NunoMiguelLopes
Membro
Offline
Mensagens: 209 Convidados: 0
Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
|
|
« em: Novembro 18, 2009, 13:23:39 » |
|
06. “Realidade de Contactoâ€
Todas as consolas irradiaram ruÃdos quando receberam instruções para fazerem o reboot. Manifestações de luz irromperam à frente dos tripulantes enquanto as consolas sequestravam partÃculas em suspensão na atmosfera a bordo da Cry of the Angelus para criarem ecrãs de interface resplandecentes.
«Não executem nenhuma batida do Universo próximo» aconselhou Greymalkin. «Digam antes aos vossos sensores que a Arcadia está nas coordenadas indicadas, não lhes peçam que a procurem aÃ. Insiram os dados por vocês. Obriguem os sensores a acreditarem no que vocês lhes dizem. E sejam veementes, por favor. Trata-se de dar a volta a tecnologia infalÃvel valendo-nos apenas de convicção.»
«Insiram as coordenadas» ordenou Evergrim. «Mr. Wormsong, como vamos?»
«Vou mudar para os instrumentos assim que o Senhor Rawbone insira as informações da Arcadia» respondeu Wormsong, suando biblicamente. «Já me dói a cabeça, e sinto que me vem aà uma crise de choro se tiver de continuar por muito mais tempo…»
«Descarregando coordenadas do meu cérebro…» disse Rawbone, concentrado. Queria acreditar no que estava a pensar. Não podia dar-se ao luxo de ter dúvidas, e transmiti-las involuntariamente para os instrumentos. «Já está!»
«Ah…!»
Wormsong adicionou os auxiliares da Cry of the Angelus à s suas incrÃveis capacidades de pilotagem mental. A nave parou de oscilar quase instantaneamente. O piloto forçou a rota para se afastarem mais do planeta, ao mesmo tempo que se aproximavam do evento de horizonte. Naqueles instantes, Wormsong sentia-se como se fosse o melhor piloto do Universo. Provavelmente, era-o. Estivera a instantes de romper num pranto.
«Mr. Stonewall, já pode imprimir nas panorâmicas o alvo holomático referente às coordenadas da Arcadia?» Quis saber Evergrim.
«A calcular…» disse Stonewall, meio irritado por ter sido interrompido nos seus processos de pensamento. «Pronto. A Arcadia deverá aparecer ali.»
No vidro reatomizado da janela panorâmica do Cortex apareceu um pequeno alvo luminoso amarelo que parecia brilhar do lado de fora da Cry of the Angelus. Apesar da nave se mover, o alvo mantinha a sua posição, guiando os olhares de todos a bordo.
«Deverá aparecer no nosso campo visual precisamente no alvo indicado a amarelo.»
«Acha que isto vai funcionar, Mr. Autumnsun?» Perguntou Himikomori. «Na prática, estamos todos a fazer com que o nosso desejo se torne realidade…»
«Pode funcionar» garantiu Autumnsun. «Mas não nessa perspectiva mÃstica obscura. Os campos de distorção temporal são factos cientÃficos dos enigmas quânticos e a sua resolução pode surgir de muitas formas. Greymalkin apenas lhe deu uma forma mais mÃstica, porque é do feitio dele, mas podÃamos substituir todo o seu discurso por termos cientÃficos que ia dar no mesmo.» Autumnsun viu que Himikomori continuava muito reticente. Deu-lhe um toque na mão e trocou com ela um olhar de apreço. Até no Cortex havia tempo para o romance. «Confie em mim, Himikomori-san. Eu formei-me em FÃsica Quântica só para ter a certeza do que estou para aqui a dizer…»
O evento horizonte do planeta vermelho esboçou um aro muito amplo e o resto do universo começou a despontar do outro lado, negro e pontilhado por estrelas como seria de esperar. Assomava como um véu de trevas no lado esquerdo da panorâmica do Cortex enquanto a nave-soldado prosseguia a envolvência da rota orbital do globo ciclópico encolerizado. Os astronautas represavam a respiração, deslocando a sua vigilância dos instrumentos para a panorâmica e de regresso aos instrumentos. Wormsong rangia os dentes devido ao esforço que fazia nas suas tarefas de pilotagem, e o som repercutia-se pela sala impunemente.
O enorme planeta parecia mover-se para a direita da panorâmica, e já não faltava muito para que a linha de visão até ao seu vizinho esverdeado ficasse desimpedida. Greymalkin gostava de estar tão confiante na sua estratégia como naquele momento dava a entender aos outros que estava. O alvo impresso por Stonewall no vidro reatomizado ainda assinalava um ponto no espaço que não era possÃvel ver devido à massa do planeta vermelho ainda se encontrar a bloquear a perspectiva. Com o coração nas mãos, o psicólogo observava o ponto imaginário de luz amarela brilhar e aproximar-se do momento da revelação.
«Será que…» ia alguém a dizer.
«Shh!» Cortou outro dos presentes.
Aquela não era a altura indicada para se falar. Não era o momento para especulações. O planeta verde-escuro apresentou-se ao fundo, apenas parcialmente, de inÃcio. O planeta vermelho tremeluziu e escondeu-se por completo no extremo direito da panorâmica. Aquele era o momento. Todos tentaram visualizar a Arcadia ali, a incidir a sua enorme sombra negra sobre a superfÃcie esverdeada do planeta que lhe servia de âncora à realidade. Todos tentaram acreditar que a Arcadia estava ali. Todos fizeram de conta que a Arcadia estava ali. Mas não estava lá nada. Não estava lá absolutamente…
O primeiro a vê-la foi Wormsong. Ou talvez todos a tenham visto ao mesmo tempo, perfeitamente sincronizados, mas Wormsong fosse o único ainda com alguma saliva suficiente que lhe permitisse dizer…
«Ali!»
