Vitor da rocha
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« em: Julho 30, 2010, 13:37:36 » |
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Lenço de Papel 10
Passou-se meia hora, o que na Internet é o tempo de esfregar um olho, tal é a força com que esta comprime as unidades de medida do tempo. Está farta. Mas ainda não quer, teimosamente, regressar ao dever. Decide entrar num chat, só para espreitar pela fechadura. Uma sala onde todos se podem falar, mas nenhum pode ver os outros, espécie de roda de comunicação com o além promovida por espÃrita, onde a voz surge escrita e a face se esconde. Escreve, desinteressadamente, “está aà alguém?â€. E fica uns segundos à espera. Entretanto, olha para a sala da redacção. Alguns colegas já saÃram. Disseram-lhe até amanhã, até já, a que ela respondeu, como se coçasse o nariz. À sua frente só o Artur, pândego e cÃnico, quando consciente, e melancólico, quando se descuida, o que é raro. Concentrado, pisa as teclas avidamente, para agarrar as ideias que lhe podem fugir. Mãos e cérebro mandaram parar as restantes partes do corpo, mumificadas perante a fúria dos comparsas. Os olhos ainda ensaiaram um gesto de rebelião, dirigindo-se para ela, assim como os lábios, que esboçaram um sorriso, mas depressa reencaminhados para o redil, escravizados. No ecrã, mais de dois minutos depois, surgiu uma resposta. “Estou eu!â€. Eu, que eu?, pensou Glória, sabendo que de pouco adiantaria a curiosidade, pois aquele eu poderia tomar qualquer forma, qualquer nome, qualquer sexo, qualquer tara, protegido pelo anonimato. “Quem és tu?†“Sou WXYZ. E tu?†Glória, quem devo ser eu?, perguntou-se, a rir. Isto de poder dar um nome e identidade falsos tem a sua graça. Posso ser rainha, puta, preta, ruiva, cigana, doida, cientista, julieta, romeu, homem, lésbica, bissexual, terrorista, missionária, pedófila, tarada, séria, filósofa. E um nome que nenhum registo civil aceitaria. “Riagloâ€, escreveu, para brincar com o seu próprio nome. E ficou, curiosa, a olhar para o ecrã, à espera de resposta. Tocou o telefone lá para outras bandas da sala. Uma das paginadoras atendeu. Entrou a Salete, magra e baixa, cabelo curto de homem, fria, jornalista. Cruzou as calças de ganga, na cadeira ao lado.da da Glória, displicentemente, como se lançasse uma inconsciente baforada de fumo, o que, justamente, acabara de fazer no átrio de entrada, jaula destinada aos fumadores pela direcção do jornal, então, já acabaste a tua peça?, ao que Glória respondeu que sim senhora, já acabara a peça sobre um deputado que fugira ao fisco e agora estava a escrever outra a partir dum relatório da OCDE relativo à iliteracia em Portugal, mas já estava cansada de tanta tecla mastigar e metera-se na Internet, em busca de algo indefinido e acabara com os pés molhados num chat, onde deparara com alguém do outro lado, que queria trela, olha-me só para isto. “És homem ou mulher?â€, surgira, precisamente quando se queixava de tanta tecla comida. Eh pá, responde-lhe que és homem, só para ver a resposta, alvitrou a Salete, inclinada sobre a cadeira da colega, para ler a mensagem no ecrã vizinho. “Pois eu sou uma triste mulher incompreendida e carente...â€, surgira, vindo do outro lado do computador.
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