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Autor Tópico: Contos da Cidade Baixa: Depósito de Monstros (2 de 3)  (Lida 2294 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Outubro 30, 2009, 13:41:34 »

À frente dos olhos vidrados do ratoneiro, a Branquinha ziguezagueava no limite do controlo da condutora. A mesma gaja que lhe tinha pregado o peito às costas com a sua própria ferramenta de trabalho. Ele ia apanhá-la. Já não tinha dores, não estava cansado, não sentia nada. Ia apanhá-la. Ia fazer-lhe coisas feias. E então, talvez a voz que lhe mordia o cérebro por dentro se calasse.

***

O depósito de monstros da Cidade Baixa espalhava-se selvagem pela zona sul, abocanhando aqui e ali pedaços da parte mais antiga, a mesma que se afundava centímetro a centímetro paulatinamente no lodaçal pantanoso. Tito levou o camião a pisar a linha de comboio desactivada para apanhar a estrada esburacada que se afastava do centro urbano. Era uma recta interminável ladeada por bairros da lata onde fogueiras ateadas em bidões resistiam como fogo branco à teimosia do vento mercê de alguma qualidade sobrenatural.

Talvez três quilómetros adiante, Aurora começou a ver desenhados contra as colinas os vultos dos monstros que ali eram depositados. O que saltava mais à vista era a roda gigante de alguma feira que tivesse passado suficientemente perto para ser apanhada no vértice de influência do depósito. Estava meia tombada de lado, num ângulo que punha à prova todas as noções de equilíbrio. Pequenos fogachos de luz disparavam na sua estrutura, mesmo nos pontos mais altos, e pingavam como aguaceiros de faíscas cujas cores Aurora não conseguia discernir e que o ar glacial extinguia sem problemas.

«Ratoneiros» disse Tito, indicando-os com os dedos inchados do frio assim que reparou na curiosidade da passageira. «O depósito é o domínio deles. São atraídos pelos materiais que largamos. É mais o aço e o alumínio, que depois vão vender não sei bem aonde. Mas aproveitam tudo. Despem uma carcaça em poucas semanas. A roda é que se tem aguentado. Ela e o Tartarus são das poucas coisas que têm dado luta aos ratos.»

«Tartarus?»

Tito enfunou o sorriso negro.

«Já vai ver…»

A zona de descarga estava assinalada com pilares de cimento que há muito tempo deviam ter a ligá-los malhas de rede metálica. A vedação fora das primeiras coisas a ser desmanchada e roubada. De ambos os lados dos pilares, esqueletos de maquinaria indeterminada jaziam esmagados por toneladas de entulho e terra, como se prédios inteiros ali tivessem sido largados do alto. Barracas protegiam-se da intempérie contra os montes de escombros. Homens mal encarados observavam com olhos de gato a chegada do Kamaz de Tito. Seguravam com agoiro as suas ferramentas de trabalho. Serras eléctricas, ferros quentes, machados e picaretas. Aurora viu uma pistola ao cinto de um ou outro. Tito acenou a nenhum em especial e não obteve resposta. Seguiu caminho para dentro do depósito.

«Não se metem connosco» explicou ele. «Não se morde a mão que nos alimenta, sabe? Se atacassem os camiões, as companhias deixavam de vir cá descarregar. Depois, quem é que lhes trazia os monstros? O que é que desmantelavam para arranjar dinheiro? Estes camiões são o mais parecido que têm com um sistema económico.»

«Alguns estavam armados» disse Aurora.

«Todos andam armados.» Tito acenou afirmativamente. «O depósito de monstros é a zona mais perigosa da Cidade Baixa. Tirando os camionistas, ninguém se atreve a entrar aqui.»

«Nem a polícia?»

«A polícia?» Tito mostrou-se muito sério. «A quem é que acha que as armas que viu à cintura daqueles tipos foram roubadas?»

Seguiram calados por mais umas centenas de metros. Os faróis potentes do camião desvendavam as bermas do caminho. A neve havia coberto os objectos mais pequenos, mas os maiores esticavam-se acima da mantilha branca. E havia de tudo. Armações de baloiços de criança abraçavam equipamento fabril. Cavalinhos de mola estavam deitados por terra e um escorrega era agora uma armadilha mortal. A seguir ao parque infantil surgiu uma fileira aparentemente interminável com as ossadas de camiões de contentores. Alguns estavam iluminados e olhos armados espreitavam ao ouvirem o som continuado do motor do Kamaz.

