Por incrível que pareça, eu já morri há alguns anos atrás, raquítico como nasci. Ainda era relativamente jovem, pois tinha 43 anos, mas mereci a morte que tive apesar de toda a gente estar convencida de que foi um suicídio, que estaria algures no fundo de um poço ou que tinha sido levado pelas correntes do mar. Mas não, eu morri
- Ainda bem que morreu, pode ser que a filha se salve…!
porque fui condenado à morte. E não foi por nenhum tribunal convencional, daqueles que têm juízes, advogados e testemunhas. Uma só pessoa, ou antes, a mente de uma só pessoa desenvolveu todo o processo que culminou com a minha morte.
Alguns dos problemas que eu tinha manifestaram-se a partir dos 14 ou 15 anos, todos eles com origem ou resultantes na família miserável a que eu tive o azar de pertencer. Ainda que paulatinamente, eles foram-se acentuando e somando a outros que entretanto foram surgindo, ao ponto de poucos meses após o meu casamento eu ser assumidamente alcoólico, drogado, homossexual, pedófilo e proxeneta.
Devo ter nascido alcoólico e raquítico. A minha mãe,
- Fica aí quietinho que eu já venho.
deixava-me sozinho durante horas, com umas chuchas molhadas em vinho e açúcar, para ir vender peixe pelas portas. Mas o peixe era outro. Enquanto o meu pai
- Este gajo não é meu filho…!
bebia de manhã até à noite, começando pelo bagaço como mata-bicho e acabando com carrascão, a minha mãe prostituía-se na estrada com camionistas. Quando tinha 7 anos, a dar os primeiros passos na escola primária, acabei por compreender
- Oh pá, já sabias que és um filho da puta?
que a fruta e o pão fresco, que quase nunca abundavam, significavam que o dia lhe tinha corrido bem. Mais tarde descobri ainda que era condição necessária que o meu pai
- Ah sua vaca, toma lá para a próxima não me esconderes o dinheiro.
não lhe tivesse roubado o dinheiro antes de ser gasto.
Bebi sempre até 5 minutos antes da minha morte. O bairro onde vivíamos era também miserável. Do cigarro passava-se para o charro e deste para os comprimidos misturados com álcool. Passamos pelo cheiro da cola e depois para o diluente puro, quando já não conseguíamos roubar mais nenhum vizinho, e acabamos todos quase sem braços para nos injectarmos.
Por vezes conseguíamos arranjar um bom dinheiro com uns gajos ricos de fantasias sexuais, que não era gasto em pão e fruta, como fazia a minha mãe, mas em vestimenta baril, ou bué de fixe, conforme o vocabulário então em voga. E o meu corpo raquítico lá se compunha com uns ténis, calças, T-shirt e óculos de sol a preceito. Tudo de marca, como convinha. Até chegámos a ter carros, de entre os roubados, modificados por uma oficina que comprava tudo o que lá levássemos.
Só descobri que era pedófilo quando a minha única filha tinha 3 anos. Abusei dela até aos 15 anos, altura em que ela ultrapassou o meu raquitismo. Depois disso tive que me aventurar com crianças vizinhas e irmãos mais novos dos meus amigos.
Durante todo este tempo fui empurrando a minha mulher para os camionistas
- Fica aí quietinha que a mamã já vem.
e a criança ficava sozinha durante horas, com umas chuchas molhadas em vinho e açúcar.
A minha morte começou a ser desenhada quando a minha mulher apareceu morta num pinhal após 3 dias de buscas. Vi-me sozinho em casa com a minha filha. Aí resolvi que não iria querer que nenhum filho da puta a empurrasse para os camionistas enquanto o meu neto
- Fica aí quietinho que a mamã já vem.
iria ficar sozinho durante horas, com umas chuchas molhadas em vinho e açúcar. Enquanto o meu genro
- Este gajo não é meu filho…!
Foi por isso que desapareci para parte incerta, raquítico como nasci, apesar de toda a gente estar convencida de que foi um suicídio, que estaria algures no fundo de um poço ou tinha sido levado pelas correntes do mar. Mas não, eu morri
- Ainda bem que morreu, pode ser que a filha se salve…!
E salvou-se. Uma alma caridosa deu-lhe guarida e casou-se com um gajo às direitas. E eu já não sou o que era, nem o que seria, porque não sou avô de um filho da puta.
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