damasco
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Junho 13, 2009, 18:07:48 » |
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Inspirado no conto de Paul Auster, Cidade de vidro (em A trilogia de Nova Iorque)
Sentado na sanita, espera que a última vontade termine num cagalhão engolido pela água. Apresento-vos o homem deste conto. Desta perspectiva, digamo-lo em seu favor, parece mais pequeno do que na verdade é. A calvÃcie começa a traÃ-lo, transformando insidiosamente os seus dantes orgulhosos caracóis loiros, e que faziam a delÃcia das tias babadas (apenas a duas das suas tias, para ser exacto, já que as outras duas, as do lado paterno, sempre se mostraram avessas aos créditos da beleza), numa fraca desculpa para se pentear. Cravou os cotovelos nas pernas, quase junto aos joelhos, e apoiou a cabeça nas mãos, numa clássica posição fecal. Podemos ler-lhe um ar de enfado à medida que observa os quadros de montanhas e praias que aparecem na gasta parede adiante, como brutal confusão se tivesse encontrado naquela casa de banho, transformando-a em inesperada confluência de paisagens distantes. Suspira, pensando no disparate que despende diariamente, e quase religiosamente, com aquele apelo. Agarra uma revista onde, pode ler-se, um casal de famosos, não é desvendado qual, pensa adoptar uma criança. Já leu esta revista cinco vezes – pelo menos, cinco vezes -, e por essa mesma razão lança-a para o lado, onde outras revistas aguardam ansiosas que o homem do conto lhes pegue. Mas as revistas nem sequer aguardam, pensou. Que disparate pensar que as revistas aguardam, pensou novamente. Revistas são revistas. Este é um pensamento tão ridÃculo quanto qualquer outro que possamos ter ao longo do dia e em que nem reparamos. Acontece que me apanhei a pensar este, só isso. Subitamente, como atacado por onda de serenidade, a paz voltou ao seu rosto, e os intestinos avisaram que era hora de se levantar. Levou a mão direita junto à parede lateral onde deveria estar o rolo do papel higiénico e encontrou o frio da parede. Acabou o papel higiénico, espantou-se. Deveria ter-me precavido antes de me ter sentado na sanita. Como não bastasse já todo o absurdo que era sentar-se religiosamente naquele posição para aliviar os intestinos, falhava o papel. Segundo se lembrava, e caso a memória não falhasse tal como o papel higiénico, não restaria mais nenhum rolo no armário da entrada. Além disso, não arriscaria levantar-se pois, bem o sentia, uma catástrofe poderia abater-se no chão, obrigando-o a trabalhos maiores e sempre imperfeitos, por mais que esfregasse. Também poderia, simplesmente, vestir-se, deixando aos tecidos a função do trabalho inacabado. Maldição, murmurou, o que eu não daria por um pedacinho de papel higiénico. Apanhado por este pensamento, fruto das inesperadas circunstâncias, um pensamento tão aleatório como qualquer outro, a campainha soou, lembrando-o ainda mais do ridÃculo da circunstância. O homem deste conto não recebe muitas visitas e, sempre que as tem, são bastante previsÃveis, sabendo sempre de antemão quem o procura e porquê. Assim, a curiosidade abateu-se sobre o desejo do rolo de papel, estilhaçando-o e fazendo-o soçobrar. Estacou muito atento. A campainha tocou novamente. Maldição, murmurou olhando novamente em volta, o que não daria por um rolo de papel higiénico. O homem deste conto olhou tristemente o casal que planeava adoptar um filho, tal como afirmava a capa da revista. Para melhor compreendermos a dinâmica dos desejos do homem deste conto, revelamos que, não obstante a sua solidão, sempre espera um qualquer evento que transforme a sua vida monótona em motivo de interesse. Secretamente deseja, digamos assim, ser surpreendido pela vida. E foi no meio de todos estes desejos escondidos que o homem deste conto arrancou a capa da revista, pediu desculpa velada aos futuros pais adoptivos, e limpou-se. O terceiro toque da campainha apanhou-o a meio de novo dilema: que fazer à folha suja dos futuros pais adoptivos? Muito a nojo, dobrou exemplarmente a folha e depositou-a no caixote dos papéis. A campainha tocou pela quarta vez. O homem do conto teve a nÃtida sensação que o intervalo entre os toques de campainha diminuÃa drasticamente, denunciando a crescente impaciência de quem estava do outro lado. Levantou-se, puxou as calças e abriu a torneira, ensaboou as mãos, passou-as por água