NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Novembro 22, 2009, 23:37:17 » |
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08. “Contacto”
«Receio ter perdido de vez a minha paciência» disse Evergrim, muito devagar, de humor rarefeito. Olhou mais uma vez para a panorâmica, para ter a certeza do que estava a ver, e depois, finalmente, para Autumnsun. «Parece-se terrivelmente com a Arcadia. Mas se não é a Arcadia, o que é então?»
«Não faço a mais pequena ideia» respondeu o autoproclamado homem mais inteligente da História da Humanidade. «Os meus poderes são muitos e variados, todavia ainda não consigo ler a mente ao Universo para descobrir o que é que ele está a pensar neste momento.» Mas Autumnsun podia adivinhar. Tudo o que estava a acontecer batia certo com as suas teorias mais íntimas.
«Preciso mais do que sarcasmo adolescente em que basear as minhas decisões» disse a Senhora. «Quero saber o que todos pensam. Doutor Ellie? Você parece-me uma pessoa razoável. Diga-me, isto é a Arcadia? E pode dar-me uma resposta simples, por favor? Recordo-lhe que sou uma mera militar de carreira. Tenha piedade.»
«Não tenho dúvidas» respondeu Ellie, olhando de soslaio para Autumnsun, e de frente para a cauda de peixe da enorme nave espacial. «É a Arcadia. Confesso que a ausência de emissões de energia também me causa estranheza, mas os Alphas estavam muitas centenas de anos à nossa frente em termos tecnológicos.»
«Ms. Fableshade?»
«Concordo, Senhora» disse Fableshade da plataforma inferior do Cortex. Wormsong a seu lado acenou também, afirmativamente. «Eu trato por tu todas as peças da engenharia espacial moderna e sei todos os seus segredos. Mas quando olho para os planos esquemáticos da Arcadia sinto-me como se tivesse cinco anos outra vez. Se a nossa tecnologia fosse um quadrado, estou convencida que a da Arcadia seria um cubo.»
«Muito bem.» Evergrim olhou para Autumnsun, apoteótica. Talvez assim o pequeno génio se calasse. «Não podemos ter sempre razão…»
Evergrim deleitou-se com o rosto amuado que Autumnsun ergueu na sua direcção e virou-se para conferenciar com Stonewall. Autumnsun sentou-se para trás na cadeira e olhou para os monitores luminosos da sua consola. Por uma vez, perdera a vontade de dizer fosse o que fosse. O génio do século 51 parecia uma criança a quem, pela primeira vez, fora negado um capricho. Himikomori notou o estado de espírito do amigo e aproximou o seu rosto do dele.
«Acho que Evergrim não gosta lá muito de si, Mr. Autumnsun» sussurrou a representante da Companhia, junto do ouvido do outro.
«Aquela é a Arcadia, Autumnsun» insistiu Ellie, fazendo um meneio com o queixo na direcção da janela panorâmica do Cortex. O tom de voz era conciliador, mas firme. «Não sei como explicar-lhe, mas estou certo que estamos a olhar para a Arcadia.»
«Nunca disse que não era a Arcadia» respondeu-lhe Autumnsun, numa voz sumida. «Apenas disse que podia não estar exactamente ali, onde a vemos.» Mas se os outros preferiam continuar a bater com a cabeça nas paredes, por agora Autumnsun ia deixá-los.
A Cry of the Angelus acabava de completar uma circum-navegação à Arcadia, estivesse esta ou não exactamente ali. Evergrim pediu a Wormsong que afastasse a Cry of the Angelus e a estacionasse numa colocação próxima, de frente para o perfil da nave maior e numa posição ao nível da Torre. Wormsong transformou a Cry of the Angelus numa espécie de miradouro, de onde se podia observar não só a Arcadia mas também o planeta verde enrolado em estreitas nuvens atmosféricas brancas. Num horizonte que partia à esquerda na panorâmica do Cortex, naquela posição, era possível ver a maior das duas luas do planeta. E, claro, todo o universo ao fundo.
«Tenho um novo contacto, Senhora» anunciou Stonewall, de repente. Apontava para a sua consola, indicando a Evergrim o que lhe havia chamado a atenção. «Aqui, na órbita da lua grande.»
«Só pode ser a Fortuna» afirmou Evergrim, dizendo que sim com a cabeça. «Tem de ser a nave de Athena.»
«Não há contacto visual mas posso confirmar que são as coordenadas que a Fortuna transmitiu à Schola Belicus antes de partirmos.»
«Só que não está a emitir a sua matrícula» observou Muirwell. Fitou Stonewall e banhou-o com a sua ansiedade. «Não está a seguir o regulamento de navegação.»
«Mr. Muirwell, encete as comunicações» ordenou Evergrim, endireitando-se na cadeira ergomorphica. «Cartão de visita habitual.»
«Senhora.» Muirwell activou mais uma vez os instrumentos de comunicação. «Comunicação aberta. Em nome da Senhora Evergrim, esta é a nave-soldado Cry of the Angelus, 23-5-1121, Armada de Exploração da Schola Belicus, procurando contactar nave não-identificada. Por favor, qualifique transmissão.»
