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Autor Tópico: Rendez-Vous (10)  (Lida 1354 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Novembro 22, 2009, 23:38:45 »

10. “Expediçãoâ€

Da escotilha frontal do Shortcut Tango, a Arcadia parecia-se com um enorme cadáver deixado à mercê dos elementos agressivos do espaço exterior. O casco exterior, que era suposto ter sido esverdeado, como a esperança, agora era terrivelmente cinzento. Formas cinzentas numa pose cinzenta numa parte cinzenta de um Universo cinzento do muito branco contra o profundo negro. A pequena nave saída da barriga da Cry of the Angelus rodeava a Arcadia pela proa, aquela enorme cabeça de peixe, como uma enorme boca prestes a resvalar para a lamúria, ou para uma ária lindíssima de puxar à lágrima. Lábios a retorcerem-se e a mostrarem as protuberâncias afiadas, os seus dentes cinzentos, aos passageiros da Shortcut Tango. Estes, conseguiam sentir a melancolia que se escapava da Arcadia e os atingia, mesmo através dos vidros indestrutíveis, como uma emoção urgente e inevitável.

Rawbone ocupava o seu lugar de piloto. Era a sua nave, afinal. Sentava-se à direita na cabine do Shortcut Tango a desejar ardentemente que nada de errado acontecesse. Mente em sintonia com os instrumentos de voo, com as emissões dos motores de inércia, disputando os favores da sua concentração limitada, grande parte dedicada a tempo inteiro à sua libido desenfreada. O uniforme branco de pilotagem, colado à pele, com botas de sola de interface. Cabelos ruivos a nascer do capacete com plugs na base do crânio, óculos de visão activa e um corpete acastanhado que se fechava nos flancos, apertando a cintura e o peito, sempre muito na moda nos sonhos molhados dos astronautas de longo curso.

Sentada a seu lado seguia a engenheira Fableshade, linda demais após trinta e um dias de 4Espaço, quase perfeita, vestida com o uniforme civil que lhe permitia um profissionalismo mais solto. Era óbvio, a ver pelo cigarro delgado, retorcido, fumegante, e provavelmente proibido, entre os dedos da mão esquerda, o fumo do cigarro a encher a cabine de pilotagem, violando regulamentos, com Evergrim na Cry of the Angelus, longe, como se estivesse do outro lado do Universo.

Quando Fableshade inclinava a cabeça para ler alguma informação nos mostradores luminosos, o queixo dela desaparecia e ela parecia-se com um desenho infantil. Beleza sintetizada. Olhou para Rawbone, apanhando-o a olhar para si. Sorriu com os olhos.

«Quer dizer que agora estamos autorizados a fazer este tipo de coisas, Senhor?» Perguntou ela. «Abordar naves civis?»

«Somos a Schola Belicus» explicou Rawbone, arrastando a voz. «O braço longo e forte de Domus Regia. Podemos fazer o que quisermos. Incluindo fumar…» Olhou para o cigarro de dela, tentando identificá-lo «…o que quer que seja que está a fumar, Ms. Fableshade... Precisa de cheirar assim tão mal?»

«Tenho receita médica para isto» respondeu a mulher, acenando o cigarro na frente da cara do superior. «Fui habituada desde pequena a absorver oitenta e três tipos diferentes de substâncias anti-regulamentares, através de órgãos cor de óleo e parecidos com guelras, até agora mantidos em segredo da ciência em geral.»

«Ah» fez Rawbone, afugentando os anéis de fumo negro com uma das mãos. «Quando o que disser finalmente deixar de fazer sentido, eu prometo que aviso…»

«Se não fosse por estes cigarros» prosseguiu Fableshade, «nunca conseguiria suportar o passar maçador dos dias em Espaço Profundo.»

Do outro lado da escotilha, a proa da Arcadia deslizou para trás, desaparecendo. A Cry of the Angelus ficava ainda mais longe. Como uma bolha de atmosfera amigável, o pequeno Shortcut Tango de cinquenta metros de extensão traçou a rota que o faria aproximar-se do planeta verde. Os instrumentos avisaram a tripulação da possibilidade da influência gravitacional apanhar a nave. Era esperado, não havia razões para alarmismos. Rawbone corrigiu a rota da naveta que começou a oscilar e a ondular enquanto arranhavam a tracção orbital do planeta verde. Piscou o olho a Fableshade. Estava tudo bem e ela sabia-o.

Lá atrás, três astronautas. Stonewall, calado, olhando pela escotilha, sentindo-se levemente enjoado com a vibração do veículo e com todo aquele verde abaixo de si. Um olho gigante de um monstro ciclópico de resto invisível. O navegador da Cry of the Angelus viera de Eros, uma das maiores colónias de Titã, essa lua de Saturno onde o ar que se respirava ainda saía dos aparelhos de atmosfera artificial porque era demasiado fantasioso acreditar que algum dia seria possível proceder à sua terraformação. Os mesmos aparelhos de atmosfera que, corria a lenda, se se ouvissem com atenção o ruído que produziam, nos diriam todos os segredos da vida. Amor, carreira, felicidade. Como se falassem uma língua que ninguém nunca tinha muito tempo para aprender. O Shortcut Tango não produzia ruído nenhum. Os seus motores de inércia desafiavam os estatutos habituais de noção de existência. Podia atingir a velocidade de meia luz, se quisessem.

