NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Dezembro 02, 2009, 14:37:01 » |
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16. “Athenaâ€
A sala era surpreendente. Exalava um odor que era impossÃvel aos astronautas da Cry of the Angelus reconhecerem porque nunca haviam estado no planeta onde aquelas flores cresciam originalmente. Daria milhões a ganhar na indústria dos perfumes, se Athena assim o desejasse. Havia algo nele que fazia Stonewall acreditar que nunca mais precisaria de fumar um cigarro na vida. Que se iria apaixonar, real e finalmente, pela rapariga certa e viver feliz para sempre. Mas isso foi só nos primeiros instantes. Era óbvio que os batalhões de Inoculação presentes nos corpos dos visitantes tinham detectado a substância no organismo dos astronautas da Cry of the Angelus e, decidindo-se após furiosa deliberação por classificá-la como hostil, haviam entrado em acção. A fragrância ainda estava presente no ar, mas agora Stonewall, Autumnsun, e especialmente o mais temerário Berrylight, estavam mais desconfiados que outra coisa qualquer.
Ali, sentiam-se deslocados. O chão tinha desaparecido por completo. Ou seja, ainda estava lá, claro, mas era completamente invisÃvel. E, debaixo dos pés dos astronautas, podiam ver-se as copas das árvores do arboreto da Fortuna, uma área verde que ficava no nÃvel inferior. Era um enorme jardim interior, mantido pela magia da hidropónica evoluÃda, com espécies de floras certamente alienÃgenas, de todas as cores e feitios, vivendo em harmonia. Talvez aquele aroma ambiente viesse dali. Ou talvez o arboreto não estivesse mesmo ali. Não passasse de uma engenhosa holografia. Um chão holográfico. Autumnsun já vira coisas mais estranhas desde que subira a bordo da Fortuna.
Mas nada naquela sala parecia normal. Todo mobiliário era alienÃgena na sua natureza. As cadeiras em negro, as mesas baixas feitas de algum tipo de rocha vulcânica que ainda parecia estar quente. Tornava-se evidente que Athena tinha olho para escolher aquelas peças arqueológicas, isso era indiscutÃvel. O universo inteiro não passava de um enorme catálogo de mobiliário para ela. Completamente ao seu dispor. As estátuas estavam lá, claro, e as esculturas feitas em materiais desconhecidos. As gravuras bizarras, também, mas o mais perturbador de todas as coisas naquela sala seriam as múmias. A sala era perfeitamente redonda, e as paredes estavam revestidas por enormes mostruários onde se podiam ver os restos mortais de criaturas claramente alienÃgenas por detrás de expositores de vidro tão transparente que podia muito bem nem existir.
Stonewall foi o primeiro a vê-las. Deparou com o espectáculo macabro assim que entrou. Havia um esqueleto completo preservado, à sua direita de uma criatura de traços gerais humanóides. Teria talvez dois metros de altura. O crânio era muito parecido com um crânio humano, excepto pela ausência do orifÃcio nasal. Os dentes eram muito mais longos. O esterno, os ossos das clavÃculas e as costelas eram maiores do que as suas representações humanas, mas a coluna era mais delgada, e o osso que faria as vezes do ilÃaco também. Depois, as pernas possuÃam as mesmas articulações que as da espécie humana, embora algumas saliências ósseas crescessem lateralmente do que talvez fosse o fémur daquela criatura, dos joelhos e dos tornozelos. Os braços eram muito mais longos que os braços humanos, e também tinham desenvolvimentos ósseos nos cotovelos. As mãos da criatura eram mais longas que as mãos duma mulher humana, e os dedos eram afiados, o que lhes dava mais o aspecto de garras. O mais extraordinário daquele espécimen seria a armação óssea extremamente emaranhada que crescia da parte posterior do esqueleto e se espraiava num padrão idêntico e equitativo para cima e para os lados. Eram asas, Stonewall estava certo disso. Estava a olhar para os restos mortais de uma criatura humanóide com asas. Sob o vidro que a separava do esqueleto, uma inscrição luminosa dizia simplesmente “Anjel Howq Losâ€.
Berrylight, por sua vez, observava outra múmia exótica que, ao contrário da outra, não estava reduzida à sua ossada. Parecia perfeitamente conservada, e brilhava como ouro. Havia um corpo principal, esguio e algo pequeno, onde os membros mais facilmente identificáveis, como as pernas e os braços, estavam lá, mas fundidos com o resto do corpo. Não se detectava um crânio, apenas um enorme espigão na parte superior do corpo, cuja ponta afiada deveria subir até um metro e setenta, no máximo. Mas este ser tinha uma grande amplitude graças ao que parecia ser um manto orgânico que se estendia para ambos os lados, um pouco como as raias que o pai de Berrylight costumava pescar em Prócion VII. O soldado do Corpo Espacial podia ver o seu reflexo na superfÃcie dourada do manto alienÃgena, onde formas entrançadas se desenhavam sem objectivo aparente. Leu a inscrição: “Judas Mal Creoâ€.
