O CANCIONEIRO DA MADRUGADA

[CAMPISTA CABRAL]

Retomo o frio e penso na noite. Não. Peso na madrugada. Penso no silêncio da madrugada.        
O frio da rua chegava aos ouvidos dos postes e congelava tudo. Lembranças. Gato malhado que corre e atravessa para a outra calçada em busca de comida. Lata de lixo, frio da noite.
        E o mendigo era o místico da noite, o místico do frio, o cantador, o louco, enfim... Louco e poeta de uma cidade vazia.
        Nenhuma alma na rua, ele, seresteiro de estrelas, somente...
        Sonhava com as toadas, os versos tristes de acordes ansiosos. Sonhava o amor, mas não o amor dos ricos, o amor dos pobres e abandonados, o amor fuga, o amor refúgio, o amor angústia, o amor apreensão, o amor bar e o amor  madrugada...
        Sonhava caprichosamente o pôr do sol, a chuva que tocava mansamente a grama do jardim, os beijos de uma mulher e mais...
        ...
        Magro, alto, olhos inchados e vermelhos, roupa velha e encardida, pés descalços, uma imagem e um rosto: homem solitário!
        Ele pensava.
        Bebia.
   E pensava.
        Cambaleava, cambaleava, caía, levantava, caía e tornava a levantar... A rua parecia-lhe pequena demais, um tanto torta demais.
           E bebia.
  Apesar de sentir-se confuso e sonolento, encontrava forças para balbuciar algumas canções de Chico Buarque. Eu tava à toa na vida o meu amor me chamou. Beijou sua mulher como se fosse...
        Nem todo mendigo começou mendigo, assim, crescido na rua, não. Muitos foram um João, um José, uma Maria, um Manuel, um Antônio ou uma Isabel...
        E ele cantava, embaralhava as letras e sorria. Gesticulava bruscamente e sorria. A garrafa pesava, a lua pesava, a vida.
   A garrafa
        Largou-a ao canto e gritou para a lua. Gritou muito, muito. Ela, porém, não o escutou. Desgraçada Lua!
   Surda.
        Continuou seu caminho com suas canções e o corpo coberto de sereno...

[Nanda]

Camista,
"Nem todo mendigo começou mendigo"...
Eu poderia resumir o teu conto a esta frase que para mim está repleta de sentimento e amor ao próximo.
Beijo
Nanda

[CAMPISTA CABRAL]

Obrigado pelo comentário e pelo carinho das palavras! É... nem todo mendigo nasce mendigo... Mas o mendigo, o cancioneiro da madrugada é um poeta da noite, um poeta do vento... É um poeta. E, como se sabe, um louco, um ser cheio de sereno.... Um grande abraço!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Faço coro com a Nanda, Cabral.

Teu texto me fez lembrar daqueles personagens do bairro, posto que minha casa fica num lugar supostamente sem moradores fixos da rua ou são eles moradores invisíveis da rua. Estava eu pensando hoje de manhã, enquanto as roupas iam para máquina, em criar um conto sobre Tchantchas, uma dessas personagens pitorescas dos bairros. Quando li teu texto, lembrei de um senhor alcoólatra já falecido que morava na rua de trás. Chamava-se Seo Sereno. Ele vinha todo começo de noite subindo a ladeira e cantando com seu vozeirão.
Logo depois do almoço vou elaborar um conto sobre os dois ou dois contos sobre cada um.

Grande abraço...

[Goreti Dias]

Cantor resistente, poeta insistente.
Já agora, escritor competente!!!
Abraço

[CAMPISTA CABRAL]

Caríssimos Goreti e Oswaldo:

Obrigado uma vez mais pelos elogios e comentários! Gosto demuitas coisas, entre elas, ler um bom livro, ouvir uma boa música e escrever!

Goreti, obrigado pelo "escritor competente"

Oswaldo, quero ler os contos ou o conto sobre essas personagens!

Um grande abraço!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Já pode fazer isso, Cabral. Estão publicados "Primpéria" e "Sr. Sereno". Ambos no Escritartes. Espero que goste.

Abraços...

[CAMPISTA CABRAL]

Já os li! Muito bons por sinal! Penso em duas palavras: memória e tempo!

Um grande abraço!!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Pensaste bem. Principalmente em relação à memória.

Abraços...

[CAMPISTA CABRAL]

Vamos ao tempo! Escrevamos sobre a memória então!

Um forte abraço!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Farei isso...

[CAMPISTA CABRAL]

Quero ver, quero ver!

[marcopintoc]

Bom texto. Gostei especialmente do ritmo que enche de silêncios da noite e das hesitações do homem ébrio.
Penso ser o primeiro texto que comento mas já tinha lido outros. Estilo consistente e com "sumo" . Continuo atento às suas publicações
Abraço
Marco

[CAMPISTA CABRAL]

Olá Marco!

Obrigado pelo comentário e pelas leituras! Sinto-me feliz quando alcanço o propósito de quem escreve: alcançar leitores! Minhas mãos continuam a escrever e, enquanto assim for, escreverei para quem quiser ler pedaços de memória, histórias, invenção!!

Um grande abraço!