Maria Gabriela de Sá
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« em: Setembro 20, 2013, 18:06:01 » |
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Há famÃlias condenadas à desgraça, não sei por quê ou por quem. Ninguém sabe se é destino, maldição ou praga de gente, mas lá que há gente para quem certos dias nunca deveriam ter nascido, é verdade. O dia do nascimento, do casamento, do baptismo… Eu sei lá! Há pessoas, famÃlias inteiras, a quem a desgraça nunca abandona. A não ser no dia em que Deus, ou o Diabo, lhes bate à porta e os leva a todos. Talvez seja Deus a actuar, condoÃdo por tanto infortúnio. Talvez a morte seja para Ele a verdadeira libertação, ou talvez seja, finalmente, o outro que os vem buscar por inteiro, depois de lhe ter levado a alma. E eu até costumo dizer que cada famÃlia tem, no mÃnimo, um amaldiçoado. Excepção à regra era a famÃlia MaurÃcio, em que os verdadeiros amaldiçoados eram dois. O resto talvez tenha sido apenas contágio, pois custa a aceitar a cegueira da desgraça, mais do que a cegueira da justiça. E, assim, aceitemos dois membros como os verdadeiros escolhidos do demónio, os grandes amaldiçoados.
Isaura era uma rapariga rica, única filha no meio de dois irmãos, a quem os pais tinham para deixar uma imensidão de terras. Era baixota, miúda, mesmo no dia em que se casou e, recatada, raramente saia de casa, o que lhe rendeu uma pele branca, sem praticamente sintoma de sol. Depois, ficou pálida até ao final da vida, a menina Isaurinha, mais tarde dona, e foi assim que, com o marido, um homem jovem, não tão rico como ela, teve dois filhos, João e António, os nomes dos dois avós. Até que a morte do marido, poucos anos mais tarde, a deixou, uma viúva precoce, com dois rebentos a quem, desde cedo, se revelou difÃcil cortar o cabresto. Especialmente a João.
E os dois miúdos por lá foram crescendo, criados numa terra com muita gente, rapazes e raparigas de outros tempos, um sÃtio onde Cristo, se lá passou, quando muito, foi talvez para beber um copo de vinho. Apesar do trabalho, o vinho, ao menos aparentemente, estava mais disponÃvel do que a água do fontenário, recolhida no verão pelas mulheres durante a noite, quase a conta-gotas, para dentro dos baldes de lata, na altura da seca. Por isso, Cristo, se passou por ali, quando muito deixou os planos de um milagre agendado para, décadas mais tarde, o lÃquido preciso chegar finalmente à s torneiras das casas.
João desde cedo se revelou um rapaz cordial. Puxava ao pai, diziam, e não trazia o rei na barriga, como sempre fora apontado à famÃlia de Isaurinha. Ambientava-se bem na escola e falava com toda a gente, aprendendo com ela hábitos bons e maus.
Já António era um rapaz estranho. Metido consigo próprio, mesmo tendo da mãe, como o irmão mais velho, autorização tácita para frequentar a taberna onde Cristo teoricamente bebera o copo, nunca lá ia. Antes ficava, sempre que podia, a fazer companhia à progenitora no casarão azul, construÃdo pelo pai, mal casara, numa esquina de terra roubada ao quintal dos sogros, onde eles tinham igualmente a casa da famÃlia. Ambas estavam implantadas nas bordas da ladeira que serpenteava o ribeiro e onde já havia mais, tão velhas como o mundo. E era o que António fazia, depois de os dois irmãos regressarem dos campos onde, como meninos ricos, orientavam os trabalhadores do campo nas lides da terra, se não tivessem ainda de aprender alguma coisa com eles. Tinham herdado isso por causa da tuberculose que lhes roubara o pai, ainda jovem, quando contraÃra a doença com muitas chuvadas no corpo e quando cuidava dos vinhedos herdados pela mulher entretanto.
João, esse vadiava mais um pouco, saindo da cerca onde a viuvez da mãe quase impunha aos filhos de mais de vinte anos que se mantivessem à roda das saias dela, solteiros e disponÃveis para todas as suas vicissitudes. Ninguém conhecia namorada nem a um, nem a outro, até porque a nobreza da mãe, no mundo rural, era de alguma maneira impeditiva de os rapazes casarem com quem lhes apetecesse, uma rapariga do povo. O filho mais velho de Isaurinha e do falecido Simão não se coibia de frequentar as tabernas da sua preferência, de que havia duas ou três espalhadas pelos quatro cantos de aldeia. Era onde os homens, depois da última rega da horta, se fosse verão, ou do toque das trindades, no inverno, enquanto esperavam pela ceia da mulher ou da mãe, iam cumprir o hipotético ritual de Jesus, levando à risca, mais do que uma ou duas vezes, a metáfora do copo. E se João apreciava o convÃvio da rapaziada, jogando à malha ou à s cartas, no largo da terra, debaixo do velho choupo ou na tasca, António, o mais novo, nunca gostou dessa convivência. Sobretudo, tinha de todos esses lugares uma má impressão e o estranho pressentimento de que, muito mais do que Jesus Cristo, por lá tivesse andado o Diabo, a traçar para o futuro um triste desfecho. Embora fosse mais robusto do que o irmão, mais parecido com Isaurinha na palidez, António temia ser agarrado pelo Demónio, quando este se misturava com o vinho e fazia os homens comportar-se como animais raivosos, por causa dos marcos num pedaço de terra agreste.