Tito acenava cordialmente, sabendo-se protegido apenas pela tonelagem da sua viatura e por um acordo meramente subentendido que alguma cabeça menos lúcida poderia rasgar a qualquer momento.

Um pouco mais à frente, com neve pela cintura, figuras de pedra e cobre acenaram-lhe de volta em gestos perfeitamente ensaiados e eternos. Era um jardim de estátuas cujo simbolismo perdera toda a relevância. Tinham sido amontoadas ali. Aurora nem as olhou. A estátua que viera buscar não estaria no meio daquela multidão rígida e ela encontrava-se ocupada a memorizar os caminhos que Tito tomava para, quando mais tarde voltasse sozinha, perder menos tempo a dar com as ruínas do convento. Havia que virar à esquerda junto ao prédio alto. O que tinha as palavras “tart†e “rus†na sua fachada inclinada. E que não era, de todo, um prédio.

«Oh» exclamou Aurora.

«O Tartarus» informou Tito. «Não sei porquê, mas alguém lhe levou uma letra.»

«É um… petroleiro?»

«Já foi o maior de todos» acrescentou o motorista. «Mais de mil metros de cabo a rabo.»

«O que está um petroleiro a fazer aqui?»

«Fizeram dele um cemitério. É lá dentro que os ratoneiros enfiam todos os seus mortos.»

«Uma necrópole….»

«Sim. Mas não me pergunte é como é que cá o puseram. A coisa mais estranha que transportei até hoje foi um satélite do tempo da guerra. Obrigaram-me a vestir um daqueles fatos e tudo. Sabe quais são? Que se usam por causa da radioactividade?» Tito balançou o queixo. «Sim, senhora… Isto é um sítio bem perigoso.»

***

«Não tem ar de estúpida.»

«O que foi, miúda?»

«Não me parece estúpida, você.»

«Agradecida.»

«Mas também não deve ser muito esperta, para roubar a Branquinha ao Dante...»

«Sou esperta, sou» garantiu Aurora sem tirar os olhos da estrada imaginária, «porque primeiro matei-o.»

«Já vi muita gente morta. Nunca vi nenhuma correr.»

«Então somos duas. Agora cala-te e agarra-te bem ao teu rabo vadio. Esta carripana faz as curvas como se fossem rectas.»

Aurora torceu o volante, tentando com uma manobra perigosa livrar-se do perseguidor que vinha outra vez agarrado às portas traseiras. Receava que as fechaduras não fossem muito sólidas. Com um puxão e um salto, o homem punha-se lá dentro. E ela já não tinha a pistola de agrafos consigo.

A ambulância deu de traseira, primeiro para a esquerda indo beijar um banco de neve na berma da estrada, e depois para o outro lado, voltando a endireitar-se sempre no limite do desastre, que seria fatal para as duas passageiras. O amor que Dante tinha por aquela lata velha mantinha-o seguro lá atrás. Aurora bem podia esticar ao máximo os limites dos seus talentos para o volante que o homem queria a sua Branquinha de volta. Olhou para a passageira aterrorizada metida num casaco de peles quatro números acima do seu, e nada mais.

«Que faz uma miúda num sítio destes?»

«É quase só oral» foi a resposta.

Aurora mordeu o lábio inferior, arrependendo-se de ter perguntado. Lá atrás, um baque surdo, mas tão forte que fez o veículo estremecer, trouxe de volta a sensação de perigo mortal que assolava cada célula da caçadora de anjos desde que embrulhara a preciosa estátua da Baronesa nas bolinhas de ar e a metera no interior da ambulância. A perna esquerda dera de si logo aos primeiros esforços e cada um dos parafusos ortopédicos cantou a velha moda do “vai-te catar†numa comunhão irrepreensível. Tinham andado a afinar as gargantas desde que Aurora chegara à Cidade Baixa, moendo-lhe o juízo sempre que ela caminhava ou tentava dormir. De início, atirou as culpas para o Inverno, que era das estações do ano com as costas mais largas. Agora já desconfiava que era aquele sítio. Aquela cidade no fundo da cratera.

Aquele lugar maldito.

Sheol.

