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Autor Tópico: Zé Tempo  (Lida 2101 vezes)
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josé torres
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« em: Janeiro 15, 2009, 00:08:56 »

O Tempo adormeceu para a missa. Passou a noite nos copos.
Sua mãe bem o chamou:
- Zé Tempo, acorda homem!!
Mas Zé, que ao tempo rouba o nome sem querer, não tem tempo para acordar. Vira para o outro lado, coça a orelha devagar.
- Ai Deus que fizeste os céus, tende piedade deste que pecou, o vinho era bom e quase me matou…
- É bem feito desgraçado, para mal dos teus pecados!
A velha senhora estava aparentemente zangada pela noite de folia do filho.
Zé Tempo media 38 anos de altura. Calçava um número grande que terminava em meio.
Fomos os melhores amigos da escola.
Dava-mos de caras um com o outro a cada passo, que a vila era pequena. Aliás, Zé Tempo morava ao fundo da minha rua, que numa certa perspectiva é o início da rua de cada um.
Os estudos universitários levaram-nos para lugares diferentes. Casei, e anos mais tarde separei-me. Vim morar para junto de minha mãe viúva, para lhe fazer companhia e encontrar alguma paz. Ele também voltou só que nunca se casou, que se saiba pelo menos.
Apesar de desencontrados no tempo, voltamos Tempo e eu a recuperar a nossa velha amizade.
Quando passei manhã alta daquele Domingo em sua casa a desafiá-lo para uma partida de bilhar antes do almoço, logo ouvi as reclamações de Dª Justina, viúva como minha mãe, que lamentava o facto de o meu amigo fugir a sete pés da igreja, quase sempre na pista branca dos lençóis. Isto é, sem sequer sair do lugar.
Não tinha tempo para essas coisas o Zé.
Depois de um guronsan pela garganta abaixo e de um duche frio, estava pronto para a vida.
Invejava-lhe a juventude, a capacidade regeneradora. Parecia que o dito cujo, por lhe estar no nome, não passava por ele.
Nesse dia, a meio da partida, perguntei-lhe:
- Ouve lá, como é que consegues? Como é que consegues estar sempre com esse bom aspecto, que parece que tens vinte anos?
Respondeu-me:
- Isso é um segredo bem guardado, e riu-se
A verdade é que sendo formado em química, já tinha corrido o boato entre os que lhe eram mais próximos, que havia inventado uma espécie de poção rejuvenescedora.
Contaram-me a história uma altura, já depois do meu regresso, e achei que era hora de perguntar ao Tempo, há quanto tempo a tinha inventado…
Ficou sério, os olhos quase pedra.
- Nunca mais me voltes a perguntar isso!
Estranhei a resposta mal-humorada, mas pensei depois, que provavelmente se deveria ao seu desagrado por terem inventado a história, mais ainda porque trabalhando numa conceituada empresa farmacêutica, por certo já teria divulgado a sua descoberta.
Meu amigo era um homem simples. Vivia por opção própria em casa da sua mãe, sujeitando-se de bom grado a que ela o tratasse como um menino ainda.
Das várias vezes em que por lá passei, sempre o ralhete era porque não tinha comido tudo o que lhe colocara no prato, não se agasalhava em condições, ou não ia à missa porque não acordava.
Eu achava piada àquilo, porque parecia que o tempo em casa do Tempo tinha parado.
Era exactamente como quando éramos uns miúdos, e brincávamos num barracão ao fundo do quintal da sua casa, que ainda lá estava, com o mesmo ar lúgubre que a nossa imaginação já lhe conferia na altura.
Era o nosso laboratório, de mil experiências com animais e insectos.
Várias rãs tinham sentido na pele a lâmina fria do estilete, sido cozidas a fio norte, terminando invariavelmente nuns frascos vazios de compotas subtraídos à cozinha, mergulhadas em álcool etílico.
Até mesmo uma pequena cobra rateira que apanhamos num dia quente de verão.
E já nessa altura, Zé sem tempo se perdia em estudos, em teorias, que lhe advinham dos primeiros contactos com as ciências da natureza e o método científico que aprendemos pelo sexto ano.
A sua aplicação nos estudos acabou por conduzi-lo à licenciatura em química e posteriormente a um doutoramento numa conceituada universidade europeia.
Certo dia deixou de aparecer. Liguei-lhe várias vezes, mas não me atendeu o telefone. Minha mãe trouxe-me a notícia de que a empresa o tinha enviado para Londres em trabalho.
Ficou sem aparecer por vários meses, sem que ninguém, mesmo a progenitora, tivesse mais notícias que não aquelas que diziam estar bem e de saúde.
A vida seguiu pacata, eu na minha actividade de tradutor, e o meu amigo provavelmente
envolvido num qualquer projecto interessante de pesquisa, por terras de Sua Majestade.
Até que uma bela manhã foi ele a acordar-me.
- Levanta-te, quero apresentar-te uma pessoa.
