PERTO DO CÉU, LONGE DO MAR

[CAMPISTA CABRAL]

Penso que certas pessoas, muitas delas aliás, só podem amar ou gostar de alguém quando têm uma relativa distância do outro. O conto Perto do céu, longe do mar, trata disso, desse sentimento feito às avessas, feito na direção contrária. Não é amar menos, mas amar ao longe. Perto do céu, longe do mar faz parte de um conjunto de textos, PRIMEIROS CONTOS.


    Dirceu gostava de escrever, de usar as palavras. Brincar com elas... E brincava e usava e escrevia e se assustava.
    Contudo.
    Nada o atraía. O consolo era a irmã, que cuidava dos ferimentos da vida, arrumava-lhe outro emprego, restaurava-lhe a dignidade, estimulava suas ações nas horas incertas, tomava as dores e as angústias para si... Era o colo, o aconchego, o sorriso e a mão.
    Dirceu ria, chorava, mentia, resmungava, relutava, mentia...
    Beatriz era o anjo. A mão pronta para estender. Uma alma boa e solta do mundo, livre das palavras. Duras palavras.
    Dirceu chorava, mentia, resmungava, relutava, mentia, insistia.
    O relógio do tempo, voraz e incansável, desfiou o pequeno coração de Beatriz.  Não era possível viver daquele jeito! Quando Dirceu tomaria juízo? Se um dia isso acontecesse... Por que fazia da vida um circo armado? Meu Deus! Um picadeiro. Irmãos sim, sangue igual, o mesmo pai e a mesma mãe. Irmãos! Não queria o seu mal, pelo contrário, queria-o bem.  Amava-o muito, entretanto, não podia aguentar tanta irresponsabilidade.
    Beatriz chorava, consentia, relutava, mentia para si mesma.
    Um anjo cansado e com as penas espalhadas e com o olhar vago e triste.
    Beatriz.
    O que era? O que era? O que...
    Era...
    Um dia claro, crianças brincando com uma peteca, duas bicicletas vermelhas, o filho de seu Adolfo cantando e tocando um violão. Um dia claro. Beatriz sentia uma grande infelicidade. Assim como o tempo, rápido e incompreensível, arrumou as malas e saiu. Sem palavras e sem rumo.
    Deixava Dirceu e o sobrado escuro...
    Dirceu, ao chegar em casa, encontrou um bilhete sobre a mesa, dizia apenas Até logo! Sua irmã Beatriz.”. Ficou desesperado, ficou louco, ficou indignado. Sentia-se incompreendido e fechou-se em si mesmo.  Por que? Beatriz, por quê? Que vida besta essa! Mundo? Que mundo? Não havia nada, nada. Tudo era mentira, uma bobagem inventada. Uma irmã, sangue igual, pai e mãe! Desgraça  dor peito mãos cabeça ombros pesados e segundas, terças, quartas, sábados e domingos e o pensamento arrastado.
    Desesperança.
    A dor foi amarga, mas o próprio tempo soube trabalhar a cura.
    Dirceu vivia mais sereno, preparado para as feridas. Em alguns momentos lembrava-se da irmã, onde estaria? Não conseguia encontrá-la. Aos poucos foi se abrindo para o mundo, reformou o sobrado, agora azul, aparou o gramado, levantou um muro no quintal e comprou um sofá, antigo desejo de Beatriz..
    Ela estava em uma vila de pescadores, longe, muito longe de Dirceu... Encontrara o segredo do mar! Morava perto da praia e todos a conheciam como a dona do mar: Beatriz, a dona do mar.
    A dona do mar.
    Uma grande roda se formava a sua volta para escutar histórias. Beatriz contava histórias. Beatriz descobrira as palavras, longe de Dirceu, descobrira o mar.
    E o mar ensinou-lhe muitas coisas.
    Beatriz olhou o horizonte, o mar infinito, estufou o peito, deixou que a brisa tocasse com carinho o seu rosto e recordou o passado. Coragem, palavra de significado intenso para ela: saíra de uma vida miúda, abandonara tudo que tinha, mas, afinal, o que tinha para abandonar? Lembrou-se do irmão.
    Dirceu, homem casado, havia comprado móveis novos, pintara o sobrado de branco e estava feliz.
    O tempo agia e transformava os seres. Beatriz escreveu uma longa carta ao irmão...
    A carta voltou.
    Dirceu não morava mais no sobrado, vivia agora na montanha, no frio, no alto.
    Perto do céu, longe do mar.
    A vida, sábia e implacável, não deixou que se encontrassem. Eram opostos, de uma outra essência, de sangue diferente: um com os olhos molhados do mar, o outro, com os pensamentos no céu.
    Dirceu e Beatriz.
    Mar, barulho de mar, ondas, brisa, movimento das ondas, sussurro do vento.
    Longe do mar o céu. Perto do céu as montanhas. Céu e mar.

