Nação Valente
Contribuinte Activo
Offline
Mensagens: 1285 Convidados: 0
outono
|
|
« Responder #135 em: Setembro 03, 2021, 19:03:34 » |
|
LVIII
- Olá Irene. Pensei na tua proposta e aceito o convite para jantar. - Não me desiludiste. Era o que esperava. Pode ser hoje. Se concordares, vou fazer a marcação. -Para onde vais marcar? - É surpresa. Depois mando-te o roteiro. Às vinte e uma horas, em ponto, Joaquim compareceu no local marcado. Irene como boa anfitriã esperava-o na entrada. Vestia calça de ganga e uma blusa justa que lhe denunciava as formas esculturais. Joaquim, parece-lhe ter voltado aos anos setenta, quando a conheceu, numa acção polÃtica. Os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo aloirado, agora com reflexos esbranquiçados. O tempo parecia tê-la esquecido, não fosse a pele do rosto um pouco mais murcha. - Bem vindo, Quim. Passou muito tempo, mas não te esqueci. Ficaste na minha lembrança, como um momento importante da minha vida. Juro que, houve alturas, em que me atacava a saudade. - Ora Irene, – respondeu Joaquim – trocamos cromos. Como te podia esquecer? Foste a segunda mulher que me marcou, e não houve mais nenhuma. E sempre acompanhei a tua carreira, de longe ou de perto, quando estive na plateia a apreciar as tuas representações. - E porque não me procuraste? - Achei que tu, como eu, te concentravas no trabalho Mas como se costuma dizer, águas passadas não movem moinhos. O que interessa é o momento, e aqui estamos. Surpreendeste-me com a escolha deste restaurante em Alfama, perto de onde vivo. - Pensei em ti, para além de ser uma casa onde gosto de vir comer bem, e ouvir a canção nacional, por excelência, e de que sempre fui apreciadora. Ainda cheguei a cantar, quando comecei a vida artÃstica. Durante o jantar, a conversa concentrou-se nas memórias de um passado, em que correram em pistas diferentes. Irene ouviu Joaquim com interesse. Este fez questão de acentuar que casou com a polÃcia, se assim se pode dizer. E de tal modo gostou da relação, que quando se deu o divórcio, arranjou uma espécie de substituta, trabalhando com detective privado. Apenas à pouco tempo. e em função de uma investigação, reencontrou, a que tinha sido a mulher da sua vida, com quem decidiu reatar a relação, precocemente, interrompida. Dessa relação nasceu uma filha que desconhecia. - Parabéns Quim. Deves estar contente por descobrires que tinhas uma famÃlia desconhecida. Eu, com disseste, também dei mais espaço, para a carreira. Depois de ti, tive relações livres, e sem qualquer compromisso. E como tu, também tive um filho, a quem me dediquei, para lá do teatro. Foi uma escolha assumida. - Ainda bem Irene, se era esse o teu desejo. E sem querer ser abelhudo, o pai também se assumiu. - O pai? Não sei quem é, nem quero saber. Sempre fui adepta do amor livre. Pelas minhas contas, a gravidez começou, entre relações. Tanto podias ser tu, como podia ser outro. -E nunca quiseste fazer um teste de paternidade? - Como te disse, pode parecer estranho, mas não o quero partilhar. Foi uma opção assumida. O Pedro Galaz é um filho maravilhoso, que me enche de orgulho. Cursou direito e exerce advocacia. - Caramba Irene, o mundo é pequeno. Foi um jovem com esse nome, que contactou a minha filha Laura, por causa de uma acção de divórcio, do cliente que ele representava, chamado Damião. Lisboa, querida mãezinha Com o teu xaile traçado Recebe esta carta minha Que te leva o meu recado
A voz melódica e forte da fadista ocupou a sala, e abafou o ruÃdo dos talheres e das palavras: Apenas os acordes das guitarras, que envolviam o canto, ousaram quebrar o silêncio. Na repetição do refrão, a cantora, disse. - Dedico esta música, de Villaret/Armando Rodrigues, à minha amiga Irene, que me a pediu para homenagear o seu amigo, Joaquim Correia, detective e grande apaixonado pela nossa cidade. Cantemos todos. - - Vai dizer adeus à Graça Que é tão bela, que é tão boa Vai por mim beijar a Estrela E abraçar a Madragoa E mesmo que esteja frio E os barcos fiquem no rio Parados sem navegar Passa por mim no Rossio E leva-lhe o meu olhar
- Ó Irene, só tu. Sinto-me envergonhado. Se não te esqueceste, sabes que não gosto de protagonismo. Mas não consigo prender a emoção - Quim, não te zangues comigo, depois do nosso reencontro. Promovi esta singela homenagem, mais que merecida. E se ainda te lembras que sou atrevida, faço-me convidada, para ver a tua casa. - Estamos perto,- respondeu Joaquim – podemos ir, numa boa, e sem qualquer programa. Como te disse, comprometi-me com outra mulher. E se me vejo com dois amores, não sou capaz de ser homem de duas mulheres,… ao mesmo tempo.