***

Localizar as ruínas do convento foi complicado. Aurora tinha um mapa decrépito fornecido pela Baronesa e que se revelou completamente inútil uma vez que todos os pontos de referência nele assinalados tinham sido engolidos pelo passar do tempo e pela disposição caótica do depósito de monstros que subjugava por completo qualquer método de orientação.

Ser levada pela prudência a mover-se no interior do gigantesco ferro-velho sem que dessem por si também não ajudava. Não podia pedir indicações aos locais, que praticavam um zelo homicida em relação ao seu espaço e a tudo o que por lá havia. Enquanto fazia as suas investigações, sempre a coberto da noite e dum frio criminoso, Aurora ouvira frequentemente tiroteios. A maior parte, talvez motivada pela bebida e pelos fantasmas imaginários que assombravam o céu baixo. Por uma ocasião, algumas noites atrás, o troar de armas leves rebentara a poucos metros de si, obrigando-a a um mergulho improvisado na neve. Deixou-se ficar a gelar até ter a certeza que era seguro prosseguir no seu caminho. Quando o fez, metros à frente encontrou um homem estendido numa poça de sangue. Um ferimento na garganta parecia um olho branco e viscoso que piscava e borbulhava sempre que o desgraçado tentava respirar. Estava morto, ou ia a caminho, e a neve já fazia por o ocultar.

À oitava noite à neve e ao frio, Aurora encontrou finalmente as ruínas do convento de Sheol. Quase invisíveis no meio da frota de Boeing 747 ferrugentos de asas caídas que lhe faziam companhia naquela secção do depósito. Não restava grande coisa. Um monte de entulho que mal se distinguia dos outros montes de entulho enterrados na neve. A diferença era a cruz no cimo da parede que há muito tempo devia ter sido a fachada. Enegrecida e enfezada, bastante torta numa das pontas, era o único símbolo religioso que se via por ali. Com uma lanterna de fraca potência, para não atrair atenções indesejadas, Aurora entrou.

Lá de dentro via-se o céu chumbo e os flocos cadentes de neve que aproveitavam a derrocada dos tectos para se acumularem nos cantos da antiga nave. O interior estava nu, indubitavelmente saqueado de todas as coisas que um dia teriam feito daquele edifício um local de culto. Mas, mesmo assim, sereno. O vento que lá fora ululava nos flaps pendentes dos aviões mal se ouvia ali. E não estava tanto frio. Era difícil perceber a razão das ruínas se encontrarem desertas. Além da superstição, claro está. Uma cidade onde os seus habitantes chamavam “anjos†aos que se suicidavam tinha forçosamente que sustentar uma crença em demónios. De qualquer das maneiras, e à primeira vista, a estátua de Lúcifer que a Baronesa de Aradia lhe pagava para resgatar não se via em lado algum.

***

«Estou certa que lá está» garantiu a mulher com mais de uma centena de anos e o mapa da vida desenhado em rugas. «Está em Sheol. A cidade dos mortos, como a da bíblia. Foi onde a Cidade Baixa começou. Num convento. A minha investigação revelou várias obras de estatuária no seu interior. Incluindo uma em especial, de um anjo. Uma estátua tão linda quanto aterradora. Um anjo nu, de asas a cobri-lo. Tem uma mão martirizada sobre a cabeça e na outra, agrilhoada, segura uma coroa. Tem um grilhão numa das pernas e o rosto mais belo e feroz alguma vez esculpido.»

A Baronesa interrompeu-se para controlar o seu entusiasmo. Espuma de baba surgira à superfície dos lábios estreitos. Um mordomo apareceu como um fantasma e limpou-lhe a boca. Ela não deu pela sua presença, nem pelo seu sumiço eficiente. Aurora tão-pouco. Lembrara-se duma coisa.

«Essa descrição faz lembrar o Lucifer de Geefs, que desapareceu misteriosamente há mais de vinte anos da Catedral de São…»

«Não, não…» Os olhos da Baronesa rodaram nas órbitas com óbvio desdém. «Esse triste mono… Tenho-o lá em cima na arrecadação. Inútil, uma casca vazia.»

Aurora escondeu habilmente a sua cara de espanto. Se a velha possuía os meios para surripiar o Lucifer de Geefs duma das catedrais mais famosas do mundo, para que precisava dos seus serviços? Ela roubava predominantemente anjos chorões de mausoléus antigos em cemitérios onde a única vigilância estava a cargo dos que lá repousavam.

