NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Dezembro 02, 2009, 14:37:38 » |
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17. “Moonchildâ€
O aperto de mão alongou-se dez segundos para lá do que aquilo que o protocolo numa situação daquelas consideraria necessário. Stonewall teve a oportunidade de ver Athena mais de perto e ficou com a sensação de que havia algo de lagartóide na mulher, talvez na maneira como a sua boca se movia, talvez na forma como os olhos dela a observavam demoradamente, algo semicerrados, e de como o brilho sedutor dos olhos azuis de Athena encandeava Stonewall, e de como, se aquela fosse outra situação, o astronauta sentir-se-ia lisonjeado. Assim, sentia-se apenas um pouco incomodado. Como se o notasse subitamente, Athena deixou-lhe a mão e, na sequência desse movimento elegante, indicou as duas pessoas que permaneciam silenciosas atrás de si, à espera da sua deixa.
«Estes são alguns dos cientistas da minha equipa, Segundo-Oficial Stonewall. Apresento-lhe, se me permitir, o Doutor Moonchild e a Professora Faithborn.»
Moonchild era um homem que aparentava uns quarenta anos, um pouco mais baixo que Athena, e mais magro, mas vistoso. O cabelo dele era dum louro mais opaco, a combinar com a expressão do rosto, mais fechada. Os olhos eram verdes e pequeninos e desconfiados. Vestia um fato negro, razoavelmente actualizado, de ombros largos e corte horizontal. Tinha as mãos nos bolsos e observava os recém-chegados com uma expressão de quem comia sempre caviar, sem fazer menção de apertar a mão a nenhum deles. Autumnsun ainda lhe estendeu a mão.
«Sou Autumnsun, o quinto homem mais inteligente da história da Huma…»
«Não acha que as apresentações são prematuras e fúteis?» Cortou Moonchild, com uma voz penetrante. «Não posso dizer que faça questão de tomar um copo com nenhum de vocês no futuro. Para que nos serve saber os nomes uns dos outros?»
«Bom, se vamos trabalhar juntos, é apenas bom senso que…» Stonewall não conseguiu terminar o seu raciocÃnio.
«É isso que a Schola Belicus pensa que veio aqui fazer? Trabalhar em conjunto com o sector privado?» O Doutor Moonchild olhou com evidente sarcasmo para Athena, que manteve a postura cordial mas nada fez para corrigir a do seu colaborador. «Alguém devia ter avisado Domus Regia…»
«Bem, eu sou um cientista independente» disse Autumnsun, levemente ofendido, «de Academia.»
«Não é relevante saber quem o jovem é nem de onde veio» respondeu Moonchild, olhando-o de cima para baixo. «Mesmo nada.»
«Talvez tenha razão» aquiesceu Autumnsun, recolhendo finalmente a sua mão. «Mas é tarde demais no seu caso porque até sei quem o Doutor é. Sei mesmo bastantes coisas sobre si…»
«Duvido» retorquiu Moonchild, sempre na mesma pose.
«Eu sei que o Doutor esteve intimamente envolvido nos Projectos Novo ParaÃso» exemplificou Autumnsun, com um sorriso a dar para o pomposo. «Eu li alguns dos relatórios internos encomendado por Domus Regia ao Conselho CientÃfico, incluindo vários onde as comissões de inquérito classificavam tudo o que as equipas cientÃficas do Novo ParaÃso faziam como sendo actividades “extremamente ilegaisâ€, “ilegaisâ€, “possivelmente ilegais†ou “legais, embora eticamente questionáveisâ€.» Autumnsun observou a atitude sobranceira do homem transformar-se em visÃvel inflamação. «O Doutor liderava grande parte desses projectos, não é verdade?»
«A Ciência que vale a pena nem sempre é reconhecida na sua visão e no seu génio» retorquiu Moonchild, «mas se não tivesse orgulho em todos os trabalhos que fiz nos Projectos Novo ParaÃso, o meu nome não apareceria nos relatórios que refere.»
«Mas o Doutor não estava reformado?» Autumnsun dramatizou, como se andasse à procura da palavra certa. «Desculpe, talvez não me tenha expressado da melhor forma. Tenho a certeza que a superintendência do Conselho CientÃfico talvez preferisse o termo “fugidoâ€.»
«Não me impressionam as palavras que os cães de fila do Conselho possam ter ladrado aos meus calcanhares na altura. Vim embora quando achei que devia vir.»
«Em vez de ficar para defender o seu trabalho, se tinha tanto orgulho nele, como alguns dos seus colegas ficaram. Enfrentaram as investigações para justificar o injustificável.» Autumnsun permitiu-se uma pausa. «Cumpriram pena, não foi?»
«Desconheço. Mas nunca me ouviria chamar “colegas†a mentes claramente inferiores à minha, dessas que se sentem bem no canil e gostam das festas que recebem no lombo da parte do dono.»
«O que o fez deixar para trás as alegrias da clandestinidade?» Autumnsun não largava o osso. «Foi o dinheiro que a Athenacorp lhe pode oferecer? Uma visita guiada às salas escuras desta nave-museu?»
«Nem uma coisa nem outra» respondeu Moonchild, com secura, cruzando os braços finos sobre o peito largo.
«Ou foi todo este secretismo bacoco?»
«Sou afligido por um desgosto enorme em relação ao contacto humano. A Athenacorp prometeu-me que manteria outros seres humanos a uma distância apreciável da minha pessoa.»
