Ainda o pasmo do porteiro persistia, em pequenas réstias de assombro, e já os eixos das rodas do landó calcorreavam os paralelepÃpedos de uma avenida antiga. Um grande passeadoiro, onde outrora senhores de casaco negro e damas de chapéu caminhavam de braço dado nas tardes de primavera , que perdera o seu fulgor ; ao fundo o edifÃcio da antiga estação de caminhos-de-ferro.
O cocheiro , dobrado sobre si , era lesto no uso do chicote que mantinha o galope dos cavalos .Dentro da carruagem os semblantes eram pesados, sombras cada vez mais negras alojavam-se nos rostos que haviam parecido joviais umas horas antes. A tensão adquirira agora um silêncio tenso feito de rápidos cruzamentos de impaciências e consultas frequentes aos relógios. Apenas a mulher mantinha a mesma serenidade que conduzira a sua postura ao longo do serão. Lá fora a carruagem derrapou um pouco sobre a superfÃcie molhada dos carris. Um puxão firme da rédea direita fez com que a trajectória fosse corrigida, uma chispa soltou-se dos rodados.
Dois vagabundos que vasculhavam os contentores sentiram um vento frio e, quando se voltaram ,foram surpreendidos pelo negro veÃculo que cruzava a estrada com um ruÃdo ensurdecedor. Eram velhos os mendigos, tiveram medo . O mais sensato entre eles disse:
- Vamos embora. Ali não vai coisa boa.
O outro, movendo-se com dificuldade sobre uma muleta improvisada, relembrou-se do gesto da cruz e aquiesceu a ideia.
No escuro habitáculo da carruagem aquele que apresentava o rosto sulcado pelo gume perdera toda a compostura. Os olhos verdes eram um poço efervescente de ira. Dirigiu-se com veemência à mulher:
- Dê-nos agora ! Por favor! Um pouco !
Dito isto a mão dirigiu-se ao interior das coxas da mulher. Procurou afastar as pernas. As unhas longas da mão que envergava o anel brasonado golpearam a insolência deixando mais uma marca na pele do atrevido mancebo. A voz ordenou, intolerante, indiscutÃvel.
- Ainda não é chegada a hora , nem o local !
A cabeça virou-se lesta em direcção ao exterior, o olhar fixou-se na longÃnqua torre da catedral:
- Ainda há tempo – Em seguida fez soar duas vigorosas pancadas no tecto forrado a cabedal. De imediato o cocheiro acatou a ordem levando os corações dos corcéis ao limite do esforço. Pelas bocas das bestas espumava a pressa que a mulher impusera ao seu condutor. O chicote já não conhecia descanso. Os raios das rodas eram apenas borrões de negro rápido.
No horizonte, cada vez maior, cada vez mais perto , o edifÃcio da estação . Uma glória da cidade que havia sido recentemente encerrada para dar lugar a um terminal mais jovem mas certamente menos imponente e mais vazio das memórias dos homens. O vapor calara-se, as azáfamas dos bagagistas haviam cessado, o apito que anunciava a marcha da locomotiva havia sido esquecido. Junto ao grande arco da porta principal já não surgiam os vultos dos passageiros, de rosto coberto de fuligem, que iam a descanso e banhos ao agora quase extinto esplendor do hotel que ficava do outro lado da grande praça. A carruagem deu a volta e deteve a sua marcha junto à porta rotativa. No interior os globos dos candeeiros estavam velhos e sujos e iluminavam o átrio de forma deficiente. A alcatifa estava gasta. O mármore do balcão da recepção há muito que não era polido. O bronze da placa que anunciavam a existência de televisão a cores no salão de hóspedes havia ganho verdete com o descuido dos funcionários e as voltas do tempo.
Por detrás do balcão a figura grisalha, que envergava uma sobrecasaca verde, sobressaltou-se pelos dois momentos distintos que a sua mente percepcionou. Como se o tempo entre dois actos não tivesse acontecido. Pestanejou com vigor, como querendo devolver a si a percepção da lógica dos movimentos. Entre o momento de paragem do landó e o surgimento no lobby do hotel do grupo liderado pela mulher, que aparentava bastante idade nas profundas rugas e nos olhos que ganhavam a vermelhidão dos moribundos, apenas um breve milésimo de segundo havia decorrido. Atrás da figura matriarcal quatro homens cujos rostos eram máscaras de ansiedade cobertas em suor. Os seus peitos arfavam. Os punhos cerrados demonstravam que nada deteria a sua marcha.
