ARMA BODE

Hoje é dia de repouso. Estou aqui catando pedras enquanto descanso. Aprendi isso com meu pai: “Enquanto descansa, carrega pedra”. Naquela época não só carregava, como quebrava, selecionava e catava pedras para construções em nossa casa. Era divertido por incrível que isso possa parecer. Havia um martelo que nós chamávamos de “martelo de bola”. Meu pai sempre nomeava tudo (e todos!). Cada ferramenta tinha um nome. Poderia ser tanto o nome geral, conhecido por qualquer pessoa, quanto um apelido por ele criado para fazer alusão a algum evento, incidente ou fato curioso ocorrido com o objeto. Poderia ainda ser uma referência ao aspecto da coisa. Tínhamos uma cavadeira amarela chamada de “arma bode” porque, no mesmo dia da sua compra por papai, estávamos com ele vindo de algum lugar do qual não me lembro mais. Só sei do comprado e da vinda conosco até nossa casa. Não sabemos até hoje onde a cavadeira foi comprada. Acredito ter sido próximo à escola onde estudávamos aqui no bairro. Deve ter feito a compra e passado pela escola a fim de nos acompanhar. Pela cena que irei descrever, acredito ter sido esse o trajeto paterno. Até hoje tenho nitidamente gravada em minhas “retinas tão fatigadas” (várias pedras no caminho) foi tão marcante para mim a ponto de esquecer do anterior e do posterior. Foi como se assistisse a um trecho de filme recorrente, cuja obra em questão nunca entrasse em cartaz e nem fosse exibida na televisão ou em outra mídia qualquer. Só me vêm os três irmãos (um deles sou eu) subindo uma ladeira e Sr. Oswaldo, nosso pai, atrás com a cavadeira amarela embrulhada num papel manilha rosa seco meio cor de goiaba e amarrado com barbante de sisal bastante rústico e não tingido (cor de palha). Essa ladeira era transversal a Av. Porto do Rosa. Não lembro o nome dela e nem vou pesquisar agora na Internet porque minha ânsia de contar a história é grande e acreditem já me desviei mais de dez quilômetros da estrada que conduz ao epílogo. Enfim, subíamos os quatro a ladeira e havia um bode já nosso velho conhecido e desafeto de todos. Ele era grande, castanho escuro meio cor de café só que avermelhado ao mesmo tempo. Seus chifres era enormes e ligeiramente retorcidos. O pior desse bicho não era a aparência. Na realidade, não era tão feio assim. Era mal-encarado e mal-humorado. Enfezado, antipático, mal-adestrado, agressivo em excesso, violento e feroz. O terror da população infantil, dos deficientes físicos, dos debilitados e dos muito idosos. Com exceção de um senhor insuportavelmente antipático com cara de três dias de chuva ácida numa cidade altamente poluída. Podem rir. Foi para fazer graça que o descrevi assim. O homem era feio mesmo, mas nada fora do comum. O seu semblante é que o enfeava. O pior desse velhote, cujo nome nunca soube e cuja voz nunca ouvi, era a capacidade que tinha de ser egoísta. Isso me apavorou na cena ainda não concluída da “arma bode”. Vínhamos subindo. O bode estava parado tranqüilamente nos degraus da casa desse insuportável ancião. O sujeito simplesmente enxota o animal para cima de mim e dos meus irmãos. O bicho causaria um estrago enorme ou até mesmo a morte de um de nós. Meu pai em átimos gritou para que nós corrêssemos e travou os chifres do ruminante com a cavadeira. E o monstrengo do homem já dentro de sua propriedade voltava seu olhar para rua e tranqüilamente trancava o portão. Eu não sabia se socorria papai ou se impedia meus irmãos de o socorrer, pois são mais novos do que eu. Só fiz dizer para eles se afastarem e tentei atacar o bode com pedras a fim de que papai pudesse se safar sem ser atingido. Ainda me lembro bem dele gritando mais ou menos assim: “O bicho não tem culpa de nada! Não taque pedra nele. O infeliz desse homem enxotou o bicho em cima de vocês”.
A cena agora era como numa arena. Só que uma arena retangular, inclinada e cheia de pedras. Com um bode no lugar do touro e um homem de calção curto em mangas de camisa sem chapéu e de chinelos com a cavadeira amarela em vez de capa vermelha no lugar do toureiro. Os dois rodavam num movimento semelhante aos das touradas. O bode tentava arremeter-se contra as pernas do meu pai, que se esquivava e firmemente travava os cornos do bicho. Finalmente conseguiu soltar a cavadeira e ao mesmo tempo ameaçar a criatura que fugiu correndo para aterrorizar outras pessoas. No topo da rua estavam Osnizinha e Zezinho esperando. Eu olhava para meu pai e para a Avenida Porto do Rosa, para onde o bode foi. Queria saber se a criatura voltaria em novo ataque. Felizmente não. Fomos andando os quatro pela Rua Capitão Crisanto Bastos e não lembro mais o caminho percorrido até a nossa General Horta Barbosa. Só lembro do episódio que deu nome à ferramenta de “arma bode”.