NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Outubro 28, 2009, 12:18:15 » |
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O Western Star demorava-se na berma duma estrada paralela à West Tucson-Ajo sujeitando-se à inclemência de um verão excepcionalmente inclemente, mesmo para os padrões do Arizona. Os poucos, mas bons, castelos de nuvens altas de algodão branco que o PacÃfico sonhador empurrava aproveitando o resguardo da noite em direcção a leste através da costa ocidental americana chegavam ao Arizona e eram rapidamente pulverizados pelo nascer de um sol que não observava a Convenção de Genebra. Os farrapos mais resistentes espiralavam tristes num céu azul eléctrico até que as temperaturas do meio da manhã lhes faziam a folha definitivamente. Sem o estorvo das nuvens, o sol focalizava então toda a sua fúria no estado do Grand Canyon, especialmente a sua extensa área ao sul, cozendo a superfÃcie ressequida do Arizona como se fosse argila e dando o seu melhor para derreter os cromados do dezoito rodas de longo curso que se estendia no alcatrão como um lagarto indiferente ao fatalismo do seu futuro próximo. Se o lagarto carregasse à s costas quarenta e oito toneladas de dinamite, como era o caso deste, e a temperatura daquele dia atingia já os quarenta e oito graus, uma nova cratera estaria para nascer muito em breve naquele pedaço de estrada para rivalizar com a que ficara a céu aberto quando um meteoro assestara à Terra lá para os lados de Winslow.
No atrelado, a dinamite suava as estopinhas. O ar refrigerado do contentor era insuficiente para evitar o apocalipse. Um dos tubos de alimentação tinha-se rompido quando Rikki, destravada, conduzira o Mustang para debaixo do Western Star e a sua porção de bafo fresco, reservada à tarefa de estabilizar a temperatura no interior do atrelado, perdia-se agora na atmosfera ardente do Arizona e era sumariamente evaporado. Perigosas lágrimas de crocodilo de nitroglicerina escapavam-se dos invólucros de papel dos pauzinhos de vinte centÃmetros e, como sémen explosivo e translúcido, acumulavam-se em pequenas poças no fundo das caixas, fazendo olhinhos à segunda lei da termodinâmica, essa galdéria que à mÃnima oportunidade abria logo as pernas para facilitar acesso privilegiado ao cataclismo. Os sensores internos do atrelado, no desespero de nada mais poder fazer do que testemunhar a inevitabilidade da tragédia que se avizinhava, enviavam para a consola do condutor todos os dados referentes ao aumento precipitado da temperatura do frete. Gotas de nitroglicerina pingavam no fundo das caixas de dinamite empilhadas umas por cima das outras e o timbre que produziam era muito semelhante ao de um tique taque unÃssono numa loja de relógios antigos que davam as horas ao contrário.
Jimbo estava morto, por isso não havia muito que pudesse fazer e nem era credÃvel que ainda se importasse tanto quanto se importara ao longo daquela viagem com o que lhe dizia o visor digital vermelho, tecnologia suÃça, três visores à esquerda do conta-quilómetros. Em vivo, os seus olhos de codorniz ansiosa haviam saltado frenéticos entre a estrada e esse indicador digital como se entre uma e outro decorresse a mais excitante partida de ténis de mesa. Jimbo sabia que o frete, carregar quase cinquenta mil quilos de explosivos sensÃveis à temperatura e ao choque ao longo dos desertos do Novo México, Arizona e Nevada, era de alto risco mas sabia também que o dinheiro valia bem esse risco. Perante a sua inclinação para o dinheiro, que competia taco a taco com a que tinha por rabinhos imberbes apesar de casado e feliz, a decisão tomou-a em sete segundos. Mesmo assim, o rácio dinheiro / acidente era apertado e, não fosse o diabo tecê-las, Jimbo vigiava atentamente os números que os sensores do atrelado lhe mandavam lá de trás. Entre essa preocupação constante e a tesão de ter um puto enfiado no armário para quando lhe desse vontade de descomprimir daquele stress todo, o camionista até estava a gostar particularmente da viagem. Os números mantinham-se frescos no LCD do pequeno ecrã mas ele tinha bem presente que a partir de uma certa margem, o melhor que havia a fazer era saltar do camião e obrigar o seu corpo volumoso e nem sempre muito cooperante quando o esforço era fÃsico a uma corridinha na direcção do mais longe possÃvel.
Sem ninguém a vigiar os números, estes, de frescos e saudáveis, começaram a subir para o acalorados e oh-meu-deus-vamos-morrer-não-tarda. A cancela de segurança entre o valor prudente de temperatura e o mais fatÃdico partira-se quando o Western Star passou a ferro o lado direito do Ford Mustang de Rikki, danificando com o impacto a alimentação da refrigeração e esticando até ao limite a corda das teorias que giravam de roda do que a dinamite poderia fazer na eventualidade de uma colisão como aquela. Podia ter explodido no momento em que o camião passou por cima do carro musculado e a história ficava logo por ali, uma pequena nuvem cogumelo de labaredas vermelhas e fumo negro de gasolina, um estrondo capaz de levantar os telhados aos moradores de San Pedro a várias milhas dali. Mas não explodiu, e as manas assassinas, gótica com arma #1 e gótica com faca #2, não perdiam pela demora. A carga de Jimbo faria por lhes merecer o niilismo homicida à sombra do qual elas desenhavam o seu estilo de vida alternativo e outros, sem alternativa nenhuma, morriam. Jimbo teria a sua vingança, prometiam com a conhecida imparcialidade suiça os números no visor da consola em folha de madeira que ninguém vigiava. Jimbo e qualquer outro desgraçado que as gémeas haviam aliviado do peso do mundo desde que se tinham feito à estrada na praia de Santa Mónica iriam ter a sua vingança.
D-Danny não fazia parte das vÃtimas compreensivelmente rancorosas de Bella e Rikki. Estava apaixonado por elas, iria para o Céu com o coração tão cheio de amor quanto de golpes fatais, não tinha importância. Quando Rikki desferiu aquele que seria o primeiro de muitos golpes mal conseguidos na sua carne, o silvo de alarme do sensor de temperatura do atrelado interrompeu o gesto assassino da rapariga e prolongou, assim, a vida do rapaz indefinidamente. D-Danny esticou o braço para a porta estreita que dava do habitáculo para a cadeira do condutor e apontou o visor avermelhado que piscava insistentemente. Quando ele subira a bordo do Western Star pensando que aquela era uma boleia normal, muito longe estava de imaginar que envolveria sodomia frequente e outras práticas de sexo entre dois homens, um deles nem homem nem muito disposto a tal, Jimbo tinha-lhe dito que se aqueles números começassem a piscar ficavam os dois apeados no deserto. D-Danny ainda cogitou se seria melhor para a sua saúde agradecer a boa-vontade de Jimbo, descer do enorme Western Star e estender o polegar a alguma boleia menos perigosa, só que o camionista mostrou-lhe a pistola enorme que trazia oculta e as amenidades arrepiaram caminho para outras paragens antes que D-Danny pudesse chegar por seus próprios meios a alguma conclusão sobre a sua cogitação.
A viagem fora cheia de solavancos mas agora, com o silvo apavorado que enchia o habitáculo do camião, chegava ao seu fim. D-Danny não imaginava ser possÃvel morrer na companhia de alguém mais sexy.
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