Era por isso que preferia ficar no quarto, na casa azul construÃda pelo pai, a ler os jornais, quando o carteiro levava as cartas e as notÃcias do resto do mundo à aldeia com dias de atraso.
Se a vida a Deus pertence, houve um dia em que Deus não se importou com a de João. Ao ponto de permitir ao Diabo entrar nela de uma forma sem volta. Desta vez, o motivo a que o demo se agarrou para fazer das suas foi a água de um mesmo poço, com que dois homens, ainda parentes, regavam uma pequena leira. Terças, quartas e quintas era um, nos outros dias era o outro. Era o que dava ter muitos filhos. No dia das partilhas, tudo ficava reduzido a cacos, um caco a ti, um caco a mim…Até à revolta final de todos os cacos. Normalmente, isso acontecia nas tabernas onde, afinal, Cristo não tinha ido beber nenhum copo. Quem lá tinha andado sempre disfarçado era o Demónio, a emborcar com os frequentadores, a dar-lhes palmadas nas costas e a pagar-lhes, inclusive, mais um e outro caneco. Até, como verdadeiro Mefistófeles, que nunca se embriaga, os ver perdidos de bêbados e os levar para o inferno.
Foi o que aconteceu naquela tarde. De repente os gritos ecoaram pela aldeia em peso, ampliaram-se até aos montes, atravessando o rio até à montanha circundante que, finalmente, os abafou.
Depois, de dentro das quatro paredes da taberna, o drama saiu à rua trazendo a morte pela mão. João, no calor da discussão entre os primos bêbados e zangados por causa das águas que regavam a pequena leira, foi o inocente apanhado por uma navalha cega que o mandou para o outro mundo no carro dos amaldiçoados. António sempre tivera razão. A taberna era um lugar maldito e o vinho, desde que não fosse bebido com a parcimónia de Jesus, era igualmente uma coisa maldita. E era essa coisa maldita que o pai e mãe lhe tinham deixado para ele cultivar sozinho, daà para a frente, sem o irmão, a quem sentira a necessidade de igualar fazendo-lhe, em surdina sobre o caixão, uma promessa:
- A minha morte será ainda pior…
O diabo pareceu ficar contente com a alma de João, enquanto António e a mãe prosseguiam, de dia para dia, mais isolados, com a criada velha a fazer-lhes a comida a troco de pouco mais de nada.
António, hora a hora, tornava-se mais sombrio. Envelhecera, ficara careca e comprara um carro último modelo. Sem nunca ninguém lhe conhecer uma única namorada, andava sozinho na estrada de terra batida e tornara-se o protótipo dos avaros. Nunca dava uma esmola, nem boleia a ninguém e, se alguma criança lhe admirava o veÃculo, através das grades da garagem onde o guardava, atirava-lhes pedras afugentando-os. Os miúdos detestavam-no. A história macabra da vida dele tinha ficado para trás no tempo, era desconhecida da miudagem e nenhum deles se sentia obrigado a dar-lhe qualquer desconto pelo passado de que ele também fora vÃtima, depois de ter perdido o irmão. Nem eles, nem ninguém.
Os anos foram passando ainda mais, a velhice extrema aproximava-se a passos largos e, mais uma vez, o Diabo quis beber um copo na companhia do seu eleito.
O problema era que António, apesar de produzir muito vinho nos vinhedos herdados da mãe, sempre detestara as tabernas e quase não bebia. A não ser, de vez em quando, um pequeno cálice de Porto Velho, pouco, porque a avareza não o deixava deleitar-se com os prazeres da vida.
Um dia, de novo os gritos ecoaram pela aldeia, atravessando outra vez o rio até à montanha que, finalmente, os abafou pela última vez. O Diabo estivera na adega da casa onde ele e António tinham bebido o último copo de vinho. Numa grande trave de madeira balouçava-se o corpo do homem, enforcado na sua promessa.
Tinha acabado de partir o último dos amaldiçoados...
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