Djabal
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« em: Abril 08, 2009, 10:20:00 » |
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“Não existe, de fato, essa coisa de causa e efeito. Trata-se de uma quimera popular, uma noção vaga que não suporta os golpes da razão pura; contém um conjunto inconsistente de idéias contraditórias e é de pouco ou nenhum valor no discurso científico.” David Salsburg in Uma senhora toma chá...
Serra da Cantareira. Caminho. Agreste. Árvores. Animais. Ar. Aves. Jacus. Papagaios. Galinhas. Norte. Mairiporã. Resumindo, foi o lugar no qual passei uma das minhas folgas. Levei minha filha, afirmando que a diversão era garantida. E, de fato, logo ao chegarmos, encontramos um pula-pula. A cama elástica, cercada de rede, oferecia imediatamente a oportunidade da aventura. Entrou e ficou pulando e pulando, sozinha, sem nem mesmo esperar as outras crianças, que foram se achegando e, por um longo instante, ficaram apenas olhando, tomando coragem. Quanto mais as outras olhavam, mais a menina tomava coragem e pulava cada vez mais alto. Outra criança tomou coragem e entrou, pulou junto. Outra. E mais outra. Até que se atingiu um limite natural de pessoas e espaço livre para os pulos. Minha filha, diante de tantas pessoas, sentou-se bem no centro, isolada. Ficou ali desfrutando do balanço causado pelas demais. Apesar de não fazer nada, a cama pulava por ela, fazendo-a subir e descer. Tentou ficar de pé, caiu. Teria que pular em sincronia com as outras crianças. Caiu algumas vezes, riram dela. Algo que a embaraçava. Quando percebeu que também perdia a independência da visão, entrou no ritmo, aos poucos, até conseguir segurança e firmeza e assim continuou junto, mas pulando mais alto. Usava suas pernas e o impulso alheio para atingir uma vista única. Olhava-me confiante e exultante lá de cima, com a cabecinha acima das demais. Olhava em torno, para a casa, para as árvores, e atingiu a altura do papagaio instalado no viveiro, bem lá no alto. E o olhava instante a instante. Ele havia saído de sua casinha e andava por um galho colocado ali artificialmente, exibindo-se. Com a chuva se exibia ainda mais. Tomando banho, abrindo as asas, oferecia-se. O convite surgiu quase aleatoriamente. Não conhecia ninguém. Apenas algumas pessoas, de vista. Andando pelo terreno, encontrei um lugar próximo de outra convidada. Esposa de um piloto, com uma filha da idade da minha. Estava muito impressionada com a inteligência da filha. Explicou-me que as nossas crianças são da geração índigo. Como? É uma geração elevada espiritualmente, que sabe das coisas, mais evoluída que a nossa. Realista. Feliz de estar aqui. Chegou-se na conversa um senhor miúdo, de olhos e atitude oblíquos, vestindo uma camisa preta e vermelha. Aliás, metade preta e metade vermelha. Simetricamente. Desde o colarinho até a barra. Uma espécie de cartão de visitas, gritando algo incompreensível. A única mistura de cores deu-se nos botões pretos sobre o tecido vermelho. O impacto da camisa foi atenuado pelo colete preto sem mangas e desabotoado. Usava também uma boina preta cuja pala encobria o topo da cabeça e seus olhos. Seria um jóquei de jegue? Foi acompanhado da filha. Ouvia atentamente as explicações. Ela continuou, dizendo: “A filha dele” – apontando para o oriental – “também é. Outro dia, disse-lhe que a comida está boa pra cachorro, né? Não sei se é boa pra ele. Pra mim está ótima, é o que importa. A minha filha também, brinca com o computador desde os dois anos de idade, fazendo coisas que eu não faço até hoje. Não é incrível?”
Ouvia dentro de mim: “Idioteque”. Errei por ali.
Um casal de meia idade e acima do peso chegou trazendo sua filha, uma espécie de clone. A criança parecia mais ser a filha do Benjamim Button. Apresentou-se como empresário. Dirigia – além de outras coisas – uma ongue do terceiro setor, preocupada com o manuseio do crescente e incessante lixo industrial e seus efeitos na sociedade. Discorreu longamente sobre a toxicidade daqueles resíduos, do aumento das doenças degenerativas nas pessoas que mantinham contato com eles. A anfitriã o colocou ali por perto. A ongue não é lucrativa. Os lucros vêm da minha empresa de tratamento de lixo industrial. As duas têm uma sinergia interessante. De um lado, nós pressionamos para que exista um controle muito rígido do tratamento, e de outro o fazemos com um custo muito competitivo. O meu filho mais velho dirige a ongue, eu cuido da companhia comercial. É uma dobradinha de sucesso. O segredo – disse, piscando um olho – é a falta de fiscalização crônica. O custo previsto pela lei do tratamento é alto e conseguimos barateá-lo drasticamente. Cortamos o custo cortando os caminhos. Temos muitos lugares para depósito, a um custo baixíssimo. Apenas o do transporte. O futuro está no lixo. Não é a água, não. É o lixo.
