A dor aguda no peito tentava convencê-lo que estava morto, nada batia ali, mas aquela voz dentro da sua cabeça insistia para que Dante continuasse a correr atrás da Branquinha.
***
Aurora não tinha tempo para regatear curvas a cada nova dezena de metros. Fugia a um gandulo desenvolvido capaz de alcançar a pé a maldita ambulância que derrapava no gelo mesmo nas rectas mais pacÃficas. Era a paga por ter feito muito por baixo o orçamento daquele trabalhinho. Como se tivesse concorrência na estranha profissão que escolhera. E ainda que tivesse. Ninguém andava aos anjos como ela. Tinha a experiência e as cicatrizes. Tinha cinco quilos de parafusos ortopédicos que brilhavam nas radiografias e anunciavam o tempo frio como um coro de crianças louras.
Anjinhos, pensou Aurora, sem pingo de humor.
Como faria a uma bóia de salvação, usou ambos os braços para apertar o aro do volante. Por baixo das luvas sem dedos vibrava a ambulância, uma Dodge Ram antiga e demasiado grande, desviada dum ratoneiro determinado em reavê-la a qualquer custa. Mesmo à custa das noções vigentes da realidade.
A viatura movia-se como um pavilhão cúbico naquele piso permeado a gelo negro. Na precipitação, patinava mais do que rodava.
Os olhos de Aurora resvalavam ao retrovisor que balouçava num arame fora da janela. Não precisava de o fazer para perceber que perdia terreno para a figura enorme enfiada em roupas polares e botas de Inverno que, mesmo sendo ela daltónica, desconfiava serem garridas. Era a última vez que tentava matar alguém com um agrafador industrial. Dois grampos de quinze centÃmetros a adular-lhe o bucho, uma navalha encravada no cachaço, e o sacana ainda conseguia ser mais rápido que um veÃculo motorizado. Por aquele andar, o mesmo bafo fedorento que lhe dera vómitos quando o homem chegara a sua cara à de Aurora ao tentar estrangulá-la estaria a embaciar-lhe o retrovisor não tardava nada.
Isso porque Deus e Aurora não se davam. Se de mais provas tivesse precisado ao longo da vida, a visão do pesadelo a arranhar a carroçaria da ambulância resolvia essa questão duma vez por todas. Havia muito sangue de anjo entre ela e o Senhor.
Lá atrás, uma manápula granÃtica fincou as unhas no metal enferrujado da Dodge Ram. Aurora rodou o volante para um lado e para o outro, procurando sacudi-lo. Os pneus perderam a aderência e a caçadora teve a sensação de que voava. Se fizesse um peão ali, morria. Ninguém cá ficava, ninguém vivia para sempre, mas Aurora estava sempre disposta a arriscar.
A viatura, quatro rodas oito centÃmetros acima do pavimento, abalroou uma enorme pá de gerador eólico caÃda por terra, coberta de neve e ferrugem. Por sorte, o embate corrigiu a rota da viatura, vindo a nivelar cinco metros à frente no sentido do caminho que continuava a estreitar. Deus podia odiá-la à vontade, pensou Aurora. Contentava-se com o amor que o diabo lhe tinha. Estava sempre do seu lado, esse, incentivando-a ao melhor e ao pior. Contornou o queixo sobre o ombro direito e piscou o olho.
«Tudo bem aà atrás, miúda?»
«Não sou miúda nenhuma.»
«Não mijes no meu anjo, por favor.»
«Olhe, coninha da mãe, sim?»
Lindo. Aurora sempre tivera um fraquinho por anjos sem asas, caÃdos em desgraça, postos de parte. Transportava dois no compartimento traseiro. Um deles, o anjo tagarela da Baronesa, vinha agora muito caladinho, a sua voz transformada numa mera dor de cabeça. Mumificado em faixas de plástico de bolinhas de ar, valia uma pipa de massa caso o conseguisse entregar nas mãos da velhota. Se pudesse ser, sem um único arranhão. O outro anjo era o que tinha a boca suja e o casaco de peles branco, uma rapariga magrinha, de olhos pretos que não diziam tudo o que já tinham visto. Estava de momento enojada com a sua inépcia em, à vista do terror puro, controlar o seu processo urinário.