O recepcionista estava no hotel há muito tempo , tudo vira enquanto estendia as chaves aos hóspedes e sorria uma boa-noite que por vezes não o era. Vira ministros enfurecidos após a perca de uma eleição desfazerem à cintada as nádegas das coristas , os vultos que haviam caÃdo dos andares mais altos e deixado manchas de desespero no passeio, homens que amavam o cheiro do charuto e da urina das prostitutas baratas. Distintas senhoras de sociedade que faziam das suÃtes do hotel as alcovas onde os arruaceiros urravam que elas eram grandes vadias. Houvera, também, tempos do esplendor .Quando as locomotivas enchiam o terreiro com as suas sonoras chegadas por aqueles corredores e quartos com água quente haviam passado glórias da cidade. Presidentes e senhores embaixadores, o ministro da guerra antes da mesma começar. Dormira ali o homem que venceu a maratona, havia mostrado com orgulho o ouro olÃmpico da varanda que ficava sobre a porta principal. Uma multidão enorme atirara os chapéus ao ar. Na suÃte real o maestro fizera um violino calar todas as pedras do terminal ferroviário. Os êmbolos haviam amansado o seu trepidar, os maquinistas as suas obscenidades. Da janela do seu aposento o virtuoso dedilhava com mestria todo o ar da grande gare.
A sua experiência feita da ascensão e queda daquele estabelecimento identificou rapidamente os hóspedes. Tipo problemático. “Despachar†– disse a si mesmo. Estendeu a chave e não deu especial importância ao preenchimento de qualquer formulário. Também não deu especial relevo à s insinuações que poderiam surgir ao que fariam quatro homens e uma mulher numa suÃte de hotel em plena noite de natal. Com um sorriso encolheu os ombros. Já tudo vira.Só esperava que não sujassem muito o quarto pois à s mulheres da limpeza, que chegariam pela manhã, iriam decerto pesar as varizes e os abusos da consoada.
No elevador, o último da cidade que era operado por mão serviente, perfilhava-se a figura do ascensorista. Seu nome já era parte do mecanismo de roldanas e pesos que transportava, piso acima piso abaixo, a pesada cabine metálica onde as portas gradeadas se abriam e fechavam ao toque de uma alavanca. Ao canto , o homem que contava por décadas o tempo que manobrava a máquina , o ascensor como outrora o haviam chamado ,recebia os hóspedes com um sorriso e um interrogação sobre o seu destino. Quando o grupo entrou engoliu em seco. As suas já fracas pernas tremeram um pouco. Encostou a anca sobre a parede da cabina a fim de acautelar a lassidão que sentia nos joelhos. A força era cada vez menos. Na verdade o ascensorista morria ali e estava ciente do facto. Quando lhe havia sido anunciada a doença fatal limitara-se a escutar em silêncio e a pensar que não tinha sÃtio para ir morrer em braços amigos. Só conhecia o canto do elevador onde toda uma vida decorrera em farda de paquete, que o tempo tornara coçada e patética, operando com a destreza de um sÃmio amestrado o manÃpulo . No dia em que soubera que estava a morrer o ascensorista apresentara-se ao serviço como era seu hábito. Fez duas moedas e uma nota de gorjeta.
Agora, embora a sua condição fosse já muito débil, sentia que nos bafejos daqueles cinco seres havia algo que aspirava dos aflitos alvéolos pulmonares sérias réstias de existência. Aqueles que iam ao sexto piso ignoravam o rosto pálido cada vez mais similar ao linho da mortalha, o tremor dos lábios, as farripas de cabelo eriçadas . Todos o ignoravam, excepto aquele que usava coisas de mulher. Esse contemplava-o com um gozo mórbido pespegado na expressão. O ascensorista sentiu-se incomodado. O homem que tinha os olhos pintados não desviou ao olhar. Quando chegaram ao andar de destino o homem que operava o ascensor sentiu necessidade de desculpar-se ao hóspede pelo seu paupérrimo estado. Disse com os olhos cravados no chão:
- Não posso viver para sempre.
As mãos cuidadas, onde o verniz negro engalanava finos dedos cobertos de anéis, levantaram o rosto do ascensorista e beijaram com ternura os lábios que já pouca vida tinham. A mão acariciou o rosto, as unhas incomodaram a face . O velho sentiu um ligeiro ardor. O homem jovem despediu-se:
- Não queiras. Feliz Natal !
Quando se preparava para sair revirou a cabeça e o ascensorista horrorizou-se ao verificar que, nos breves instantes que haviam decorrido, o rosto envelhecera mais de uma década. A maquilhagem esborratava-se no rosto, as pálpebras pendiam pesadas , uma papada formara-se debaixo do queixo onde um tremor persistia. A voz mantinha-se fina mas tinha agora a enfatuação dos cabarés e das noites de absinto. Zombou:
- Este é o teu último.
