NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Dezembro 16, 2009, 14:03:06 » |
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Esta não é uma série de televisão bem-educadinha. Não põe o dedo no ar, espeta-o fundo nas feridas. Não aborda os temas que aborda em bicos dos pés nem faz festinhas ao espectador preguiçoso que se contenta em ver a mesma história sacarina, temporada atrás de temporada, da sua série favorita. O modus operandi é o hiper-realismo. O tipo de coisa que o espectador comum, cada vez mais hipnotizado pelos reality shows e pelos ciclos noticiários vinte e quatro horas por dia, procura evitar a todo o custo. Nem é que lhe custe muito evitar, porque tem do seu lado a vontade dos executivos dos canais abertos em lhe filtrar aquilo que lhe faria impressão, lhe faria pensar. Não mostram para que não tenhamos de ver. Olham por nós, para que possamos fechar os olhos. Há aqueles que, agradecidos, retribuem o esforço, perdendo-se num tubo catódico cada vez mais cheio de aspirantes a estrelas, jornalismo de entretenimento, séries policiais em que é mais o corte do fato das personagens e as tecnologias destas que interessam.
Mas, sobre a série…
Nesta unanimemente considerada obra-prima da televisão americana não existe o Bem, não existe o Mal. Como Omar diz, tudo faz parte do jogo. Como Proposition Joe diz, tudo é negócio. “A Escuta†não é uma série policial, não é uma história sobre o crime. Seriam redutoras tais classificações. Não que os autores, David Simon e Ed Burns, tivessem o desplante de alguma vez lhe chamar isso, mas “A Escuta†será uma narrativa cultural sobre uma cidade especÃfica, Baltimore, confrontando o espectador nesse palco de vielas e bairros sociais com os pés-de-barro da mitologia de toda a sociedade americana (muitas vezes vista como exemplo para o Ocidente) onde a corrupção é endémica e a panelinha é universal. A Justiça e a Redenção são apenas mais dois desenhos a giz no pavimento, dois nomes a vermelho naquele painel na Brigada de HomicÃdios.
Mais interessadas em estatÃsticas, cozinhadas e requentadas, se necessário, as chefias da autoridade policial de Baltimore tendem a preocupar-se apenas com as suas carreiras individuais, seguir assobiando para o lado na presença do amontoar dos corpos e empilhar dos casos que, mesmo chegando a tribunal, acabam quase sempre repelidos. JuÃzes enfastiados permitem que advogados de defesa bem pagos auxiliem os barões da droga e os seus séquitos a esquivarem-se a acusações, contornarem provas, darem a volta a testemunhas e saÃrem em liberdade. A vida continua. “A Escuta†começa de facto numa cena destas, com o detective espalha-brasas Jimmy McNulty, admitidamente pouco interessado em que se faça justiça, o que ele quer mesmo é ver os criminosos perderem uma vez, só uma que fosse, ignora a cadeia de comando para ir fazer queixinhas a um juiz mais diligente. Phelan arma um pé-de-vento que obriga as chefias a mexerem-se, a perseguirem a organização Barksdale que há demasiado tempo controla com mão de ferro (e muito chumbo) o tráfico de droga. As chefias, querendo apenas aplacar os humores do Sr. Dr. Juiz, montam então uma operação-fantoche constituÃda quase só por fracos polÃcias e pessoal há muito nas prateleiras liderada por Daniels, um tenente preso pelas suas ambições pessoais e um passado pouco claro, fácil de controlar. O sucesso da operação não é tão essencial quanto é o habitual continuar sendo o habitual. Como castigo, McNulty é destacado para fazer parte da equipa e, lentamente, as coisas dão ideia de avançar.
Lentamente, porque “A Escuta†tem o ritmo de um romance, daqueles mais grossos e com muita atenção ao detalhe. Lentamente, porque uma boa história merece o tempo que for preciso para se desenvolver, para ser bem contada e para que as suas personagens se materializem e realizem. Lentamente, porque o trabalho de detective é, por natureza, lento, como lento é o da Justiça, e os autores da série, tendo à sua disposição no menu todos os lugares-comuns da narrativa policial televisiva onanista e confortável, resolveram rasgá-lo, atirá-lo fora e optar antes pelo realismo, mal passado, que é para não dizer brutalmente cru.
“A Escuta†é, então, de um realismo sufocante, imersivo, absolutamente claustrofóbico. É um trabalho com a intensidade rara da televisão literária que faz tudo para espicaçar aquelas partes sensÃveis do nosso cérebro desesperadas por um pouco mais de substância. E será isso que David Simon e Ed Burns quiseram oferecer-nos. Apenas um pouco mais de relevância, criando uma história actual sem terem de se esticar muito em termos de ficção, e tão próxima do nosso mundo, tão humana que é difÃcil não nos revermos, mesmo nalgumas das caracterÃsticas menos abonatórias das suas personagens. Estas, carregam a história tanto quanto a história as transporta a elas. Os polÃcias tanto quanto os criminosos porque, com “A Escutaâ€, gozamos do privilégio do ponto de vista dual. Nós, os espectadores, somos apenas a mosca nas paredes dos protagonistas. E será difÃcil dizer quem são as personagens protagonistas porque todas, passe o pleonasmo, desempenham o seu papel. Só a primeira temporada tem mais de sessenta personagens. Não podendo dividi-las entre os bons e os maus, porque tais superlativos estavam no menu que os autores rasgaram, podemos etiquetá-los de PolÃcias e os Outros.
(continua...)
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