O pequeno pluricientista Autumnsun também, à sua maneira muito especial. A falar veloz e ininterruptamente. A dizer coisas que pareciam muito importantes, pelo menos para ele, mas que talvez não fizessem diferença alguma para quem quer que vivesse do lado de fora do seu cérebro fervilhante. Mantras abstractos de ciências reivindicativas que entravam por um ouvido de Berrylight e se escapavam pé-ante-pé pelo outro, não deixando qualquer vestígio pelo caminho.

O astronauta-soldado era o outro passageiro do Shortcut Tango, equipado a rigor e feliz por ter alguma coisa para fazer, finalmente, naquela viagem em que nunca acontecia nada. Forçado a servir na Cry of the Angelus depois de ter desobedecido a ordens superiores, numa tentativa vã de evitar que os seus soldados tombassem vítimas de estratégias suicidas em nome do lucro das corporações. A Schola Belicus recompensou os seus princípios com a extirpação da patente e uma comissão na Armada de Exploração. Salvou-lhe a vida, provavelmente. Berrylight era demasiado orgulhoso para o admitir. Ou talvez os fantasmas dos companheiros fossem demasiado exigentes para consigo. Seguiam-no para onde quer que fosse.

«No espaço, os dias são todos iguais…» disse Autumnsun, mais para si.

«É verdade…» Berrylight estava sentado, apoiando os cotovelos nos joelhos. Tinha a arma, uma R-Type modificada por gosto pessoal, entre as pernas abertas. Era um homem alto, que o uniforme militar mostrava ser musculado e atlético. Falava numa pronúncia carregada de um sítio qualquer longínquo da Expansão. «Já viajei para longe e para todos os lados. Na Arena, aprendi as artes marciais e as disciplinas mentais. Tukang, Moosul, Jeet Kun Do, e a técnica já quase extinta do pirete indecoroso.»

«Daqui a nada» disse Autumnsun a Stonewall com um sorriso, «Mr. Berrylight vai contar-nos tudo sobre aquela vez em que matou um homem tirando partido do uso hábil do seu polegar oponível, e nada mais…»

Stonewall não sorriu mas Berrylight soltou uma gargalhada. Endireitou as costas e puxou a R-Type para cima dos joelhos. Autumnsun era engraçado quando estava a ser engraçado. O restante do tempo era insuportável. O pequeno cientista apontou para a arma que Berrylight carregava e dirigiu a pergunta seguinte a Stonewall.

«Será isso realmente necessário?»

«Procedimento normal nestas situações» elucidou o astronauta. «Somos bons soldados, apenas seguimos o protocolo apropriado. Evergrim insistiu.»

«Estamos à espera de deparar com problemas na Fortuna?» Autumnsun fez uma expressão a Stonewall para assinalar o seu cepticismo. «Não passam de cientistas. Homens e mulheres mal amados que fazem amor com ideias todas as noites e acordam curiosos todos os dias.»

«Cientistas que estão sozinhos no espaço há quase três anos a trabalhar num projecto secreto que ainda não entendemos muito bem qual é» corrigiu Stonewall, endereçando ao civil alguma da sua afamada paciência. «Alguns deles têm um intelecto tão vasto e possante que nos levaria seis vidas inteiras dedicadas exclusivamente a pensar num assunto até termos um pensamento igual aos que eles têm enquanto casualmente escovam os dentes.»

«Fale por si» disse Autumnsun, e sorriu para Stonewall que não retribuiu o gesto.

«Melhor será que não se ponham com ideias» aconselhou Berrylight, encostando ao ombro a arma que tinha o aspecto de uma prancha metálica algo espessa. Uma luz verde percorreu um mostrador num dos flancos, anunciando a totalidade da carga energética. Como aviso. Berrylight devolveu o olhar a Autumnsun, sorrindo bem à soldado. «Quer que lha empreste?»

«Não preciso.» Autumnsun levou a mão à cabeça, cutucando a testa com o dedo indicador. «Tenho esta. No que toca a fazer pessoas inflexíveis mudarem de ideias, está provado que ter poder argumentativo dá sempre melhores resultados do que apontar-lhes armas à cabeça.»

«No meu ramo» disse Berrylight «nada tem maior poder argumentativo que uma R-Type. E não é tanto o fazer os outros mudar de ideias. É mais espalhar-lhes as mesmas pelo chão, junto com os miolos que as pensaram e os pedacinhos do crânio no qual as guardavam.»

« Última modificação: Dezembro 16, 2009, 13:20:52 por NunoMiguelLopes » Registado
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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