qualquer em português. O pior é que, quando o sujeito foi fazer as suas lavagens, como a minha cama de recurso ficava mesmo ao lado do lavatório, salpicou-me todo com água. E na zona do travesseiro, quer dizer, na cabeça e na cara. Passado algum tempo, estava eu quasi, quasi, a dormir, entrou outro. Este não fez barulho. Só fez chuveiro para cima de mim, o desalmado. E ainda apanhei uma terceira molhadela antes de adormecer. Quando acordei, já a luz entrava pelas janelas. Olhei para as várias camas e estavam todas ocupadas. Toda a malta a dormir. Entretanto há outro que levanta a cabecinha e também espreita. E mais outro. E outro ainda. Agora, embora alguns dos meus parceiros tivessem umas caras patibulares, senti-me mais à vontade. Levantei-me, abri finalmente a mala e lavei-me o melhor possÃvel. ConcluÃdo o ritual (que não foi muito canónico, como devem calcular), pisguei-me o mais depressa que pude para ir a uma conhecida estação do caminho-de-ferro apanhar o comboio que me levaria a Wisbech. E o que me aconteceu no campo de trabalhos fica para vos contar noutra ocasião.
|