Nação Valente
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outono
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« em: Setembro 21, 2021, 19:28:04 » |
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Gaitadas com cigarro
Para maiores de 18 anos
Anos sessenta, margem sul do Tejo. Portugal vivia numa ditadura caquética. O velho ditador, que preso no seu labirinto de conservadorismo, mantinha-o cativo, pela repressão, e pela ignorância, para bem da Nação. Eu era então um adolescente, apolÃtico, que apenas se preocupava com as coisas comezinhas do dia-a-dia. Trabalhava das nove à s dezanove horas, no comércio. Depois de sair, juntava-me com amigos ocasionais num café, o Popular, na praça central, de uma pequena vila operária. VÃamos “Bonanza†na televisão, quando dava, ou ocupava-nos com jogos de tabuleiros, entre duas dentadas, num bolo, ou num chocolate. Em frente do café Popular, havia o café República, onde parava gente mais velha, que eu considerava esquisita. A esta distância temporal, percebi que a sua clientela era constituÃda por elites de apoiantes da República aprisionada. Ao lado do café Popular frequentado por jovens e operários, situava-se o café Central, onde a burguesia da indústria, do comércio, e do mundo rural, se reunia. Ente o Popular e o Central havia um espaço onde se juntavam grupos de gente em amena cavaqueira. Nos dias em que não ia ao cinema, papar uma coboiada, passava por ali, e discretamente, aproximava-me do dito grupo, para cuscar as conversas. Foi assim que ouvi uma discussão sobre os malefÃcios ou benefÃcios do tabaco, quando este ainda, se fechava em copas e não dizia, que era assassino. Durante essa conversa sobre o tabaco, disse um sujeito, entre duas baforadas de fumo. - Pois eu, gosto tanto de fumar, que mesmo quando estou a dar uma “gaitada†estou de cigarro na boca. Adornado com um grande bigode, que lhe protegia a boca, e com umas suÃças que quase chegavam ao queixo, e vestindo jaqueta e calça de cintura alta, só podia ser proprietário rural, pensei eu com os meus botões. E na minha inexperiência de adolescente pus-me a imaginar a cena, pondo de parte a ideia que não se tratava de tocar uma gaita de beiços - Ó Maria José, põe-te lá a jeito que eu vou dar uma gaitada. A Maria José arregaçava a camisa de dormir de flanela, porque era inverno, descia as cuecas e respirava fundo. Estava a preparar-se para uma sessão dupla, em que enquanto tocava a gaita, recebia, sem chupar o cigarro, um brinde de fumo. O marido, acendia um cigarro, que media o tempo da função. Enquanto manipulava a gaita, mantinha-o aceso na boca, num equilÃbrio de artista de circo. -Tem cuidado Zé Maria, com essa gaita do cigarro. Não me puxes fogo aos lençóis. Zé Maria fazia orelhas de mercador. Não podia perder a concentração e deixar apagar o cigarro. Ia a gaitada por água abaixo. A cada chupadela no cigarro, a cada baforada de fumo, mais uma investida. As molas do colchão gemiam de dor e medo. O cigarro deliciava-se. Sentia que cumpria a sua missão de assassino silencioso. Estava habituado a entrar em cena depois do acto, como trofeu do dever cumprido. Mas durante a luta, era ouro sobre azul. -Vens sempre com essa conversa, Maria José. Mas eu sem cigarro nem me sinto homem. E até a gaita fica desafinada, - disse Zé Maria depois do último acorde, e do fogo ter consumido todo o cigarro. Cinza, apenas cinza, foi o que sobrou. Maria José baixava a camisa de dormir, expelia a última gota de fumo, e adormecia. No dia seguinte, questionava-se se tinha tido um sonho, ou um pesadelo. Parti para vestir um camuflado. Parti para uma guerra perdida. Defendi a nação nas matas de Angola. “Angola é nossaâ€. Voltei de visita à vila da margem sul. Muita coisa tinha mudado. O “velho†caiu da cadeira e não mais se levantou. Com ele arrastou quarenta anos da vida de um paÃs, a quem deu o abraço de urso. A liberdade também passou por ali. Na praça central, o café Popular, transfigurou-se em banco, o Central virou loja de chinês. O República chama-se 25 de Abril. Não vi mais ajuntamentos ao fim do dia, a discutir os malefÃcios do tabaco. Nem sei se o homem das “gaitadas, com cigarroâ€, as continuava a dar, ou se numa perda de qualidades, deixou apagar o cigarro, caiu da cama, e não voltou a acendê-lo.
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