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Meu Deus!

Há tempos não leio nada assim.
Parabéns, mais uma vez, Cabral!

[CAMPISTA CABRAL]

Obrigado Oswaldo! Este conto é da minha época de estudante. Há um certo tempo! Há um certo tempo! (risos).

Um grande abraço!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Faz menos tempo do que o meu tempo de estudante [risos]

[Goreti Dias]

Suave como um céu sem nuvens. Lindo!
Abraço

[CAMPISTA CABRAL]

Este conto é especial para mim porque me lembra os bons tempos de estudante. Soube através de outros comentários que lecionas. É verdade? O que ensinas e o que acha da profissão?

Obrigado por sua leituras atentas!

Um imenso abraço para ti!

[Goreti Dias]

É verdade que leccionei, não lecciono mais, pedi minha aposentação. O meu trajecto pelo ensino foi diverso já que tenho quatro formações distintas. Assim, leccionei primeiro ciclo, leccionei 2.º, 3.º e secundário. Nos últimos, leccionei Português, já que sou licenciada em Línguas e Literaturas Modernas também. Passei um tempo no Ensino profissional onde leccionei Cultura Portuguesa e o melhor vem no fim. Os meus melhores anos passei-os com jovens deficientes num projecto que me deu muita felicidade e realização. Fiz formação especializada em deficiência mental e motora. Agora vou dedicar-me a outras actividades.
Abraço

[CAMPISTA CABRAL]

Muito interessante o trabalho de ensinar! Muitos o veem como missão, como algo sobrenatural ou místico. Outros tantos, como uma tarefa árdua e necessária. O lado romântico, o lado realista! Mas penso que olhar para o outro e ajudá-lo a crescer e a se encontrar no mundo não tem preço! Trabalho em três escolas. Leciono Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Estudei literatura portuguesa e literatura africana de língua portuguesa. Quando me referia ao trabalho com os alunos e ao pouco tempo para as leituras no site estava fazendo uma loucura: um documentário sobre o tempo. Os alunos participaram com depoimentos, gravações, narrações e atuações. Eu entrei com a direção e a edição do material. Ano passado fizemos também um vídeo. O tema não podia ser outro, Palavras.
Bem, já disse um pouco de mim para você e você disse um pouco de si para mim!

Um imenso abraço para ti!

[Goreti Dias]

Como deve ser! Um que fica, outro que parte. Desencantada, um pouco, confesso...
Abraço

[CAMPISTA CABRAL]

Desculpe-me pela pergunta: por que desencantada? A educação aqui no Brasil é difícil. Temos muitas barreiras pela frente. A principal delas? O próprio sistema!

Um imenso abraço para ti!

[Goreti Dias]

Desencantada porque educar já não é bem educar. Pelo menos no meu conceito.
Outro para ti.

[CAMPISTA CABRAL]

Tarefa árdua esta: educar! Parece que a vida inteira é educar! E, claro, assim o é! Educar faz parte da vida e faz parte de nós. Dizem popularmente que a gente aprende a vida inteira ou vive aprendendo. O problema maior nisso tudo é o sistema. Os governos que não têm comprometimento com a Educação! Países se fortalecem quando ensinam o seu povo a ter consciência das coisas! Um imenso abraço e um beijo para ti. Por favor, não se desencantes! Em alguns momentos é difícil mesmo educar!

[Goreti Dias]

Mas o povo que não tem conhecimento das coisas é facilmente manobrado...

[CAMPISTA CABRAL]

Terrivelmente manobrado!!

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Intromentendo-me na conversa de vocês...
É muito triste saber que as pessoas se permitem tais coisas.
É triste saber que alguém é manobrado...
É triste saber que imploram respostas. Imploram limites.
É triste saber que recebem palavras evasivas e superficiais.

Existe uma canção chamada "Se bastasse uma canção". A intérprete (Selma Reis) diz:
"Se bastante cantar com candura
para estancar a sangria
pro Universo viver com candura,
de cantar morreria.
Mas quem sou eu.
Mas quem sou eu?

(...)

É preciso muito muito mais
Cantar com fé
Com o mundo
Com o sol
Com os elementos

Enquanto espero,
Sigo cantando
E cantando eu vou vivendo"

E vivendo nós vamos escrevendo, desenhando, pintando, fotografando, filmando, projetando, cozinhando, falando, amando...

Um grande abraço para vocês...