«Coisas importantes têm o hábito de me chegarem às mãos pelas mais diversas vias» disse a Baronesa. «A informação sobre esta estátua, que não é a de Geefs, esse cinzelador inferior, veio até mim na forma de um diário escrito pela mão de um dos fundadores do Convento de Sheol. Fazia parte da comunidade que fundou, sem querer, a Cidade Baixa. O que ele escreveu bate certo com as minhas suposições quanto à estátua que procuro.»

«Como assim?»

«Já esteve na Cidade Baixa?»

«Não.»

«Vai perceber assim que lá for. É um lugar de trevas. Um abismo.»

Não podia ser pior que o seu saldo no banco, julgou Aurora.

***

Era.

***

«…Porque este sítio é um buraco sem fundo» concluiu Tito.

Imobilizou finalmente o seu camião com a traseira assestada a um aterro profundo do qual se adivinhava apenas o rebordo. Premiu um botão no tablier e o Kamaz estremeceu como se de repente tivesse sentido o frio da noite invernal. A caixa aberta começou a soltar gemidos metálicos enquanto inclinava a carga para a sua extremidade. Descarregava sem sair do veículo. Tito não era parvo nenhum.

«Perto de Jerusalém, havia um lugar parecido com este. Vem na Bíblia e tudo. O vale de Hinnom, a lixeira de Jerusalém. Queimavam o lixo em fogueiras que ardiam o tempo todo. Também lá largavam os corpos dos piores criminosos, e de animais. Um depósito de monstros. Aquela gente acreditava que escondia um portal para o outro mundo.»

«Acredita que este depósito possa esconder um portal desses, Tito?» Perguntou Aurora. Não era o tema que mais a interessasse, mas achava que tinha de fazer o seu papel e atirar umas perguntas ao ar.

«Eu?» Ele sorriu. «Limito-me a conduzir o camião, minha senhora.»

***

«O meu anjo Samael», disse a velha, «rebelou-se quando Deus ordenou à sua hoste que adorasse a sua nova criação, o Homem. O meu anjo recusou-se a adorar outro que não a Deus. Deu início a uma guerra nos céus e como castigo, foi arremessado para o abismo.»

«O inferno.»

«Sheol é o Inferno, se concordarmos com algumas traduções e interpretações de diversos livros sagrados ou correntes religiosas. Um local onde os mortos aguardam ressurreição em conforto ou em tormento. Já estive na Cidade Baixa, há muito tempo. Não consigo imaginar uma descrição mais apta para aquele lugar. Admira-me pouco que os fundadores tenham escolhido esse nome para baptizar o seu Convento. Podia contar-lhe essa história.»

***

«Gostava de ouvir.»

Tito olhou-a, levando o seu tempo. Aurora percebeu que o homem tentava chegar a uma conclusão sobre si. Uma mulher demasiado nova para ter cinquenta anos e demasiado velha para ser quarentona. Anafada, mas ainda bonita, chegara-se a ele tentando convencê-lo de que era uma jornalista, mostrando de fugida um cartão que parecia tão feito em casa quanto a cor e o penteado do seu cabelo. Queria fazer uma corrida no seu camião. Ir e voltar, para escrever o que visse e o que escutasse. Tito, sem se mostrar desconfiado, também não disse nada que indicasse ter ido na conversa. O camião era grande e a sua boca, dependendo da companhia, também sabia sê-lo. A solidão do condutor deu uma ajudinha.

«A senhora vem lá de longe, mas eu sou logo dali, a seguir às colinas. Viver a esta distância da Cidade Baixa é como viver ao lado dum furacão, com medo que não nos leve a nós também. Imagina ter um hospício de loucos na vizinhança? Estamos sempre à espera que a loucura que está presa lá dentro não escape e venha bater à nossa porta. Basta sentarmos o rabo à beira da estrada para ver o tipo de gente que vem nesta direcção. Só os loucos. Qualquer coisa os puxa para cá. Não sei o quê. É qualquer coisa que os chama…»

«O Tito também vem. Consegue ouvir esse chamamento?»

«Se calhar, o meu problema é que também tenho um parafuso a menos. Ou ex-mulheres a mais. Fazer um frete para a Cidade Baixa porque paga o triplo doutro destino qualquer não é o mesmo que vir para cá viver. Não era capaz. Não conseguiria viver com esta sensação sempre no meu peito, sabe?»