Afastei-me dali. Estava zonza. Efeito das caipirinhas de saquê? Quanto mais espaço em volta, mais estava oprimida, angustiada.
No canto da churrasqueira, aproximei-me de um velho careca e de olhos doces, de um preto baço, apagado pelo tempo. Olhava e avaliava a todos. O pescoço de tartaruga encimado por um periscópio. Acheguei-me. Buscava um pouco de alento, um ar mais fresco. Apresentou-se: aposentado e jardineiro das redondezas. A época da primavera é a melhor época para se trabalhar, o crescimento das plantas é acelerado pela chuva, e a apara é necessária semanalmente. Trabalhou trinta e cinco anos numa tecelagem, jamais faltou ou se atrasou um dia sequer. Sua aposentadoria é de um salário. Não dá para quase nada. Fazendo do jardim um bico, a vida melhora um pouco. Afirmou que sua sorte mudou. Encontrou alguém que precisava de algum dinheiro emprestado. Fiquei apertado só no primeiro mês, ele queria o salário inteiro. Agora me ajeitei. Todo mês empresto minha grana para ele, e ele me devolve no mês seguinte com vinte por cento de juro. Uma ótima. Ele me contou – também é aposentado – que vende uns pacotinhos por aí, e que todo dinheiro que consegue utiliza para seu comércio. Consegui que ele me deixasse os pacotinhos ao invés de me pagar de volta, para eu mesmo vender. O lucro nós dividimos meio a meio. E assim vou vivendo. Todos os meus amigos lá de Tiradentes emprestam o dinheiro do mês pra ele. Ganho pela indicação de amigos, ganho nas vendas. Quem sabe deixarei de jardinar? Pena que estou velho. “Quer ficar com um? Tenho um aqui. De uns tempos para cá, saio mais, passeio, convivo com mais pessoas, e faço meus rolinhos, numa boa. Sem o jardim já estou com três salários mensais. Quando chegar aos cinco, paro esse bico. Tô cansado.”
“Não obrigada. Já experimentei, gostei não.”
Desordem festiva. Risadas. Casais. Buquê de festa: contando casos. Um cidadão do interior do estado chamado Bento. Casado há dois anos com Lina, não conseguia ter filhos. Fez amizade com seu vizinho, o Ezê, casado com Sancha e pai de um casal de filhos. Ambos eram parecidos, tanto no físico como nos hábitos. As crianças foram batizadas com os nomes do amigo e da sua esposa, como homenagem. Dando tratos à bola, um dia Bento, papeou com sua mulher e a convenceu a fazer uma tentativa de maternidade através do auxílio do vizinho. Tinha tanta vontade de ser pai. Depois de muita discussão, prevaleceu a vontade do marido. E Bento falou com Ezê explicando seus motivos. Combinaram e escreveram um contrato válido por seis meses. Três noites por semana, o vizinho deveria comparecer para, digamos, “depositar” sua semente na esposa de Bento. Combinou-se o pagamento equivalente a um salário mínimo mensal, exigidos antecipadamente pelo contratado. O tempo não passou calmo. Lina reclamava muito com o marido. Que aquilo não era coisa natural, não conseguia olhar para os outros vizinhos, sentia-se acusada. “Não quero dizer que é ruim, mas não consigo relaxar, não consigo.” Ditinho, era esse seu apelido, contemporizava: “Menina, você está até melhor. Pegou um jeito diferente. Mas isso, não importa nada, o nosso objetivo é que importa. Pense nisso. Deixe de sofrimento. O caminho para nós dois sempre foi o mais longo. Siga o exemplo da Sancha, ela nem liga”. Depois de setenta e duas tentativas completas e infrutíferas, Ditinho chamou Ezê e, mediante pagamento adicional, levou-o ao médico para um teste. Teste que resultou na confirmação da esterilidade do paciente. Romperam o contrato. Ditinho queria o dinheiro de volta, mas Ezê se recusava terminantemente a devolver. O contrato era para o melhor esforço na tentativa. O sucesso não era sua responsabilidade. Ele fez o bom e o melhor. A balbúrdia foi geral. Diz-que-diz. Os comentários a respeito caminharam. Bento terminou a discussão, dando a sua última palavra: “Estamos tratando de um contrato comercial, não está em jogo a honra da minha Lina. Ela não me traiu. Tenho certeza disso”. “Como? E os fatos?”, diziam os outros. “Os fatos que se danem.” E colocou a questão no pau, contratou advogado.
Sentia uma hostilidade. Uma nova era glacial se aproximando. Minha filha apareceu toda molhada. Queria ir embora. Não sabia voltar e o japonês me ofereceu carona. Peguei minha filha, que estava com a filha dele e com a filha do empresário, ouvindo histórias do jardineiro, e o segui até conseguir encontrar um lugar conhecido.
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