«A última vez que fiz nas cuecas devia ter uns sete anos.»
«Deixa lá. A ver pelo calor húmido que sinto nas calças, não foste a única. Devo estar quase na idade de voltar às fraldas» respondeu Aurora, adivinhando a próxima curva. «Segura-te, miúda!»
«Não sou uma miúda, cabra gorda» protestou o anjo, olhando à sua volta. «Esta não é a Branquinha do Dante?»
«Não cheguei a perguntar-lhe como se chamava.»
Tinha recomeçado a nevar. Aurora duvidava que o limpa pára-brisas daquela caixa rodada funcionasse. Duvidava, mas puxou o botão no tablier. A escova da direita ainda arranhou três palmos de óleo castanho-escuro no vidro antes de renunciar. As nuvens estavam tão afundadas que pareciam raspar o tejadilho da ambulância. A Cidade Baixa não via o dia há quase duas semanas. Era assim, no inverno. Era assim, o ano inteiro. O sol não nascia para todos e Aurora sentia-lhe a falta. Tudo faltava por ali. E ela era apenas uma turista na cidade onde nada acontecia. Perdida num depósito de monstros dentro de um buraco fundo na terra. Coisas velhas meio enterradas na neve, sussurrando as suas pequenas maldades.
***
A pastilha de vitamina C, um sol ardendo à superfÃcie do copo de água de nascente da Baronesa de Aradia. Era a mulher mais velha que Aurora alguma vez vira. Pensava ser impossÃvel viver-se até à quele adiantado estágio de decrepitude e, no entanto, ali estava a Baronesa. O carimbo oficial da senilidade pairava sobre a sua cabeça mirrada, detendo-se apenas à espera de mais um presente mal cheiroso em fraldas de seda. Homens-menino com cara de anjo que nunca sorriam atarefavam-se à sua volta. Dir-se-ia que defendiam a sua senhora do avançar do tempo com a mesma dedicação com que lhe traziam tudo o que porventura desejasse.
Aurora fora um desses desejos, trazidos a casa. Sentou-se de perna cruzada num cadeirão de costas muito altas, algo apertado para o seu corpanzil, numa sala repleta de tralha empoeirada e onde cheirava a cera derretida e fósforos queimados. Era uma divisão demasiado quente e sombria, iluminada apenas pela extrema palidez da velha. O cabelo dela era de um negro cerrado mas o rosto de beleza caducada mostrava os anos todos. Uma palhinha de pinta clássica germinava no copo das vitaminas com sabor a limão e subia até aos lábios finos da Baronesa. A outra ponta fora ali colocada com habilidade por um dos mordomos que, posteriormente, desaparecera. Aurora tinha a certeza que assim que a velha sussurrasse, esse, e outros, estariam de volta. Antes mesmo, até. O casarão devia ter por todo o lado esquadrões de homens-anjo sisudos vestidos de negro, extremamente educados e prontos a servi-la.
A Baronesa chupou lentamente as vitaminas. O silêncio era sufocante. Quando a mulher abriu a boca, Aurora foi esbofeteada por um odor a roupa velha guardada num baú há demasiado tempo.
«Colecciono anjos» disse a Baronesa de Aradia, numa voz que já não era uma voz. Não parecia ter agudos, não parecia ter graves. «Possuo muitos. Esta casa está cheia deles. São felizes aqui. Mais do que alguma vez fui. Essa felicidade é o meu sustento. Como pode ver, a noite já resmunga à minha volta. Tento permanecer acordada sob o peso de tantos anos estragados. Quanto tempo me restará até ver a luz do meu último dia? Essa luz amarga e final que tanto temo e me impede de sentir amor algum pela mortalidade.»
Aurora conservou um silêncio táctico. Talvez, naquele atropelamento e fuga das palavras, houvesse um propósito. Seria frustrante se o molho de notas a cheirar a novo que um dos niquentos mordomos, largara na sua mão quando a fora visitar ficasse sem seguimento. “Muito mais dinheiroâ€, dissera-lhe o mordomo, falando sem mostrar os dentes.
