NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Novembro 23, 2009, 00:14:09 » |
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11. “Sinal Perdidoâ€
A diminuta Shortcut Tango oscilou uma última vez quando fugiu à perseverante órbita do planeta verde. Rawbone não pode deixar de sentir uma pontinha de desapontamento quando fez a pequena nave oval deslizar para longe, numa trajectória que se assemelhava demasiado a um gesto feio, sem nunca perder de vista a lua grande, uma bola de rocha preta que girava num circuito amplo em relação ao planeta. A Fortuna era um brilhozinho no monitor luminoso do radar, sempre a piscar em intervalos de um segundo. Até ao momento em que se apagou e não voltou a acender-se. O Senhor da Shortcut Tango esperou dois segundos. Esperou que o radar voltasse a captar a Fortuna. Afastou com uma mão o fumo do cigarro de Fableshade, que ainda persistia na cabine. Queria ver melhor para ter a certeza do que não estava a ver. Quando se certificou, fez olhinhos à sua co-piloto de ocasião que também tinha dado pela falta do sinal.
«Mr. Rawbone, Senhor…» Fableshade sorria nervosa. «Escapou-me alguma coisa? Onde está…?»
«Os seus instrumentos são iguais aos meus…» Rawbone não conseguia, por muito que tentasse, confiar por completo nos instrumentos que a tecnologia do século 51 insistia em forrar as cascas de ovo em que a Humanidade viajava pelo Universo Conhecido. «Mais vale contactar a Cry of the Angelus.»
«Espere, pode ser que…» A astronauta engenheira dedilhou o menu de filtros do radar. Nada.
«Diga-lhes» insistiu Rawbone. «Mais vale, já agora…»
«Senhor…»
«Tenho de lhe lembrar que o que lhe digo é uma ordem, Ms. Fableshade?» Rawbone sentiu repentinas saudades da sua própria tripulação. O secretismo daquela missão obrigara-o, por ordens expressas da Schola Belicus, a deixar para trás o seu co-piloto e o oficial de cabine. Fableshade parecia pouco habituada a obedecer a ordens que não viessem de Evergrim. Rawbone estava pouco habituada a ter de pedir a subalternos que fizessem o que lhes madava. E o seu olhar “sério†não estava a obter grandes resultados com a engenheira da Cry of the Angelus no sentido duma resposta pronta. «Não tome a minha tolerância para com o fumo do seu cigarro e para com a sua personalidade espontânea como sinal de que abro mão da autoridade que as divisas que trago ao peito me conferem.»
«Peço perdão, Senhor. É que gosto ainda menos daquela mulher quando está nervosa» confessou Fableshade referindo-se a Evergrim. Activou os canais de comunicação com a sua nave. «Daqui Shortcut Tango» Disse ela, aguardando. «Estão a ouvir-nos, Cry of the Angelus? Shortcut Tango chamando Cry of the Angelus.»
Tiveram de esperar longos instantes pela resposta.
«Daqui Cry of the Angelus.» Era a voz de Muirwell, mas soava estranha. Parecia que o operador de comunicações da Cry of the Angelus tinha envelhecido centenas de anos. Soava a pó. «Comuniquem, Shortcut Tango.»
«Cry of the Angelus, perdemos o contacto via radar com a Fortuna» informou Fableshade, olhando para Rawbone. «Podiam por favor verificar do vosso lado a posição de destino?» Houve outra pausa na comunicação, depois surgiu a resposta. Era Evergrim quem lhes falava desta vez, e o ego dela vinha sempre à frente.
«A Fortuna não se mexeu, Shortcut Tango. Verifico que o vosso destino ainda está no mesmo sÃtio. Será possÃvel que vocês ainda não tenham aprendido a ler os instrumentos? Sabem entender as informações de um radar?»
«Dizia-te que me chuchasses o dedo do meio, Senhora» rosnou Fableshade com uma careta. Não tinha o seu aparelho de comunicação activado precisamente devido àquela sua luxúria verbal. Dizia sempre as coisas mais inconvenientes à patentes mais altas, e depois lá vinham os olhares reprovadores, os processos disciplinares, as despromoções.
«O nosso radar está branco» reafirmou Rawbone, sabiamente segurando-se. «Estou a enviar-vos cópias dos nossos relatórios, Cry of the Angelus. Vejam por vocês.»
Deixou que a tecnologia do século 51 executasse a sua tarefa e descansou o olhar e o feitio na figura de Fableshade. O capacete arrepanhava-lhe o cabelo, o que era trágico. Fableshade que parecia ter a mania de lavrar as madeixas com os seus dedos e o contacto prolongado com o capacete tornava-o pouco navegável. Talvez devesse penteá-lo por electricidade, talvez usar uma escova não fosse boa ideia. Aquela obsessão pelo antigamente tinha aspectos favoráveis e aspectos desfavoráveis. Mas Rawbone não via ainda com bons olhos a troca de velhos sÃmbolos da vaidade feminina por avanços tecnológicos que eram mais práticos, sem dúvida, mas muito pouco românticos.
«Comunique, Shortcut Tango.» Era Muirwell, novamente. A comunicação era irregular, sem grande definição. Rasgava-se facilmente.