com a agilidade que a pressa permitiu e secou-as. A campainha tocou pela oitava vez, insistente. Puxou uma última vez o autoclismo e disse alto Já vou. No tempo que levou a verificar a apresentabilidade da casa de banho – vá lá saber-se por quê -, a campainha não soou novamente. À medida que se aproximava da porta foi notando cada vez com maior nitidez uma presença do lado de fora, que se anunciava através de um leve movimento de pés e uma quase inaudÃvel respiração. Chegou à porta e, sem a abrir, perguntou Quem é? Do outro lado da porta, ouviu-se um respirar impaciente, como o homem do conto tivesse a obrigação de saber, à partida, de quem se tratava. Tenho uma encomenda para si, ouviu-se. Uma encomenda para mim, perguntou o homem do conto. Sim, uma encomenda para si, respondeu uma voz impaciente. Mas eu não espero encomenda alguma. Poderá dizer-me do que se trata? Caro senhor, eu sou apenas o mensageiro. O homem do conto abriu a porta. Diante de si, um homem de face inexpressiva, barba por aparar, olhos encovados e cabelo gorduroso fez um gesto rápido, disse-lhe Bom dia, senhor, e apresentou um papel verde. Acrescentou Deverá assinar, por favor, para comprovar que recebeu a sua encomenda. Mas deve haver algum equÃvoco, hesitou o homem do conto, não me recordo de ter encomendado coisa alguma. Não há erro algum, caro senhor; além disso, nada lhe será cobrado; a encomenda é sua, sem qualquer erro. Por favor, assine para confirmar a recepção. O homem da encomenda mostrou-se tão inesperadamente firme que o homem do conto julgou cometer uma heresia caso não assinasse. Só um momento, por favor, que preciso de ir buscar com que escreva. Não precisa, adiantou-se o homem das encomendas, tenho aqui uma caneta. Pousou a caixa no chão e levou a mão ao bolso da camisa. O homem do conto pegou na caneta e rabiscou o recibo da encomenda. Então é aqui que o senhor vive, murmurou o homem da encomenda, olhando por cima do ombro do homem do conto. O homem do conto olhou-o, intrigado. Como disse? Disse que é aqui que o senhor vive; é inesperado. Julgava encontrar algo mais sofisticado. O homem do conto olhou o homem da encomenda fixamente. Conhecemo-nos de algum lado, senhor? damasco, pode chamar-me damasco; e escreve-se com letra minúscula. Conhecemo-nos de algum lado, senhor damasco com letra minúscula? Não exactamente, senhor; apenas pensei nisso quando o vi. Aqui tem o seu papel, disse o homem do conto, esticando o braço para entregar o recibo. O homem do conto ficou de caixa apreensiva nos braços enquanto o homem da encomenda desejou bom-dia, virou costas e afastou-se. Ficou ainda algum tempo a observá-lo, incrédulo com o sucedido. Quando o homem da encomenda desenhou a curva da rua e desapareceu do campo de visão, o homem do conto virou-se, entrou em casa e fechou a porta. Depositou a caixa em cima da mesa e sentou-se. A caixa era de um cartão absolutamente vulgar, sem qualquer indicação que pudesse denunciar o conteúdo. No entanto, era extremamente leve, como pouco mais que uma caixa fosse. Encostou o ouvido ao papel, vá-se lá saber-se por que receio movido, e escutou. Absolutamente nada. Depois levantou-se e rodou à volta da mesa como que tentando encontrar algo que não fizesse sentido. Mas nada. Era uma caixa perfeitamente vulgar, igual a tantas outras. A única coisa que a fazia diferente era o facto de estar na sua mesa e ter sido entregue por um estranho. O homem do conto dirigiu-se à janela e acendeu um cigarro. Lá fora, o silêncio da vida também não trouxe pista alguma e, por isso, olhou novamente a caixa. O telefone tocou. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Maldição, murmurou o homem do conto, apanhado a meio da sua concentração. Levantou o auscultador. Estou, anunciou. Não obteve resposta. Do outro lado, apenas um ruÃdo metálico. Estou, anunciou novamente. Abra a caixa, por favor, ouviu do outro lado da linha. Quem fala, perguntou o homem do conto. Sinal de chamada terminada. Ora esta, espantou-se o homem do conto. Sentou-se novamente e olhou inquieto a caixa. Apagou o cigarro e decidiu-se. Levantou-se, pegou na caixa e dirigiu-se à porta, decidido a lançá-la no lixo. O telefone tocou. O homem do conto parou e olhou desconfiado para trás, para a mesinha redonda onde, pousado em cima de duas enciclopédias, o telefone novamente tocou.
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