«Os anjos não têm essa inibição. Não podem morrer. Mesmo os caÃdos, como o arcanjo que aspirou a um trono mais elevado que as nuvens sobre a terra e como castigo de Deus foi arremessado ao abismo com a sua hoste de anjos. Meu pobre Samael… Para o encontrar, sacrifiquei a minha vida e a daqueles que mais me amavam. Fiz tudo sem remorso, na esperança de um dia colher os frutos da minha demanda. Fi-lo pelo amor que lhe tenho» os olhos da mulher bruxulearam, «e por desprezo a tudo o resto neste mundo.»
«Também já fui uma mulher apaixonada» pensou Aurora, detendo-se a tempo de o dizer em voz alta. Aquele preâmbulo não era indicativo de que a Baronesa buscava a sua aprovação. A mulher nem deveria saber o que fazer com ela. Ficou a ouvi-la chupar na palhinha, produzindo um som bastante desagradável parecido com aqueles que faziam os motores velhos.
***
O obsoleto e muito carregado Kamaz avançava com lentidão pela Número Sete. Fazia-o à revelia de um pingo de bom senso ao qual, por qualquer razão, o condutor era impermeável. Os poucos veÃculos que se podiam ver no viaduto rodavam todos na direcção contrária. Em unanimidade, afastavam-se da Cidade Baixa. Era fácil perceber porquê.
Aurora deu carta branca ao seu queixo para que lhe caÃsse aos pés. O panorama que começou a concretizar-se assim que iniciara a descida em espiral ampla sob as nuvens mal cheirosas era muito pior do que imaginara. O que fora que a Baronesa lhe chamara? Lembrou-se, quase instantaneamente. “Sheolâ€. Um nome perfeito para uma metrópole monolÃtica sepultada no mundo. O sÃtio ideal para o anjo da morte se esconder.
O camião teve de mudar da faixa da direita para a do meio para evitar um automóvel parado na ponte. Duas pessoas, um homem e uma mulher envergando roupa quente e presumivelmente colorida, empoleiravam-se na estrutura. À vista de Aurora que seguia à pendura no pesado, saltaram para o vazio de mãos dadas. Aurora, num gesto impotente, pressionou uma mão contra o vidro, que vinha subido para impedir que a atmosfera da Cidade Baixa infectasse o mais respirável que traziam da baÃa. O condutor, um homem obeso e de bigode farfalhudo chamado Tito, deu-lhe uma cotovelada cúmplice.
«Quase que não faço uma corrida para estes lados sem que veja uma cena dessas» cacarejou ele, enquanto mascava um tabaco bem preto que usava também na camisa em forma de nódoas impossÃveis de remover. «É mais à volta, sabe? Esses pobres diabos que vão trabalhar para a baÃa mas que têm de voltar para casa ao fim do dia. Não aguentam. Imagine que tem um dia mau lá no emprego, vem deprimida ou farta da vida. Imagine que depois de todo o mal que lhe acontece ainda tem de voltar para cá. Olhar para isto tudo. Viver na Cidade Baixa é como morrer de cancro aos gritos. Se calhar, se fosse eu, também pulava. Se calhar, passarmos a ser um borrão deprimido de tripas e sangue no asfalto é a melhor maneira de mandar a vida à quela parte.»
Aurora nada disse. Esperou que todos os pêlos do corpo deixassem de estar arrepiados. Olhou pelo retrovisor do seu lado. Os piscas do automóvel dos suicidas ainda pestanejavam lá atrás. Depois, desapareceram no véu de nuvens quando o declive da Número Sete se acentuou e a realidade do local que Aurora se preparava para conhecer parecia legitimar por inteiro o acto tresloucado do casal dos blusões de penas.
