gdec2001
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« em: Outubro 02, 2009, 22:35:30 » |
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Canção 5
JUNTO DE UM SÊCO, fero e estéril monte, Inútil e despido, calvo, informe, Da Natureza em tudo aborrecido; Onde nem ave voa ou fera dorme, Nem rio claro corre ou ferve fonte, Nem verde ramo faz doce ruído; Cujo nome, do vulgo introduzido, É Feliz, por antífrase infelice; O qual a Natureza Situou junto à parte Onde um braço do mar alto reparte Abássia da arábica aspereza, Onde fundada já foi Berenice, Ficando à parte donde O Sol, que nela ferve, se lhe esconde;
Nêle aparece o cabo com que a costa Africana, que vem do Austro correndo, Limite faz. Arômata chamado; Arômata, outro tempo, que, volvendo Os céus, a ruda língua mal composta Dos próprios outro nome lhe tem dado; Aqui, no mar, que quer apressurado Entrar pela garganta dêste braço, Me trouxe um tempo e teve Minha fera ventura. Aqui, nesta remota, áspera e dura Parte do Mundo, quis que a vida breve Também de si deixasse um breve espaço, Por que ficasse a vida Pelo Mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias, Tristes, forçados, maus e solitários, Trabalhosos, de dor e de ira cheios; Não tendo tão-somente por contrários A vida, o sol ardente e as águas frias, Os ares grossos, férvidos e feios, Mas os meus pensamentos, que são meios Pera enganar a própria Natureza, Também vi contra mi[m], Trazendo-me à memória Algüa já passado e breve glória Que eu já no Mundo vi, quando vivi, Por me dobrar dos males a aspereza, Por me mostrar que havia No Mundo muitas horas de alegria.
Aqui estive eu. com êstes pensamentos Gastando o tempo e a vida; os quais tão alto Me subiam nas asas, que caía (E vêde se seria leve o salto!), De sonhados e vãos contentamentos, Em desesperação de ver um dia. Aqui o imaginar se convertia Num súbito chorar e nuns suspiros Que rompiam os ares. Aqui, a alma cativa, Chagada tôda, estava em carne viva, De dores rodeada e de pesares, Desamparada e descoberta aos tiros Da soberba Fortuna, Soberba, inexorável e importuna.
Não tinha parte donde se deitasse, Nem esperança algúa onde a cabeça Um pouco reclinasse, por descanso. Tudo dor lhe era e causa que padeça, Mas que pereça não, por que passasse O que quis o Destino nunca manso. Oh! que êste irado mar, gritando, amanso! Estes ventos, da voz importunados, Parece que se enfreiam! Somente o Céu severo, As Estrêlas e o Fado sempre fero, Com meu perpétuo dano se recreiam, Mostrando-se potentes e indignados Contra um corpo terreno, Bicho da terra vil e tão pequeno.
Se de tantos trabalhos só tirasse Saber inda por certo que algúa hora Lembrava a uns claros olhos que já vi; E se esta triste voz, rompendo fora, As orelhas angélicas tocasse Daquela em cuja vista já vivi; A qual, tornada um pouco sôbre si , Revolvendo na mente pressurosa Os tempos já passados De meus doces errores, De meus suaves males e furores, por ela padecidos e buscados, Tornada (inda que tarde) piedosa, Um pouco lhe pesasse E consigo por dura se julgasse; Isto. só que soubesse, me seria Descanso pera a vida que me fica; Com isto afagaria o sofrimento. Ah, Senhora! Senhora! E que tão rica Estais, que, cá tão longe, de alegria Me sustentais com doce fingimento! Em vos afigurando o pensamento, Foge todo o trabalho e tôda a pena. Só com vossas lembranças, Me acho seguro e forte Contra o rosto feroz da fera Morte, E logo se me ajuntam as esperanças Com que a fronte, tornada mais serena, Torna os tormentos graves Em saüdades brandas e suaves.
Aqui com elas fico perguntando Aos ventos amorosos, que respiram Da parte donde estais, por vós, Senhora; Às aves que ali voam, se vos viram, Que fazíeis, que estáveis praticando, Onde, como, com quem, que dia e que hora? Ali a vida cansada se melhora, Toma espíritos novos, com que vença A Fortuna e Trabalho, Só por tornar a ver-vos, Só por ir a servir-vos e querer-vos. Diz-me o Tempo que a tudo dará talho; Mas o Desejo ardente, que detença Nunca sofreu, sem tento Me abre as chagas de novo ao sofrimento.
Assi[m] vivo; e se alguém te perguntasse, Canção, como não mouro, Podes-lhe responder que porque mouro.
Luis Vaz de Camões
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