Vitor da rocha
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« em: Setembro 03, 2010, 16:35:04 » |
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Terminada a passagem de honra pelo meio da assistência a recolher os impostos doados, a condessa voltou para o prÃncipe e os dois, de mão dada, acenaram pela última vez ao povo, e pela passadeira vermelha retiraram para os seus aposentos andantes, diluindo os derradeiros vapores de fantasia que pairavam no ar com o fechar da porta e o apagar das luzes no interior. Os assistentes puderam então fechar a boca e voltar à noite, dispersando para as suas vidas em pequenos grupos, onde os comentários sobre o que acabavam de ver os ajudavam na caminhada de regresso à rotina, ele há gente com um jeitão para estas coisas, parece que já nascem a saber fazer macaquices e malabarismos, ó Ti Augusto, não se deixe encantar muito pelos artistas, que é gente estranha e levam vida que só Deus sabe, sempre dum lado para o outro dentro duma casa sobre rodas, piores que os ciganos, que esses ainda assentam arraiais aà num lameiro ou num palheiro, ai, Ti Augusto, almocreves mendicantes é o que eles são, e não de fiar muito, e grasnam as mulheres mais atrás puxadas pelo rabeiro dos homens, vossemecês viram aquela desavergonhada da mulher, com uma saia que pouco maior é que o meu lenço da cabeça, mais furada de buracos que até as estrelas do céu por ela se podiam ver se a puséssemos à frente do nariz, a mostrar as pernas com tal sendeirice e sem moral, como se fosse a coisa mais natural deste mundo, ele há mulheres sem vergonha na cara, mas ó Tia Zefa, a rapariga também não podia fazer aquelas ginásticas todas com uma albarda como a nossa, pois não?, que ainda metia mais riso que admiração pelas suas habilidades, e os homens ainda se punham mais à espreita para lhe lobrigarem o que estivesse por baixo, cala-te para aÃ, rapariga, desavergonhice é sempre desavergonhice, ó Ti Augusto, o senhor tem toda a razão, tanto o homem como a mulher são uns grandes artistas e têm o seu valor nas pantominices que fazem, que nem todos havemos de ser cavadores, bois da terra, nem todos jograis, cada um com valor no seu ofÃcio, e sempre é preciso haver alguém que saiba tais artes para nos aliviar a carga, e neste desencontro tu-cá, tu-lá chegaram à s suas lorgas, para o descanso do corpo, que logo pela manhã é dia de jorna. Só a Leopoldina ainda quis ficar, irredutÃvel na recusa de ver que o arraial tinha terminado. A mãe bem a puxou, ora suave, ora violenta, mas ela, moita-carrasco, mais pegada aos paralelos do chão da praça que musgo a uma fraga, lÃquenes ao tronco da hospedeira, pés fincados na pedra como espigões de galo no lombo de garnizé atrevidote, eu fico com o meu prÃncipe, marulhava ela aos ouvidos da mãe, como as ondas na areia da praia, infinitas e incansáveis vezes, voz gravada nas conchas intemporalmente repetida, eu fico com o meu prÃncipe, eu fico, eu fico, fazendo brotar lágrimas nos olhos da mãe, naquele pequeno espaço que sua mãe ainda guardava para o desespero das grandes ocasiões, Leopoldina, anda embora, filha, olha que o prÃncipe e a condessa já se foram deitar e hoje não virão buscar-te, amanhã talvez batam na porta da nossa casa e te levem, ó minha filha, quem me dera que o prÃncipe do além te levasse, anda, Leopoldina, suplicava, gemia, gania, mas de nada adiantava, e, por fim, para finalmente fazer verter o cântaro de amargura da mãe, a Leopoldina não tem mais nada e senta-se, sem cerimónia, no oleado real, pernas e braços cruzados, tranca pregada na porta do seu querer teimoso, uma mula de turrice. Tão bêbeda de teimosia nunca a sua mãe a vira, de modos que não pôde fugir ao espanto perante a vontade cega da filha, ela que era o único ente que tinha o condão de conhecer os seus humores. A uma dúzia de metros, na esquina duma casa que margina a praça se encostou, desertora, sem mais forças prò combate, assoando-se e limpando o mar salgado com o lenço enrodilhado que trazia no bolso do avental. O silêncio cobriu a noite e o céu estrelado, as luzes dos postes adormeceram, as estrelas cerraram ligeiramente as pálpebras, a lua aconchegou-se a uma nuvem, a negrura da noite escureceu, e a Leopoldina permaneceu hirta, sentada no seu sonho albino, sem tino, pesadamente estática como o sino da torre da igreja. Pelas duas da madrugada, vendo que o querer da rapariga era mais poderoso que a força do tempo, a força do cansaço, a força da desilusão, a força do frio, destemida resolução tomou a mãe de Leopoldina, enregelada até aos ossos, que pegou nas pernas e dirigiu-se prà carroça dos pantomineiros e, primeiro a medo, bateu à porta e depois, perante a falta de resposta, mais afoitamente, que o desespero é pai da mais cega coragem. Piscou um olho de luz da janela da caravana, sem muita vontade, enlevada pelo sono, até que a cabeça desgrenhada do jogral apareceu na porta que entreabria, fitando espantadamente a velha, sem descortinar a razão de tão destemperado bater, e logo a desoras, arregalando-se perante a estátua de Buda contornada a carvão pela noite no centro da pista. Senhor prÃncipe, venha ter com a sua amada, que aguarda a sua visita, o seu convite para o baile no salão da corte, veja-a ansiosa no seu vestido rendado, a alvura da sua pele perfumada pelo ar do céu, os seus cabelos prateados de luar, seus olhos cintilantes do brilho das estrelas, suas faces encarnadas pela cor da passadeira real, suas mãos cobertas por luvas brancas de geada, seus pés calçados em finos sapatos de madeira para socos. Venha, senhor prÃncipe, desça da sua realeza, fale com a sua amada e leve-a para o seu palácio. Ou então, se não quiser levá-la já, diga-lhe quando será que a sua disposição o permite, que os seus desejos se voltam para ela, que sua indiferença se derrete. Envolto em roupão de seda, assim vai o prÃncipe para junto de Leopoldina, que o olha como apóstolo a Jesus, e à música da sua voz acena que sim, que vai para casa, que espera, que sim, que sim, que se porta bem, que ela é uma linda menina, que até amanhã, que sim, que sim, e pela mão dormente da mãe segue de peito lançado para casa e a cabeça à ré, ainda a ver o rasto dos passos do prÃncipe, que balouçando indolentemente a cauda do roupão e o cinto desapertado volta para o palácio errante, a mão de Leopoldina a acenar-lhe com a persistência de Quixote contra os moinhos, cega e surda ao senso do mais comum ser. Os malabaristas esfumaram-se aos primeiros raios de sol a baterem no Cabeço, não fosse a albina cercá-los e capturá-los dentro da caravana, e com eles brincar aos amantes e aos fidalgos, aos bailes e aos casamentos, e só os primeiros madrugadores, à frente das burras carregadas de charruas e arados, sachos e regadores, sacos e cestas, fitos nas leiras que iam apaparicar, é que toparam a carripana com o atrelado a roncar pela lÃngua da estrada, onde as pedras assomavam pelos intervalos da finura do alcatrão velho de décadas, rumo, na certa, a outra terra, para deslumbrar por gestos inusitados os olhos sujos e conformados pela terra e suor.
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