Disse isto sem me dar tempo para lhe perguntar há quanto tempo tinha chegado, sem me dar possibilidade de o cumprimentar.
Assim que o consegui fazer, depois de me aprontar e logo que desci à sala, os meus olhos perderam-se na mais bela mulher que alguma vez eu tinha conhecido em quase quarenta anos de vida.
Um rosto de anjo, de uma palidez de cisne. Cabelos de oiro tombando sobre um pescoço fino e um peito redondo, uma cintura capaz de definir novos rumos à elegância, umas pernas longas e belas numa mini-saia curta.
Uma deusa, como eu nunca tinha visto. Não sei sequer como não desenhei um assobio brejeiro no ar.
Estava espantado e quase gago até. Ao ponto de não conseguir articular mais que uns gargarejos, o que levou aquela Vénus a rir da minha atrapalhação, com uma graça e um encanto que logo me trouxe um sorriso aos olhos.
- Então? - Perguntou o meu amigo.
- Vais ficar aí a babar durante muito tempo?
- Apresento-te a Vicky, minha noiva. É uma famosa actriz em Inglaterra que conheci durante a minha estadia.
- Nice to meet you - Respondi no meu mais rebuscado Inglês para impressionar, se é que alguém, alguma vez que seja, consiga tal desiderato em expressão tão simples, numa língua que afinal me cabia a matar, pois era tradutor de Inglês.
Nessa noite saímos para jantar e divertirmo-nos na noite do Porto. Fiquei maravilhado com aquela mulher e a sorte de Zé Tempo, cujo olhar encantado denunciava uma doce maleita para a qual não há remédio: paixão.
Fiquei a saber que regressariam a Inglaterra dentro de alguns dias pois vários compromissos os esperavam.
Aconteceu no entanto uma coisa estranha durante o jantar. Aquela flor do paraíso a determinada altura, sem razão aparente, começou a ficar alterada, como que entrada numa qualquer espécie de stress traumático, sendo necessário que o meu amigo a levasse para o exterior durante uns minutos, logo regressando como se nada tivesse acontecido, não se registando nessa noite mais nenhuma alteração de comportamento.
Mais tarde, o químico haveria de se desculpar comigo com uma disfunção hormonal de que a actriz padecia ultimamente.
Voltamo-nos a encontrar num outro dia dessa semana, parecendo-me então que Vicky estava um pouco abatida, tendo o pálido do seu rosto um tom mais doentio.
Foi fugaz este encontro e não mais os vi, partindo novamente para Inglaterra.
Passou cerca de um mês, até que os noticiários abriram com a terrível notícia: - Químico português envolvido no assassinato de actriz.
As imagens não enganavam: Zé com tempo para amar, algemado pela polícia a entrar num carro patrulha, acusado da morte daquela que irradiava beleza.
Fiquei chocado e perplexo. Como tinha sido possível acontecer tal coisa.
Diziam as notícias que Doctor Time, como os ingleses se lhe referiam, utilizara medicamentos não testados na sua namorada provocando-lhe a morte.
Seria possível que aquele rapaz por quem o tempo não passava, meu amigo de sempre houvesse cometido tal loucura?
A minha cabeça quase estoirou na procura das razões para tal acto, se é que o tivesse cometido.
Lembrei-me das histórias de um medicamento que, dizem os da terra, criou para retardar o envelhecimento. Lembrei-me da sua resposta quando lhe perguntei sobre isso. Seria possível?
Meu amigo foi julgado nos meses seguintes e condenado a vinte anos de cadeia pela justiça inglesa.
Não vivi sossegado nos tempos que se seguiram. Tinha pressa de saber.
Meti-me num avião rumo á verdade de que precisava, de peito aberto para o tentar compreender, perdoar-lhe se me fosse permitido pela razão, ou até pelo coração.
Depois de várias formalidades, foi-me possível visitá-lo em Birminghan, no estabelecimento prisional onde cumpria pena, sem saber ainda se a extradição para Portugal lhe seria permitida.
Estava irreconhecível, como se tivesse em poucos meses envelhecido vinte anos. Os olhos sulcados de um sofrimento adivinhado, a pele seca e gretada, como se desidratado.
Abraçamo-nos forte e demoradamente.
Pedi-lhe que me contasse. Assim fez.
Desenvolvera secretamente durante anos de estudo um medicamento a que chamou Fénix.
Experimentara-o primeiro em si próprio, com resultados visíveis, anotando todos os sintomas e reacções adversas, num processo, que segundo me explicou, estava perfeitamente controlado. Foi aumentando as dosagens, foi aperfeiçoando a sua descoberta até concluir que estava pronta a ser mostrada ao mundo.
Fê-lo primeiramente à empresa para a qual trabalhava. A sua ida para Inglaterra ficara a dever-se ao facto de ser possível na sede da multinacional desenvolver a milagrosa pastilha.