EdifÃcios gigantescos cresciam como dentes tortos e cariados, apoiando o seu peso incalculável nos vizinhos mais próximos, num emaranhado de construções que se espalhavam como tumores. Torres góticas competiam pelas melhores artérias da cidade com as de vidro outrora futurista, mas ainda assim de aspecto deslocado, e os beirais de todas as estruturas eram domÃnio dos enxames barulhentos de pombos doentios que se atiravam uns aos outros instigados pela demência e pelo desespero. Picos metálicos polvilhados de caca de pássaro esticavam-se para as nuvens que permaneciam inalcançáveis, como perguntas sem resposta. Havia uma tonalidade amarela e mosqueada na atmosfera que dificilmente podia originar nas escassas janelas iluminadas ou nos candeeiros de rua que, dali, quase nem se viam no fundo dos vales de concreto do agora, do então e do nunca. Era uma paisagem terrÃvel, cromaticamente incorrecta e interminável, que Aurora não acreditava estar realmente a ver.
«O meu avô viveu aqui em novo» disse Tito, manobrando prudentemente o volante enorme do Kamaz, agora que se aproximavam do nÃvel inferior. «Dizia que era capaz de aguentar tudo o que a cidade lhe atirasse à cara. Tudo menos as pessoas que choviam constantemente do céu. O que não falta por aqui são pontes e viadutos e arranha-céus a dar ideias aos pobres coitados, sabe? Quando descobriu que volta e meia eu tinha de trazer o camião para cá, sabe o que foi que me disse ele? Na Cidade Baixa, não vale a pena perdermos tempo a olhar para trás do ombro a ver se alguém nos segue. Temos de olhar é para cima. Para as nuvens. Nunca se sabe quando o tempo muda e começam a chover desgraçados.» Tito ponderou no que tinha dito, mastigando mais um pouco debaixo do bigode. «Sabe que nome lhes dão por aqui? Aos que se atiram?»
«Não…»
Tito sorriu-lhe com os dentes todos pretos.
«Anjos.»
***
«Acredita?» Perguntou a Baronesa de Aradia.
«Em anjos? Pagaram a minha casa e financiam o meu estilo de vida errático» respondeu Aurora.
«Não digo as estátuas que vai roubar aos mausoléus, aos museus ou aos jardins das traseiras de uns para vender a outros. Anjos, como os que são falados nos livros sagrados. Os verdadeiros. Acredita?»
Aurora apenas passou a mão pelo seu cabelo louro sujo preso num rabo-de-cavalo e suspirou. Era uma oportunista. Costumava acreditar no que lhe desse mais jeito acreditar e esperava que aquele gesto satisfizesse a mulher no que a alguma resposta dizia respeito. O que outrora poderia ter sido um sorriso assomou misteriosamente no rosto decomposto da Baronesa.
«Fiz-me uma octagenária respeitável trinta anos atrás. Morrer era a sequência mais lógica a dar à minha vida, mas nunca fui de fazer o que se esperava de mim. Também não me agarrei à vida porque o meu desejo era enriquecer a multidão de médicos que ainda hoje pensam poderem curar-me dos males de que padeço. Podia ter morrido. Seria fácil. À minha volta havia suficientes abutres para um funeral condigno e do mundo que eu conheci restava muito pouco. Pelas costas chamavam-me louca e velha. Com alguma razão. A minha vida devia-lhes parecer uma perda de tempo a roçar o trágico. Deitada fora em nome duma quimera. Mas tinha a minha desculpa de viver e nunca desisti. Passei uma centena de anos à procura de um anjo. Um anjo em particular. O mais belo de todos, a quem chamavam a Estrela da Manhã.»
«Conheço pelo menos duas figuras bÃblicas à s quais por vezes deram esse nome» disse Aurora. «Uma é Jesus Cristo. A outra, Lúcifer.»
«É uma mulher instruÃda.»
«Negoceio em anjos. Mal de mim se não fosse. Há quem julgue que um e outro são o mesmo, mas tenho a certeza que a Baronesa saberá ver a diferença. Qual deles quer?»
Olhos centenários brilharam com um fervor furioso e a sombra de um sorriso voltou a aparecer no rosto da velha. Como perguntando se era realista pensar que alguém dedicaria uma centena de anos à procura dum comum messias de pé descalço.
«Lúcifer, claro. Finalmente, julgo tê-lo encontrado.»
parte 2:
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,25317.0.htmlparte 3:
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,25318.msg79809.html#msg79809