«Já têm os relatórios?» Perguntou Rawbone.
«Shortcut Tango…»
«Sim, Cry of the Angelus.» Rawbone estava a impacientar-se. «O que aconselham?»
Esperou pela resposta, observando o radar que continuava a não indicar a posição da Fortuna. A lua grande aproximava-se, e o astronauta veterano já controlava o Shortcut Tango de forma a rodeá-la, dirigindo-se para uma perspectiva em que seria possÃvel um contacto visual com a Fortuna. Podia ser uma deficiência ocasional no radar. Rawbone desconfiava que não fosse o caso, mas não lhe custava nada fazer de conta. A Cry of the Angelus mantinha-se estranhamente silenciosa. A Rawbone não agradavam aqueles silêncios no Espaço Profundo.
«Cry of the Angelus, o que aconselham?» Repetiu.
«Não sabem, Senhor» adivinhou Fableshade. «Todas aquelas mentes lá encafuadas, e não fazem a mais pequena ideia...»
«Ms. Fableshade…»
«Porque não voltamos para trás, Senhor? Podemos executar um voo rasantes e fazer os átomos da panorâmica do Cortex estremecerem?»
«E em que medida é que isso nos ia ajudar, Ms. Fableshade?» Rawbone olhava para o mostrador luminescente do radar, não para a engenheira que fazias as vezes de sua co-piloto.
«Sempre se reabasteciam de razões para não gostarem muito de mim» disse Fableshade. Ia complementar essa frase com outra coisa qualquer, mas um ruÃdo eléctrico arrebatou todas as ondas sonoras disponÃveis.
«…a for… ã… sssss… eu… pedisssss... sssss… sssssÃvel… ssss… ind… rend… sssss… sssss… ssssss…»
Fableshade e Rawbone entreolharam-se.
«Percebeu alguma coisa daquilo?» Perguntou Rawbone.
«Não deu para entender se era connosco que estavam a falar, Senhor» retrucou Fableshade. «Acho que está na altura de dizer a Stonewall que venha cá à frente. Somos capazes de precisar da autorização dele para entrarmos em pânico.»
«A Shortcut Tango é a minha nave e sou a patente mais alta a bordo» respondeu Rawbone. «Não preciso da autorização de ninguém para entrar em pânico.»
«Nunca ninguém me ouviu dizer que o que eu queria para mim era uma vida aborrecida» declarou Fableshade, desligando-se da cadeira ergomorphica para se levantar.
«Sente-se, Ms. Fableshade.» Ordenou-lhe Rawbone.
«Stonewall é o nosso navegador…» A engenheira da Cry of the Angelus já se tinha levantado quando a mão do Senhor da Shortcut Tango a segurou por um braço. Estacou e olhou para o superior hierárquico. «Está bem, Senhor, peço desculpa se…»
«Ms. Fableshade, olhe.» Rawbone apontava em frente com a outra mão, para a paisagem que se podia ver pela escotilha. Estava descrente «Aquilo é uma nave? Juro-lhe, apareceu à nossa frente de repente…»
Fableshade activou os instrumentos do capacete, procurando uma visão melhor. A luz estava na face oposta do planeta verde. A estrela daquele sistema estava do outro lado, por isso o cone nocturno projectado pelo planeta cobria a lua grande como um manto. Mas desenhada por luzes, algumas delas intermitentes, estava o que parecia ser uma nave. As formas eram algo excêntricas, tÃpicas do passado. A proa era aguçada e baixa. A nave crescia pelos flancos em estruturas tubulares, e subia para a popa como um quarto de cÃrculo. A parte superior era um emaranhado de torres e cúpulas e arcos ogivais saÃdos da mente ressequida duma engenheira revivalista. Não fazia muito sentido, não havia coerência nem harmonia, não ganhava prémios no capÃtulo da estética. A popa terminava num enorme motor de espiral interior onde luzinhas brilhavam à vez. De cada lado da nave, o que pareciam barbatanas verticais subiam e desenhavam-se no mesmo formato que o resto da nave.
«Parece que já temos radar outra vez» murmurou Rawbone, vendo o sinal luminoso espreitar novamente. «Nada tão horroroso poderia passar despercebido. Sente-se lá, Ms. Fableshade.»
«Temos matrÃcula, Senhor?» A engenheira ainda estava meio levantada, meio de pé, meio indecisa.
«Que picuinhas, Ms. Fableshade…» O Senhor da Shortcut Tango consultou os dados da recepção de identificação. Comparou-os e acenou afirmativamente. «É a Fortuna» respondeu ele a Fableshade, que voltava a sentar-se e a reconectar todos os instrumentos ao seu fato espacial. Olhou para a outra, com aquele brilho que queria dizer quase sempre “vamos lá dar-lhes cabo da festaâ€.
«Posso ser eu a…»
«Faça favor, Ms. Fableshade.»
Ela activou a função de conversação do seu fato e, com um sorriso cúmplice direccionado a Rawbone, disse:
«Expedição da Cry of the Angelus, contactando nave feia. Qualifique a transmissão, nave feia.»
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