Em seguida a porta do alojamento fechou-se com incrÃvel violência. Caminharam até à sala. A mulher ao centro. Um circulo de cinco rostos onde a carência aflitiva tomava a forma de um envelhecimento brutal a cada segundo que passava.
As mãos da mulher tocaram a jóia que trazia ao pescoço. Algo foi murmurado. Em seguida o seu rosto que se aproximava a passos lestos do estado da decomposição ergueu-se e proferiu:
-
Centrum est obscurus. Tenebrae respiratus (1)A mão dirigiu-se à presilha do vestido e este escorregou em direcção ao soalho . A queda do negro pano exibia um corpo que contrastava em firmeza e juventude com o rosto daquela que começava, aos poucos, a abandonar a sua condição humana.
Os homens corresponderam ao gesto removendo as vestimentas e aninhando-se no chão em posição fetal. Das suas gargantas começou a sair uma estranha ladainha, uma canção de embalar de um idioma que se falava nas entranhas da terra.
As mãos da mulher, onde as unhas começavam a contorcer-se em garras , acompanharam as linhas perfeitas da sua própria silhueta. Deslizaram ao longo da curva das ancas ,cuja largura denotava o conhecimento das coisas da maternidade, antes de dirigirem ao triangulo negro e violentamente afastarem os lábios do seu sexo . Invocou:
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Orior , Oriri , Ortus (2)Das profundezas do seu Ãntimo surgiram quatro tentáculos, quatro extensões da mulher que, de braços estendidos ao céu, fazia o fogo eclodir na lareira da suÃte e as lâmpadas de todo o quarteirão explodirem. As membranas , feitas de uma carne há muito morta , atravessaram a carpete como se de vÃboras translúcidas se tratassem. Cravaram-se com violência nos umbigos dos homens prostrados no solo. O urro que ecoou nas suas gargantas era de tal forma animalesco que os cães vadios que faziam da velha gare seu covil fugiram apavorados.
Quando as carnes dos tentáculos se fundiram com as carnes dos homens uma massa viscosa, sangue dos malditos ,cheiro fétido feito das muitas mortes violentas que o compunham ,deslizou do interior da criatura que se metamorfoseava em alado pavor e alimentou os seus demonÃacos filhos.
A hiper-dilatação das Ãris cobria de um integral negro a cavidade ocular , as fauces haviam se estendido para dar espaço ao florescer dos aguçados caninos. Theofania Delasombra , Rainha dos Callicantzari mirava com orgulho o renascer da sua linhagem. No solo os homens que haviam sido belos davam lugar à s quatro aberrações que em breve saciariam a sua fome de um ano inteiro. Reclusos das grutas negras onde a sua maldição os obrigava a subsistirem com os restos cada vez mais putrefactos do banquete do natal anterior. Na torre da grande catedral o sino caminhava as doze badaladas para o nascimento do Cristo que não salvaria muita da gente daquela cidade.
Os tentáculos desvaneceram-se consumidos pelos restos ácidos da cataplasma que Theofania fizera brotar de dentro de si. As janelas abriram-se. Como crianças esfaimadas os quatro monstros voaram para a escuridão da noite. A matriarca dos comedores de homens observou ,orgulhosa, o voo da sua prole. Dividiram-se em dois grupos. O primeiro afastou-se em direcção às zonas mais povoadas da cidade, o segundo par iniciou o mergulho sobre a multidão que se concentrava junto à grande catedral para assistir à missa do galo. O seu banquete foi luxuriante.
No alto do telhado da grande estação de comboios Theofania estendia as suas longas orelhas de morcego embevecendo-se dos horrores que seus filhos semeavam pela cidade. Os gritos eram imensos , velhos , homens feitos e tenros infantes , todos pereciam à s mandÃbulas vorazes dos Callicantzari.
A grande vampira aspirou o ar da noite. Era a sua vez de se alimentar.
As fossas nasais alargaram-se, entre as enormes presas uma lÃngua bÃfida acariciou a boca; havia detectado um cheiro que lhe agradava particularmente. Perscrutou o horizonte, farejando, as orelhas atentas ao ruÃdo que procurava associar ao seu instinto olfactivo. Então os seus olhos encontraram o seu destino. Ao fundo, a alguns quarteirões de distância, brilhavam as luzes da maior maternidade da cidade. Salivou um pouco mais quando ao seu aguçado escutar chegaram os ruÃdos que vinham do berçário.
( continua )
(1) O Centro é negro . Escuridão Respira
(2) - Erguei-vos Jantar dos Sós – I em:
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13159.0.htmlJantar dos Sós – II em :http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13401.0.html