Durante o jantar, na sua vivenda, Aida não conseguia disfarçar, um ar preocupado. Laura perguntou. - Que se passa mãe? - Acho estranho, que o teu pai não diga nada, durante dois dias. Nem me atende o telefone. E temos uma viagem combinada, a Itália. - Talvez ele precise de descomprimir, - disse Rosalinda.- depois de uns dias extenuantes, mas compensadores. Com os traficantes presos e os pedófilos acusados, onde se encontram polÃticos e gente famosa da comunicação social, chegou a hora de repousar. Joaquim despediu-se de uma Irene desgostosa, mas resistiu à tentação a que ela o sujeitou. Ligou para Aida. - Bem aparecido Joaquim. Estivemos a jantar com a Irina, e estranhamos a tua ausência. Nem tens atendido o telefone. Houve algum problema? - Estive a descansar, e hoje fui jantar com uma velha amiga, que não via há muito tempo. - Velha amiga? Não queria admitir a hipótese, mas afinal era mesmo rabo de saia, que te prendia? - Querida Aida, - não é altura para ciúmes – a Irene faz parte do passado. Tu é que não te adaptaste a viver neste apartamento. Isso não invalida que continuemos juntos, no essencial. Amanhã, já mais recuperado, vou-te visitar. Joaquim olhou para a sua estante e tirou um livro ao acaso, “À espera dos bárbaros†de J. M. Coetzee, e abriu-o. Leu uma página apenas pelo prazer da leitura. A literatura, sendo reflexo da realidade, consegue ultrapassá-la, senão não era literatura. Rememorou os últimos tempos da sua vida, com mudanças, que, nem em sonhos, imaginava. Descobrira uma mulher que o marcara e que vivia apenas na memória, descobrira que tinha uma filha, revira Irene, ao vivo, com um filho, sem pai conhecido, mas que podia ser seu. E lembrou-se, com alguma ironia, que o filho de Irene, Pedro, fez a corte a Laura, e que se tivesse sido correspondido, poderia ter sucedido um incesto, como em alguns romances queirosianos. Ainda bem que Laura, tem outras tendências sexuais. Joaquim vira a sua vida mudar, de forma inesperada, mas não a considerava um livro fechado, e com final feliz para sempre. Triiiiiiim - Boa noite. Estou a falar com o detective JCorreia. Desculpe a hora tardia. Já tinha ligado, e só agora atendeu. - Quem fala? - Em primeiro lugar, queria perguntar, se está disponÃvel para fazer uma investigação. Já me tinha sido recomendado, mas fiquei a conhecê-lo depois de aparecer na televisão. - De momento estou de férias, e vou fazer uma viagem longa. Depois de regressar, se ainda tiver interesse, volte a ligar-me. JCorreia, sentou-se junto à janela, tendo como companhia a gata Judite, a única, das suas gatas, que estava presente em corpo e espÃrito. Tomou uma bebida relaxante, e olhou para a cidade a repousar, à espera de um novo dia, que seria sempre um recomeço, de rotinas e surpresas.
Fim...
|