…com uma voz que noutra situação negaria a pés juntos ser sua. Aquela palavra foi a deixa para que todos os outros homens e mulheres começassem a falar, ao mesmo tempo, dizendo basicamente as mesmas coisas, ou parecidas, sem sequer se ouvirem a si próprios ou aos outros. A Cry of the Angelus ainda estava muito longe, mas os olhos não se atreviam a desmentir o que alma acreditava ser real. Desenhada contra aquela face do planeta verde via-se a sombra que uma estrutura descomunal projectava. Apenas uma silhueta negra cuja parte da frente se assemelhava a uma cabeça de um peixe pré-histórico. Duma espécie rara, que já não era vista há trezentos e dezasseis anos. Um fóssil finalmente desenterrado da poeira do Universo, cheio de histórias para contar aos astronautas de olhos bem abertos que o observavam, ao mesmo tempo que se preparavam para bater à porta da histeria.
«Sensores?» Perguntou Evergrim num sussurro, quando finalmente conseguiu dizer alguma coisa sem ser interrompida por exclamações de espanto e assombro.
«Contacto positivo e estável nos sensores de navegação» disse Stonewall. «A Arcadia está ali. Podes confirmar, Wormsong?»
«Sim, também a tenho» respondeu o piloto. «Está ali.»
A Cry of the Angelus, livre de achaques orbitais, chegava-se muito rapidamente mais perto do planeta verde e, a olho nu, começavam a ver-se fiapos de nuvens brancas estendidas como anéis ao longo da sua aura atmosférica. Não tão imponente quanto o seu irmão vermelho, este planeta não deixava apesar disso de ser grandioso. Mesmo assim, a Arcadia não se intimidava. Imprimia orgulhosa a sua sombra sobre a face do globo que rodava vulnerável ante aquela presença enigmática e inamovÃvel mesmo ali, bem dentro da sua autoritária influência orbital.
A proa da Arcadia estava apontada ao lado esquerdo da panorâmica do Cortex da Cry of the Angelus. O perfil arredondado das enormes redomas de aspecto metálico escurecidas seguia na direcção contrária, tanto na parte superior que dizia respeito à cidade alta, como na parte inferior que ocultava a cidade baixa, até se juntar com as linhas elegantes dos módulos ou cúpulas bem mais pequenos. O perfil suavizava-se na zona inferior bojuda da superestrutura e estendia-se sem percalços até à estrutura da popa que parecia a barbatana posterior, mas invertida, do tal peixe. A estrutura em quarto-crescente da popa curvava-se sobre o resto da Arcadia e a sua extremidade superior erguia-se mais alta que a Torre que despontava do flanco oposto àquele que estava virado para a Cry of the Angelus.
«É enorme…!» Deixou escapar Dreamfrost, momentaneamente esquecida dos cigarros, momentaneamente esquecida que alguma vez tinha fumado.
A Cry of the Angelus aproximava-se ainda mais. Toda a Arcadia estava à s escuras, mas a luz da estrela daquele sistema derramava-se cautelosamente sobre a sua superfÃcie rugosa e acidentada e permitia alguns vislumbres por parte dos astronautas. As protuberâncias que se estendiam da face interior da cauda pareciam antenas e eram aos milhares. Eram riscos traçados de encontro a um jogo de verde e branco do planeta que ficava do outro lado. Faziam parte dos mecanismos dos poderosos motores de Elisia e cresciam ao longo dos seis mil metros de altura de toda a face interior da popa da Arcadia.
A redoma central reflectia alguns raios enviados do sol mais próximo, o que permitiu aos tripulantes da Cry of the Angelus identificar aquela área da Arcadia. Era a redoma que cobria grande parte da Éden Arbora, a versão Alpha do Jardim do ParaÃso e o pulmão da Arcadia. Por baixo ficaria o reservatório de água que ocupava quase toda a zona a que se poderia chamar a quilha. A cidade administrativa possuÃa os seus módulos de ambos os lados da Arcadia, ali mais próxima da popa e da Torre. Aqueles três mil metros de extensão eram seus, encravados entre os três mil metros da área dos motores e a junção das cidades alta e baixa, à proa.
«E pensar que a Companhia pagou o seguro daquilo» desabafou Himikomori. «Agora é tudo nosso…»
«Não acho que aquela coisa pertença a quem quer que seja» disse Autumnsun. «Quanto muito, pertencerá ao turismo emergente do século 51. Vamos todos pagar balúrdios por uns diazinhos de férias passados na História de outras pessoas…» Autumnsun fitou Ellie, sentado a seu lado. «Não concorda, Professor?»
«Receio que tenha razão, Autumnsun» admitiu Ellie, com um sorriso triste. «Ainda me lembro de quando os mitos do passado, romantizados até à exaustão, ou escravidão, nos eram vendidos como algo realmente imaculado e intocável. O solo onde lançávamos as nossas fundações, a eterna pedra de toque sobre a qual construÃamos as nossas vidas e os nossos dias.»
«Todos os mitos tornados reais e explorados como patéticos pontos turÃsticos para patéticos humanos em patéticas excursões de grupo» concordou Autumnsun. «Todos os mitos obrigados a pegar nas memórias dos seus tempos de glória e a vendê-las a preços módicos como souvenirs à Humanidade insensÃvel e ignorante, sempre pronta a transformar a dignidade da História Universal em troféus de férias. Trágico…»
«Seja como for, este é um momento que nunca venderei ou desperdiçarei» disse Himikomori. «Hei-de conseguir sorrir às custas deste momento, sempre que me lembrar dele nas minhas horas mais melancólicas. Ficará comigo para sempre.»
«Estou bem mais interessado no que vamos encontrar lá dentro» disse Autumnsun.
|