«Sensação?»

«Sim, olhe.» Tito apontou para cima, através do pára-brisas. «Não têm céu! Não há céu neste sítio. Se descesse esse vidro, logo via como cheira mal. Como uma vala comum. E não é só no depósito. Há qualquer coisa muito esquisita neste vale de malditos. Não viu aqueles dois saltarem do viaduto?»

Aurora arrepiou-se.

***

«Tenho frio» disse o anjo do casaco de peles.

***

«Os anjos, porque caíram, viram-se forçados a viver entre nós» soprou a Baronesa. «Mas viver... não é a palavra certa. Temos este conceito muito humano de vida, muito ingénuo, que não serve aos anjos. Eles existem a um nível maior. Deitados por terra por um deus fraco, tiveram de improvisar. Não se sujeitaram a viver entre nós, criaturas menores, sendo nós a razão que os fez cair. Não podiam fazer-se aos céus, que lhes estavam proibidos, e não suportavam a nossa companhia. Moveram-nos guerra mas, por muitos de nós que matassem, haveria sempre mais. Devemos ser para eles o que as baratas são para nós. Uma praga. Na melhor das hipóteses, podemos ser controlados. Nunca exterminados. Que espécie de Deus é o nosso, com tanta predilecção para pestes e desdém pelo que é perfeito?»

Aurora não achou que fosse uma pergunta. Esperou que os pulmões de papel da senhora insuflassem.

«Não podemos ser exterminados.» A Baronesa sorriu maliciosamente. «Mas controlados… Isso já é outra história. Os anjos descobriram que podiam habitar as imagens religiosas que os humanos criavam na sua sofreguidão em adorar o sagrado.»

«Anjos que vivem em estátuas?»

«As nossas almas não vivem nestas côdeas de sangue e carne? Vergadas às birras do tempo porque somos imperfeitos. Incompletos. Os anjos não. Podem escolher. Como as artes são a única centelha do divino presente no ser humano, apenas a nossas obras mais belas são dignas de alojar os que caíram. Do alto de pedestais e altares, em posições de destaque nos templos e lugares de poder, a hoste de Lúcifer sussurrou ao ouvido humano aquilo que ele mais queria ouvir.»

«O quê?»

«No colégio de freiras que frequentei em jovenzinha, havia uma imagem de Jesus Crucificado na nave central da igreja. Era enorme, muito bonita, que falava constantemente às minhas colegas mas, não sei por que razão, nunca se metia comigo. Até um dia. Já lhe disse, sempre tive dificuldades em fazer o que esperam que faça. Não era uma aluna mal comportada mas tinha o meu feitio. E como as freiras tinham o delas, os meus pobres joelhos não eram estranhos às tábuas penitentes dos bancos da primeira fila da igreja. Um dia, quando estava sozinha a rezar os muitos ave-marias de mais uma punição disciplinar, ouvi finalmente o anjo que vivia na estátua.»

«Que disse ele?»

«Isso, se não se importa, ficará entre mim e esse anjo em particular. Mas falou comigo, garanto-lhe. Pude ouvi-lo como a ouço a si. Foi a última vez que me ajoelhei a pedinchar frivolidades a um deus frouxo.»

***

Aurora, se julgasse que adiantava, era mulher para pedinchar um favorzinho, ou mesmo dois, a Deus. Frouxo ou não. Um deus era sempre boa ideia ter do seu lado.

À ilharga do Tartarus a ambulância derrapara para uma vala. Não era muito funda, só que o veículo atascou logo assim os pneus traseiros seguiram os da frente num rumo que a caçadora de anjos adivinhou mas não pode contrariar.

«Não o vejo» disse Aurora. O espelho retrovisor estava deserto, por agora. «Achas que o despistámos?»

«O Dante?» A expressão da miúda feriu de morte as esperanças de Aurora. «Aquele gordo conhece o depósito melhor que ninguém.»

«É amigo teu?»

«Não temos cá disso.» A rapariga espetou um dedo na direcção da bochecha esquerda, inflada por dentro. «É cliente.»







parte 1: http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,25316.msg79807.html#msg79807
parte 3: http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,25318.msg79809.html#msg79809
« Última modificação: Outubro 30, 2009, 13:48:09 por NunoMiguelLopes » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Novembro 04, 2009, 20:49:35 »

Dura perseguição! Um conto repleto de acção!
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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