Antonio
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« em: Março 20, 2008, 13:08:43 » |
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Jaime Pereira da Cruz era engenheiro-técnico numa empresa de construção civil. Quadro intermédio, trabalhador, com um bom nÃvel intelectual, percorreu vários departamentos da empresa ao longo dos inúmeros anos em que lá trabalhou. Estava agora no de Orçamentação. Tinha sessenta e dois anos. Já sonhava com a reforma e na forma como a iria usufruir e agora estava ali estendido, frio e branco como mármore, dentro de um bonita caixa de madeira ornamentada com tecidos brancos, finos ou almofadados, lisos ou rendados, e rodeado por ramos de flores. Nesse dia de manhã, no escritório, sentira uma dor intensa no ventre, depois no peito, uma estranha impressão no braço e caÃra de borco sobre a secretária. Nem um ai. Os seus colaboradores que estavam mais perto ainda acorreram. O Pina, que sabia de primeiros socorros pois era bombeiro voluntário, verificou que não tinha pulso mas, mesmo assim, tentou reanimá-lo enquanto a Adelina chamava o 112. Mas não havia mais nada a fazer. Já era finado quando a ambulância chegou. A autópsia revelou morte por enfarte do miocárdio. A intervenção de pessoas influentes propiciou que o cadáver fosse levado para uma capela mortuária anexa à igreja que ficava perto da que fora a sua morada durante os últimos anos. Nela vivera nos últimos tempos com a Doroteia, sua mulher, e com o mais novo dos três filhos, o Miguel. Os outros dois já estavam arrumados: o Hernâni, casado com a Ana, já tinha uma menina de cinco anos; o Orlando, que vivia com a Sofia, ainda não lhe dera nenhum neto. Eram dez da noite e o velório estava muito concorrido. Além dos familiares mais próximos já apresentados acima, estava lá a sua mãe Juliana, viúva e octogenária, que via assim desaparecer o primeiro dos seus dois descendentes. O outro era a Fernanda. Ela e o José Manuel, seu marido, também já lá estavam, assim como a Olga, a filha de ambos, ainda solteira. E várias outras pessoas. Mas mais foram chegando. Com ramos de flores, uma parte delas, entraram com o rosto fechado e um ar compenetrado e sério, triste e choroso nalgumas mulheres. Dirigiram-se para a urna, poisaram os arranjos florais, aquelas que os traziam, e ficaram quietos, em meditação ou oração durante uns instantes. Depois foram apresentar as condolências à viúva, inconsolável com os olhos vermelhos escondidos por uns óculos de lentes muito escuras, à velha Juliana, meio apática pela acção dos sedativos e da idade, em suma: aos mais próximos do Jaime, ou Sr. engenheiro, ou Pereira da Cruz. Eram parentes mais afastados, colegas da empresa, amigos de infância, das escolas que frequentara enquanto jovem e do Instituto Superior onde tirara o curso. Vizinhos, conhecidos de outras firmas, também. Depois afastavam-se para deixar que outros dessem mostras do seu desgosto, estupefacção e solidariedade aos mais directamente atingidos pela terrÃvel fatalidade. - É assim a vida! Acabaremos todos numa caixa daquelas – disse um que, cumpridas as formalidades sociais, tinha ido para o exterior fumar um cigarro. - Era um tipo porreiro! – elogiou outro – Não é justo que um gajo desapareça assim, de repente. - Pois era! Mas para ele terá sido melhor assim do que estar meses e meses a morrer lentamente, a sofrer e a dar uma trabalheira a quem tivesse que cuidar dele – opinou um outro. - Mas estas mortes repentinas causam um impacto muito forte. Quando a doença é prolongada já se está preparado e custa menos – falou um vizinho. - Os colegas que o viram tombar também devem ter apanhado um choque muito violento – alvitrou um parente. - Eu estava lá! Ainda tentei reanimá-lo mas já não havia nada a fazer. É de facto um impacto tremendo – confirmou o Pina. Aproximou-se o filho mais velho, o Hernâni. - Agora é que se vê como ele era estimado. – disse – Nunca pensei que viesse tanta gente. E continuou: - Agradeço a todos a vossa presença. Para nós, familiares, é um lenitivo e também uma forma de nos distrair o pensamento. Estas conversas são boas para nos fazer sentir menos angustiados. - Não é o caso do Sr. engenheiro, mas já estive em velórios, sobretudo de pessoas idosas ou outras cuja morte era esperada, em que até anedotas se contavam – opinou um dos seus colaboradores mais próximos. - É verdade! Mas isso também serve de escape, embora não seja socialmente muito bonito – ouviu-se. - Ó Hernâni! O funeral é amanhã à s três da tarde, não é? – perguntou um primo afastado. - É! O caixão sai daqui uns minutos antes e à s três começa a missa de corpo presente na igreja. A seguir vai para o cemitério que fica atrás do templo – esclareceu o primogénito. E conversas como estas foram-se desenvolvendo em vários grupos. Alguns dos presentes encontraram amigos e conhecidos que não viam há muito. Sem se darem conta disso, cumprimentavam-se efusivamente. - Há que tempo não estava contigo! Tens um óptimo aspecto! Ainda estás a trabalhar no mesmo sÃtio? – disse um tal Bernardo. - Estou! Esta aqui é a minha nova mulher. Divorciei-me e casei de novo – respondeu um Frederico. - Muito prazer! Bernardo Ferreira. - Igualmente! Leonor Martins. E algumas conversas foram-se tornando mais leves. - Oh pá! Já viste como é boa a nova mulher do Frederico? - Nem me fales! Se o morto a visse ainda ressuscitava. - Olha com quem! O Jaime parecia que não quebrava um prato mas partia a louça toda. - Palpita-me que o tipo não tem pedalada para uma coisa daquelas. E riram-se baixinho. Algumas pessoas foram-se despedindo e retirando. Umas disseram que iriam ao funeral; outras que tinham muita pena mas lhes era totalmente impossÃvel comparecer. O espaço foi-se esvaziando. De vez em quando chegava um retardatário. Um deles foi uma mulher de uns quarenta e poucos anos que, mesmo sem querer, dava nas vistas pelo seu ar capitoso. Vestia de preto e cinzento e vinha acompanhada por um jovem com uns doze anos. Deixaram um ramo de rosas vermelhas junto do caixão mas não cumprimentaram ninguém da famÃlia. Afastaram-se para junto de uma parede onde ficaram a observar. Em certo momento disse ela para o rapazito: - Meu filho! Espero que o teu pai tenha feito o testamento e tu estejas lá incluÃdo, como ele prometeu. Senão metemos um advogado no assunto. És tão filho dele como os outros três. Estás perfilhado e, portanto, não será complicado receberes a tua parte da herança – disse a mulher. Pouco depois retirou-se. Um velho colega de trabalho do falecido aproximou-se de outro, também já perto da reforma e disse: - Viste quem saiu agora mesmo? - Claro! - E como é que ela soube? - Há sempre alguém para dar notÃcias, boas ou más. E vais ver que daqui a pouco tempo vai haver escândalo na famÃlia. - Humm...parece-me que sabes mais do que eu!
(escrito em 12 de Março de 2007)
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