Aguardava-o um mercado colossal de compradores e a riqueza. Quem não quereria prolongar a sua vida, o seu aspecto físico, retardando o envelhecimento, desafiando a própria morte?
Conheceu Vicky e de imediato se apaixonou pela sua beleza. Pela interior também.
A actriz, que já havia ultrapassado os trinta, era apesar do encanto natural, obcecada pela sua figura, e assim que percebeu aquilo que ele havia descoberto, conseguiu por insistência convencê-lo a ministrar-lhe o medicamento experimental.
Fê-lo no amor que por ela sentia, convencido de que isso não representaria perigo para a sua amada.
Houve porém aspectos que não controlou, entre os quais aqueles que se ligam à genética feminina, aos factores hormonais.
Aos primeiros sinais adversos tentou que esta deixasse de tomar o seu Fénix experimental. Pediu-lhe encarecidamente para que não o fizesse. Porém, minada já por uma quase loucura, Vicky convenceu-o a continuar com a medicação. Algo de que agora se arrependia tremendamente.
Claro que nada disto foi possível provar em tribunal, faltava a principal testemunha, que poderia comprovar aquilo que tentou explicar aos juízes. Estava morta e com ela o coração do meu amigo a quem nada parecia agora importar.
Estava minado por um sentimento de culpa, convencido da sua responsabilidade no sucedido.
Deixei-o com os olhos em lágrimas, disposto a não permitir que morresse dentro de mim a sua amizade, a justiça necessária.
Que seria de Dª Justina e seus ralhetes, coisa tacitamente aceite naquela casa simpática do princípio da rua, fim da minha, que era a mesma?
Encetei desde esse momento uma luta contra o tempo, a favor do meu amigo. Levei o seu caso até ás altas esferas da nação. Convenci jornalistas a não deixarem morrer aquela história. Era a vida de um homem que estava ameaçada a ser vivida entre quatro paredes de uma cela, quando o seu único crime foi amar uma mulher.
Passaram quase quatro anos desde o momento em que foi preso. Conseguiu finalmente o estado português que fosse repatriado e permitido um novo julgamento em território nacional.
No dia em que tal deveria acontecer, meu amigo chegado ao fim do desespero, onde pressuponho que não existam sequer paredes, atou-se com os lençóis a um tubo no tecto da cela, asfixiando.
Regressou ao seu país num caixão de tábuas fracas, num voo final ao coração de quantos o amavam.
Foi cremado por sua vontade expressa numa tarde triste de Outono, entre amigos de sempre, num cerimonial simples.
Morreu um pouco de mim também.
Já passaram uns quantos anos mais desde esse momento. Debate-se hoje na televisão o apoio ao terceiro mundo. África sempre adiada e de barriga inchada de fome, servida no final da refeição dos portugueses.
A determinada altura fala-se na descoberta da cura para a Sida, já disponível nas farmácias da Europa, mas ainda afastada do continente negro, onde governantes sem escrúpulos, traficam a vida, vendidos aos interesses da indústria farmacêutica.
Num repente, os meus olhos fixam-se na imagem de uma criança que brinca com um carrinho artesanal fabricado com engenho em lata, feito dos pedaços de civilização importados do velho continente, recolhidos no lixo.
Um termo publicitário chama a minha atenção. Distintamente, em letras azuis um vocábulo: FÉNIX – RETROVIRAL.
Abro os meus olhos e o diafragma. A empresa farmacêutica também se consegue identificar. É aquela para quem o meu amigo trabalhava.
O menino puxa o seu veículo vereda acima, e eu espero ver lá no pico da sua brincadeira o sorriso de Zé Tempo, e isso é o pedaço maior da minha alegria.

 

 
« Última modificação: Janeiro 15, 2009, 20:10:37 por josé torres » Registado
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« Responder #1 em: Janeiro 15, 2009, 10:54:23 »

...E um melhor comentário, que te agradeço.
Com amizade.
José
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josé torres
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« Responder #2 em: Janeiro 15, 2009, 13:37:31 »

Luís agradeço-te o comentário e a tua sensibilidade para a história, poie é realmente como o disseste aqui.
Um abraço
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.


« Responder #3 em: Janeiro 15, 2009, 17:09:00 »

O Tempo que tentou aniquilar o tempo e foi aniquilado por ele. Premonitório.
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josé torres
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« Responder #4 em: Janeiro 15, 2009, 18:56:15 »

Damasco. Vale a pena compreendermo-nos e compreendermos o tempo, mas não vale a pena tentar enganá-lo.
Muito grato pelo comentário.
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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