«Senhora, temos uma holoimpressão sónica do objecto, que o nosso radar já conseguiu delinear» informou Stonewall.
«Colocar no projector» disse Evergrim.
A imagem que surgiu acima das cabeças de todas as astronautas era apenas uma silhueta que se assemelhava a mercúrio líquido e transparente. A escala era desconhecida, não havia base de comparação e, mesmo assim, aquela nave dava a impressão de ser relativamente maior do que a Cry of the Angelus.
«Reconheço toda esta estrutura da proa» disse Dreamfrost, apontando a sua mão magrinha para a imagem que rodava lá em cima. «É a Fortuna de Athena. Estive a bordo antes de partirem…»
«Não está a responder ao nosso cartão de visita» comentou Muirwell, estabelecendo o óbvio. Olhou para Evergrim, esperando mais instruções. «Nem rádio, nem holo… Permanece silenciosa.»
«Prossiga com procedimento de identificação padrão.» Evergrim apoiou o corpo num dos braços da cadeira e fitou o técnico de comunicações. «Faça-o num tom que exprima firmeza, Mr. Muirwell. A sua voz tem poder. Nunca se deu conta?»
«Esta é a Cry of the Angelus» disse Muirwell, emitindo a sua voz através do espaço que separava as duas naves, «sob os desígnios de autoridade da Schola Belicus, por favor qualifique a sua identificação.»
Fez-se um quase total silêncio no Cortex, enquanto se esperava por algum tipo de resposta vinda da nave que se supunha ser a Fortuna, porta-estandarte do império arqueológico que era a Athenacorp. Evergrim batia leve e repetidamente com os dedos da mão direita no lábio inferior. Podia ouvir a respiração de Stonewall, na consola em frente. O navegador estava perfeitamente imóvel, uma estátua loura e alta. À esquerda da Senhora da Cry of the Angelus, Himikomori, Autumnsun e Ellie também esperavam. Himikomori enrolava o cabelo vermelho no polegar esquerdo. Autumnsun parecia interessado naquela expectativa, embora o seu rosto não tivesse ainda clareado todo o amuo de há pouco. Ellie olhava para os monitores dos instrumentos de ciências e executava algumas tarefas de verificação.
O Cortex descia um nível para a plataforma seguinte. Harlownet, nos sistemas de suporte de vida, impassível e mais bela que nunca. Muirwell na consola ao lado, como se esperasse uma mensagem vinda directamente dos lábios de Deus, observando os resultados nos monitores. Stonewall, postura militar e treinada, sentado à beira da ergomorphica. Ao lado do navegador, Berrylight, dos sistemas de armamento, parecia o mais descontraído. O tamborilar que se ouvia eram os seus dedos a dançar nos braços da cadeira e a afugentar o silêncio. Berrylight odiava o silêncio. Era outro tipo de noite dos sentidos para ele.
A terceira plataforma tinha à direita a posição da chefe de engenharia. Fableshade era das mais veteranas a bordo da Cry of the Angelus, dividia a sua concentração entre o que se passava no Cortex e o que lhe diziam as suas subalternas no Plasmacore. Radiotelepaticamente, informava-as em tempo real de tudo o que se passava. Wormsong estava expectante no seu lugar de piloto, queixo amparado pela mão direita, recobrando energias. Na consola de Navegação, Stonewall abanava a cabeça negativamente.
Abaixo das três plataformas de consolas ficava o nível mais baixo da sala. Greymalkin, sempre descalço, tinha-se sentado no parapeito e esperava pacientemente. Dreamfrost tacteava-se em busca de cigarros, algures escondidos no seu uniforme, mas não havia nenhum. Regulamentos. Estava de cócoras, virada para o vidro reatomizado, a mãos unidas num gesto que se assemelhava imenso com uma prece, junto ao rosto. Pensava em oportunidade perdidas. Estava previsto ter viajado com Athena na busca pela Arcadia. De certa forma, o destino conspirara para o trazer até ali.
«Repita, Mr. Muirwell, por favor» pediu Evergrim. «Maior urgência, desta vez…»
«Contacto!» Exclamou Muirwell, no auge da sua juventude. «Está a emitir a matrícula… muito lentamente…1092-975-94…» Olhou para Stonewall. «Confirmo a identificação. É a Fortuna.»
«É a Fortuna» confirmou Stonewall.
«Mr. Muirwell, transfira os protocolos de emissão para a minha voz» comandou Evergrim. «Quero conversar.»
«Senhora.» Quando completou a tarefa, Muirwell olhou para a Senhora da Cry of the Angelus. «Pronto.»
Evergrim aclarou a voz.
«Fala a Senhora Evergrim, da Cry of the Angelus. Dirijo-me à comandante da Fortuna, Professora Athena. Qualifique transmissão.»
Nada. Muirwell abanou a cabeça na direcção de Evergrim que a olhara, inquisitoriamente. Do outro lado, apenas o silêncio glacial do espaço. Evergrim detestava ser ignorada daquela maneira.
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