O UMBIGO DO MUNDO - Capítulo I

Capítulo I

Parte 1

Chile - Santiago

Chile - Cordilheira dos Andes

Chile - ValParaíso

O dia escurecia ternamente, o fim da tarde refulgia os seus últimos feixes de luz. David passo a passo desprendia os pés do plano que os sustinham, tonalizando incessantemente, progrediam num movimento rectilíneo.
   A calçada, que revestia o chão cujo nome específico era passeio, despontou um noctambulismo entre os corpos que nela deambulavam. Uma saturação de névoa aguçou a visão de David, o pescador que na sua vida tentou filar o isco no maior peixe à face da Terra, que por acaso nunca existiu: um peixe cujas dimensões sobressaíssem entre todos os outros; um estudante e ouvinte de toda a história mundial, de todos os segredos que por alguma razão apenas tinham enunciado e nunca uma resposta firme e compacta. O caminho que dava seguimento à interface do seu automóvel atemorizava a fronte insegura do marinheiro de alto mar. Instantaneamente, já se encontrava no seu interior e presenciava, em todas as outras realidades, as vidas a desvanecerem-se rapidamente e os corpos a desintegrarem-se, venerados por todos os outros em que a deterioração era ainda mais veloz.
   Estacionara o carro na berma de uma estrada com bastante trânsito, na capital do Chile, o seu país. A sua casa ainda se localizava, superficialmente, distanciada de Santiago, situava-se na margem do pacífico, numa cidade: Valparaíso, a segunda maior cidade do Chile, com o porto mais importante de todo o país — daí o seu emprego — e trezentos mil habitantes. Dilacerou algum tempo a pensar nas surpresas que, naquele dia, lhe surgiram: conheceu uma boa parte da sua futura família, do lado do futuro genro, o pai do noivo da sua filha que tinha o casamento marcado uma semana e tal subsequente àquele dia. Finalmente acabou por ligar o carro e marchar inesperadamente no momento errado, mas do qual se conseguiu safar: um carro surge-lhe na sua dianteira, sem qualquer aviso prévio, mas com uma expressão assustadora, e se não fosse o pé decidido do condutor eles tinham tido outro destino. O acelera travou imediatamente depois de se aperceber da colisão de que escapara e raspa levianamente outro veículo inocente que sem expressão permaneceu calado e deixou o acelera prosseguir sem assumir a responsabilidade do arranhão.
   David apura o banco de trás onde se encontravam a maioria dos passageiros e com um ar dominante reflecte a sua satisfação pela salvação das suas dermes do acidente, afinal quando sentem o perigo também deflagram pela sua vida.
   — Os condutores nas estradas estão cada vez piores! — Afirmou com os olhos a brilharem por causa de relatar um acontecimento idêntico ao que costumava ver no seu país.
   — Não se pode ligar. — Sobrepôs David com o intuito de esquecer a situação e avançar na estrada até casa. Não podia dar tanta atenção às companhias, já que todo o caminho, desde o aeroporto até ao automóvel, sentira-se tão sozinho dado que ninguém lhe dirigira a palavra.
   — Está a anoitecer. — Disse a senhora, a esposa de Carried, o pai do futuro genro de David. Porém ninguém contestou qualquer relato, não havia nada a dizer, todos estavam sozinhos: cada um mergulhado nos seus próprios sonhos que só a eles lhes dizia respeito, a destroçarem imagens dos seus acompanhantes, de modo a conseguirem desenhá-los psicologicamente e a definirem os seus graus de boas pessoas.
   — Este país é maravilhoso, aposto que vamos ter mais que razões para deslumbrarmo-lo e conhecermo-nos melhor. — Carried, numa tentativa de debater hipoteticamente, inovou o diálogo, contudo David continuava disperso nos seus pensamentos e não dissipou uma molécula dos seus neurónios para tentar virar a cabeça para Carried e acenar ou indicar que estava a ouvir, antes preferiu não assomar do seu mundo e deixar que uma má relação se acentuasse.
   A esposa de Carried, a senhora Maria, incide com os dedos no ombro do seu marido, dando a entender-lhe que não valia a pena insistir, acabou também, daquele modo, por proferir gestualmente algo que não deveria, e mudar a acepção de como era David. Por fim disse algumas palavras, mas com um solavanco não se conseguiu entender. David mergulhava cada vez mais na estrada e nas curvas que se estendiam na cordilheira dos Andes. Ao fim de um agrupado de tempo os passageiros acabaram por adormecer, no entanto, a viagem até a Valparaíso era curta. Consequente dos solavancos, acabaram por acordar.
   — Já estamos a chegar. Vou ter de deixar o automóvel na oficina para mudar o óleo e como é de noite só podem fazer-me isso amanhã. Vamos ter que ir a pé até a casa. Não é muito longe, apanhamos o elevador, depois descemos, e num espaço de quinze minutos estamos lá.

Continua...