«Está no contrato do Doutor» informou Sulandra, com um trejeito de um sorriso. «Em troca, ele oferece-nos os inestimáveis préstimos da sua mente tridimensional.»
«Vejo-me obrigado a referir que o facto de terem convidado a bordo pessoas desta espécie» disse Moonchild na direcção de Athena, referindo-se aos recém-chegados, «fica perigosamente próximo de constituir uma flagrante quebra de contrato no que à tal cláusula se refere.»
Athena nada disse.
«Deviam ter metido lá pelo meio uma cláusula qualquer que obrigasse o Doutor a seguir os trâmites da boa educação» sugeriu Autumnsun.
«Falha nossa» admitiu Sulandra prazenteira.
«Ou, já agora, uma sobre ética» acrescentou Stonewall. Também tinha lido os mesmos relatórios durante a viagem até aos confins de Andrómeda.
«Ah, a ética…» Sulandra não fez grande caso da palavra. «Na Athenacorp, desagrada-nos qualquer palavra que seja sinónimo de vassalagem. Praticamos a ciência no seu estado selvagem. A ética é apenas um chicote de Domus Regia. Não tem o alcance que eles por lá gostam de pensar que tem. E nós valorizamos demasiado as nossas costas imaculadas para nos pormos ao alcance dessas noções conformistas.»
O silêncio de Athena contagiou todos os presentes por alguns instantes. Finalmente, Faithborn estendeu a mão a Autmunsun, procurando quebrar a espiral de tensão entre os astronautas da Cry of the Angelus e Moonchild. Tinha a mesma altura que o academiano, mas o cabelo era castanho-escuro, pelo queixo, e o rosto mais longo, muito mais bonito. Olhos cor de amêndoa e nariz avoengo. Podia passar bem por uma daquelas mulheres que trabalhavam num escritório da Fundação, algures, ganhando bom dinheiro. Boa apresentação e inteligência, com cara de quem gosta, apesar de tudo, da aspereza dos raios de sol pela manhã, e com inclinação para o teatro musical e para escolher mobiliário almofadado. Usava um vestido preto que terminava acima do joelhos, de listas verticais transparentes que expunha a espaços toda a beleza das curvas suaves do seu Q.I..
«Sou a Professora Faithborn» disse ela com um sorriso leve. «Estendo-lhes a mão para lhes comprovar que nem todas a bordo da Fortuna sofrem de idiopatias afectivas graves.»
«É bom saber…» afirmou Autumusun, apertando-lhe a mão. Estava fria. «É um prazer conhecê-la, Professora. Na viagem para cá, tive a oportunidade de ler alguns dos seus livros. “Ideias Mecânicas Avançadas dos Segundo e Terceiro Milénios†é muito interessante, mesmo para um desconhecedor da engenharia espacial, como eu. Antes de ter lido o seu livro, era com vaidade que eu costumava revelar nunca ter pensado, sequer uma única vez, sobre o que fazia funcionar os motores das naves espaciais nas quais viajava. Nunca me apeteceu dar uma olhadela. Tanto quanto sabia, os motores até podiam ser alimentados pelas almas guinchantes das condenadas ao inferno.»
«Não, as almas guinchantes das condenadas ao inferno são o combustÃvel do nosso sistema económico» retorquiu Faithborn, e o sorriso alargou-se. «Do qual me exilei atempadamente há nove anos.»
«A Fundação deve ter chorado baba e ranho quando a perdeu para a Athenacorp» adivinhou Autumnsun.
«Não me parece» confessou-lhe a arqueóloga. «Não é como se a Fundação estivesse em falta de jovens grandes talentos a baterem-lhe à porta… Tinha quase trinta anos quando me vim embora. Foi na altura certa. Sou mais feliz com Athena.»
Autumnsun olhou para a mulher alta, que se encontrava a uns quatro metros de si, conversando com Stonewall. Sempre estática, como uma árvore. Sulandra aproximou-se da irmã e deu-lhe a mão, entrelaçando os dedos. Athena não a afastou. Contudo, não se moveu, continuando a falar com Stonewall.
Uns dez passos atrás das três, Moonchild observava Berrylight. Havia um sorriso estranho, significativo, no rosto do misterioso Doutor. Autumnsun viu que ele olhava com evidente desprezo para a R-Type que Berrylight trazia à cintura. Berrylight também o notou, apesar de fingir que estava a admirar os restos mumificados de mais uma espécie inteligente extinta, mas o jovem génio conseguiu perceber que o soldado não gostou nada do sorriso de Moonchild.
«Soldadinhos de chumbo…» disse Moonchild com desconsideração. «Cinco mil anos de civilização humana e ainda não passam de rapazinhos com os seus brinquedos. O que pode esse seu brinquedo contra o poder bruto do intelecto, soldado?»
«Bom…» Berrylight virou-se para encarar o doutor.
«Sabe que está desactivado, não sabe?»
«Não preciso do meu brinquedo para matá-lo, mesmo à distância em que me encontro.»
«Aposto que não» disse Moonchild. Sorriu como que a desafiar o soldado a tentar. «E aposto que mais facilmente eu ressuscitaria do que você seria capaz de encontrar uma forma diferente de me matar outra vez.»
«Uma forma diferente? Quem diz que tinha de ser diferente?»
«Digo eu.»
Moonchild virou-lhe as costas, perdendo o interesse na conversa. Berrylight fitou Autumnsun e ambos trocaram olhares preocupados.
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