«Mais uma sala de troféus?» Perguntou Berrylight a Ransomclan.
«Bonita, não é?» Respondeu o comandante da nave que também era o quartel-general da Athenacorp.
Stonewall estava dois mostruários à frente. Ia lendo as inscrições em voz alta.
«Hetter Gris Mos, Tohor Gahar, Aer Dat Daeus, Peren Ubul… Devem ser às dezenas…!»
«É sem dúvida uma amostra invulgar da necrologia do universo…» Observou Autumnsun, demasiado boquiaberto para tentar esconder que estava. Olhava em volta, detendo agora a sua atenção em algo com uma cabeça gigantesca e uma cauda empoleiradas num corpo atarracado. «Nunca vi nenhuma destas espécies anunciada nas publicações de xenobiologia. Porque manter tais descobertas em segredo?»
Olhou para Sulandra, que apenas lho devolveu em silêncio. Autumnsun começava a sentir-se frustrado por aquela mulher. Isso irritava-o. Até ao momento, estava a conseguir ocultar essa irritação. Estava habituado a saber mais do que quase todos e, pelo menos, tanto quanto uns poucos, mas Sulandra parecia ter conhecimentos aos quais Autumnsun não tinha acesso e, pior que isso, Sulandra não estava muito disposta a partilhá-los.
«Esta nave é como a Arca das escrituras antigas» observou Stonewall, olhos azuis hipnotizados pelas formas grotescas e, em muitos casos, terrivelmente familiares que estavam dentro dos expositores.
«Realmente, assim parece» concordou Autumnsun. «A Arca de um Noé que não chegou a tempo de salvar nenhuma destas criaturas infelizes. Só pode recolher os restos mortais.»
«Assim até é melhor, porque não têm de pagar direitos…» gracejou Berrylight. Olhou sobre o ombro, para Sulandra. «Não é?»
«Às vezes, as memórias do pó tornam-se lucrativas» respondeu ela, com um encolher de ombros.
«Sim, é a vida» disse o astronauta-soldado, em falsa consonância.
«Mas não é disso que se trata» assegurou Sulandra com a tal falta de sinceridade que não se dava ao trabalho de mascarar. «No caso destas espécies, e de muitas mais, não podemos fazer nada além de tentar preservar alguns vestÃgios da sua breve passagem por este universo.»
«Tão breve quanto a nossa, passada de mão estendida aos Deuses» disse uma voz perfeita, levemente rouca e numa pronúncia arrastada. «Aos apalpões, desesperados por encontrar sentido e substância no crepúsculo de um cosmos demasiado fugaz.»
Três figuras estavam presentes na sala, e os outros, absorvidos pela macabra exibição, nem tinham dado por elas. Uma evidenciava-se, à frente das demais. Muito alta, de figura atlética e pele muito branca. O cabelo lourÃssimo estava firmemente puxado para trás e preso na nuca, sem dúvida para exibir toda a beleza dos brincos de azuis reluzentes que ela trazia, e que não deviam ter origem em nenhuma artesã humana. Um rosto imponente, esculpido, dominado por grandes olhos azuis lagoa, intrusivos mas pouco expressivos, e pelos lábios grossos na boca estreita. Uma expressão indecifrável.
Apresentava-se muito bem, num manto até aos pés de linhas levemente antiquadas e sem mangas. O tecido também era diferente de tudo o que se via na moda humana. ImpossÃvel de identificar, nos seus tons cinzentos e acastanhados. Aquela mulher parecia-se com algumas das estátuas que povoavam a Fortuna. Havia um ar inquietante à sua volta. O trejeito nos seus lábios faziam lembrar um estranho sorriso apertado. Os olhos brilhavam demasiado, intimidantes. Estendeu a Stonewall um braço longo de musculatura seca. A mão dela estava muito fria, mas era robusta.
«O meu nome é Athena» disse ela, pronunciando as palavras com cuidado, educadamente, quando apertou a mão à cosmonauta da Cry of the Angelus. O longo pescoço dela moveu-se muito ligeiramente para que os olhos pudessem assestar-se sobre o rosto do astronauta Stonewall.
«Chamo-me Stonewall» respondeu o astronauta uns bons vinte centÃmetros mais baixo, «Navegador e Segundo Oficial da Cry of the Angelus.»
«Espero que a Schola Belicus se sinta bem-vinda à minha humilde casa» disse Athena, conseguindo ser ainda menos sincera que a irmã mais nova.
«Nós, da Schola Belicus, somos soldados» respondeu Stonewall. «Sentirmos que somos bem-vindos a qualquer lado nunca está na nossa lista de prioridades.»
«Mesmo que assim seja, sejam bem-vindos à Fortuna.»
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