Laura Azevedo
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« em: Outubro 24, 2009, 21:45:25 » |
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Detenho o meu olhar na ponta dos teus dedos, como se eles fossem uma orquestra de sentidos e de oportunidades que me ditasse as regras de todos os meus caminhos. Detenho o meu olhar na borda perfeita dos teus lábios, como se eles pudessem devolver-me, ou retirar-me, a coragem, a força, o sentido. Detenho o meu olhar no cÃrculo perfeito da tua retina, no abrir e fechar das pálpebras redondas, do esgar lento ou abrupto do sobrolho, como se pudessem ser o mapa que, inevitavelmente, me guia; que serve de ponta de lança para as minhas reacções, para os meus sentimentos, para as minhas dúvidas e inseguranças. Detenho-o. Detenho-me. Sou a personalização da Senhora Expectativa e essa minha vulnerabilidade não te incomoda: é, pelo contrário, o trampolim egoÃsta que te impulsiona a agir com a certeza de que tudo poderá ser dito, ou escolhido, porque o meu olhar manter-se-á, independentemente disso, na tua direcção.
[Chove na rua. Gabardinas e guarda-chuvas empoleirados em entradas de restaurantes, de cafés, de esqueletos que circundam por aqui. Conversas serenas, mantidas entre uma garfada e outra, com metade dos olhos no rosto do outro e a metade restante no pedaço de carne que se encosta ao bocado de arroz, ao bocado de carne dos lábios, às entranhas húmidas dos corpos. Chove na rua. Chove, aqui, no pedaço de sal que quase me cai dos olhos.]
«A vida é um jogo» – dizes-me tu nas entrelinhas de tudo o que me dizes. Os teus olhos não fitam os meus sem o tórrido sentido de ironia crispado pelo meio das pestanas, como fogo que me é lançado pelos meus olhos adentro, como tochas inundadas de álcool que flamejam violentamente entre nós os dois, como se a distância e a incapacidade de a ultrapassar pudesse queimar-me o corpo todo, por dentro, com esta revolta medonha e esta frustração impotente de ter os lábios cosidos.
[Não estamos sozinhos.]
«A vida é um capricho» – dizes-me tu nos silêncios de tudo o que ages. Um capricho medonho, com cheiro falso a liberdade que tudo tira dos outros, sem a menor noção disso mesmo, sem qualquer preocupação em respeitar as vontades e as necessidades de permanência, de sentir, de ser. Um capricho egoÃsta que só reconhece a sua necessidade, que se ri à s gargalhadas das fragilidades dos outros, que nem sequer se esforça por olhá-las de frente, que não sente, que não chora, que não tenta agradar, que não procura tranquilizar – que não sente remorsos. Detenho o meu olhar no teu olhar: esse olhar redondo, silencioso, como se todo ele estivesse cheio de raiva, cheio de questão de ser frio e seco e morto por dentro. Morto, por dentro.
Enquanto detenho os meus olhos em tudo o que és tu, as palavras do que dizes provocam este eco gritante dentro do meu cérebro e cada segundo parece ser muito mais do que isso e cada silêncio, entre cada palavra, parece ser muito mais do que silêncio. Não vês, cego no teu capricho, que os meus olhos são luzes de fogo à tua frente, iluminadas pela paixão que se sentou sobre as rochas do meu peito e que vai molhando os pés, distraÃda, a olhar as nuvens e o sol, no meu estômago. De cada vez que as tuas palavras resvalam secas e surdas, o sol desaparece por trás das nuvens e uma onda forte de frio fá-la tremer tanto que toda eu me quedo nesta agonia de sentir o estômago turvo com os pés apressados dela que teimam sair de mim e bater violentamente sobre o meu peito. De cada vez que batem sobre o meu peito, não consigo respirar. Fico paralisada. Fico paralisada a vê-la. Fico paralisada a sentir a dor. Fico paralisada ao olhar para ti.
[Não estamos sozinhos. Chove lá fora. Gabardinas e guarda-chuvas empoleirados por todo o lado. Corpos ocupados. Conversas casuais mantidas durante o jantar. A nossa mesa está vazia, servindo apenas de apoio aos teus braços cruzados, cerrados sobre ti mesmo, incapazes de me deixar entrar nesse abrigo quente onde queres ficar sozinho.]
Detenho o meu olhar na ponta dos teus dedos, como se eles fossem uma orquestra de sentidos e de oportunidades que me ditasse as regras de todos os meus caminhos. A ponta dos teus dedos. Os teus lábios. O teu olhar. Detenho-os. Detenho-me. Respiro fundo. Cerro os maxilares. Deixo de me sentir de tão dormente que estou, de tão dormente que me decido ficar. Vencer é saber também quando desistir e deixar de dar, ciclicamente, ao outro o sabor da vitória constante sobre nós.
[E arranco, sozinha, pelo caminho que os meus olhos, os meus dedos e os meus lábios me levam. Sem ti. Sem esse pedaço de ti que não sabe permanecer.]
[Estou sozinha.]
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