Era pleno Inverno, tinha a porta semi-trancada, o mundo aferrolhado junto àquela lareira, cintilante, quadrada, acima do terraço. Sentei-me. Prorroguei um último pai-nosso como se não pusesse os pés numa Basílica há uma eternidade, e lá há diamantes, lá há mármore, lá há o colossal, lá há o frio arrepiante do mistério, lá há recantos de escuridão e de lá ouvi eu muitas vezes dizer que advém a luz, sobre as enormes diagonais de vidro presas ao tecto, com o mesmíssimo esgar do tecto da minha casota, que sucumba com cada tiro dum floco de neve gelado. E o frio é a pior munição.
Mandei convencionar uma última ida para lá do cume das montanhas, sobre a verdura dos prados, sobre as árvores desfolhadas, os caminhos que vão dar a Roma, a cavalo. Já não escrevia há duas décadas e não pressinto que este cúmulo seja uma epístola, porque escrevo sobre o meu sangue como o Santo Senhor o fez, escrevo sobre o chapo da minha derme que sobressalta a um amontoado de lama avermelhada, grito e gemo, nada destes pensamentos ficam, tudo irá comigo e não ficará sequer uma cópia sobre a minha sepultura.
Pressinto-me no meio da imensidão, como me pressentia há 10 minutos que não iria retornar. Cada frase demora uma vida a escrever. Expirei o contracto. O meu pagador irá aparecer, irá punir-me, Ira há.
5 anos antes:
— Por várias mortes, juras que sucumbirás na solidão e irás padecer de todos os males que desenvolveste e todas as mentiras que pregaste até que ao teu jazigo te atirem e lá sejas esquecido como sempre deverias ter sido?
5 anos depois:
Feito de repetições é o mundo, sinto-me uma repetição. Comporto uma repetição, que se repete na minha mente e repete tudo o que já pensei, já concluí, já descobri…
5 anos antes:
— Sua Besta do Mal desaparece, some-te e sê castigado pelo que Reina o Céu e a Terra! Deixa esse mortal livre do teu tormento!
5 anos depois:
Alguém se insere no interior da minha casa, à espera do sofrimento desmedido o meu olhar percorre uma vez mais o infinito campo, verde da natureza, das ervas, das flores, dos insectos pretos e até mesmo esverdeados, do céu azul e tão puro, que não tem nenhum dos objectos que eu esperei que viesse a ter, daqui a 500 anos, das nuvens que o ornamentam de dia, e repleto das estrelas que sei que não foram dormir, desanexas das influências do nosso dia. Olho a árvore que reverbera luz e som e admito-o numa voz que impugne e a sua unicidade, no sentido de emancipar o punhal do ser mascarado, monárquico, que abeira ao meu leito de sangue, que em cinco segundos tresandaria a óbito. Vejo uma última vez a luz que advém da janela, uma frincha infinita de peças vítreas, que constituem este Universo Vítreo, uma vitrina que se dispõe a expor aos nossos olhos a restante vitrina. Dali vem a luz, daquela janela, e não de uma qualquer galeria de uma Catedral, ou Igreja, ou Basílica, porque só do sítio já é ‘outra luz’.
E esta foi a minha história, ainda que não tenha tido Santa Unção em memória do pobre coitado que vivia em mim, inocente e nada culpada do ‘demónio’ que eu era.
E foi assim uma vez.
Digo uma, mas se fosse vivo saberia contá-las.
A quem quisesse ouvir.
Desde que fossem ao meu cativeiro.
No meio do prado e da luz, no meio da liberdade.
Da liberdade condicionada.