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Autor Tópico: Ao cair das vésperas  (Lida 2829 vezes)
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britoribeiro
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« em: Janeiro 21, 2014, 14:30:45 »

Naqueles tempos a vida era dura, tanto para os pescadores que por cá ficavam, como para os que se aventuravam na pesca do bacalhau. Partiam para a Terra Nova e Gronelândia no final do inverno, regressando a meados do Outono, dependia da sorte e da habilidade do capitão para encherem mais ou menos depressa, os porões soturnos do navio.
O Manuel João, tal como outros jovens da sua idade, agarrou a oportunidade de largar a pesca artesanal onde se ganhava uma côdea, para “ir ao bacalhauâ€; alem disso, quem fizesse sete temporadas de bacalhau, livrava à tropa e à guerra em Ãfrica.
Para quem sai a primeira vez da sua aldeia natal, tudo é uma aventura e sempre será melhor que receber umas míseras moedas no final de cada maré. Se o mar o permitir, porque de Inverno, os frágeis barcos de boca aberta cavalgam rua acima entre o casario, para se furtarem às arremetidas do mar que fustiga o portinho, escavado entre as rochas agrestes do Moureiro e o Forte da Lagarteira..
Acabara de fazer a sua terceira viagem no “Rio Limaâ€, um barco lento, mas seguro, construído em 1952 pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. As condições de vida a bordo, apesar de duras, não se comparavam aos velhos lugres à vela, onde o seu pai e os irmãos mais velhos tinham pescado. Aí sim, era uma vida de escravidão e de perigo constante a pescar nos frágeis dóris, a viverem amontoados em cubículos como animais, a trabalhar perto de vinte horas por dia, sob as inclemências climatéricas do Atlântico Norte.
O “Rio Lima†tinha atracado a meio da manhã na doca de Viana do Castelo. Já lá estava o “Senhor dos Mareantes†e o “S. Ruyâ€, atracados desde a semana anterior. A roupa sebosa estava ensacada há muito, tal como as bugigangas compradas em St. Johns para a mãe e para as irmãs. Para o pai trazia, como de costume, pacotes de tabaco com filtro. O último banho a bordo libertou-o das escamas, disfarçou o odor a vísceras e a suor, mas não apagou as marcas do cansaço, as mãos gretadas e gastas, a barba hirsuta e o cabelo ensalitrado.
Após da manobra de atracar, cumpridas as formalidades, desembarcou pelo instável portaló ao encontro do abraço sentido dos familiares que o aguardavam no cais. Mais que um reencontro, era o renascer de uma coesão familiar, uma celebração da vida que recomeçava. Era dia de festa, a viagem para casa foi de carro de praça, um luxo reservado para bodas, emergências e para estas ocasiões.
Uma acha de pinheiro no fogão espevitou o fogo inundando a cozinha de aroma resinoso, que o refogado estava pronto de véspera e a cabidela surgiria enquanto contava as peripécias da viagem. Só as vitórias, os lances carregados de bacalhau, as partidas que pregaram aos colegas, as horas intermináveis na escala e salga. Os sustos, as lágrimas, as saudades e o medo não se apregoam, iriam sombrear os rostos felizes da família, que o escutam com um fervor quase religioso.
Depois do almoço saiu com rumo certo, o barbeiro que o expurgou das pilosidades acumuladas em sete meses de mar, vestígios sombrios que importa esquecer até à próxima viagem. No Poipa reencontrou companheiros, leu o jornal, soube as últimas do futebol e das coscuvilhices locais, antes da tesoura e da navalha cumprirem a sua missão. Quando olhou ao espelho não se reconheceu, custava-lhe acreditar que aquele rosto lhe pertencia, tão pálido e exangue, as orelhas penduradas na cabeça estreita, onde o nariz ganhava destaque, tal como um promontório avança mar a dentro.
Aviado do barbeiro, seguiu em direcção ao portinho, lugar que o viu nascer e crescer, onde se juntavam os amigos, onde se trocavam olhares e ditos com as raparigas, onde os homens enchiam as tabernas, nas quais ele já tinha entrada por direito próprio. A tarde correu rápida, talvez a conversa retida durante meses a tenha apreçado, a noite cobriu a terra e o mar, despediu-se de cada um para regressar ao lar aquecido pela chama mortiça do fogão, onde o caldo de hortaliça papujava lentamente.
Estavam à sua espera, pois era hábito daquela comunidade cear após as vésperas.
- Por onde andaste meu filho, que se faz tarde.
- Ó mãe, ainda ficou gente na Curraca e no Coxo da Faena.
- Mas o teu pai já está à espera para depois se deitar… Afinal onde é que andaste?
- Fui ao Poipa cortar o cabelo e a barba…
- Graças a Deus…
- … Depois fui para o portinho e estive à conversa com os amigos… o Daniel, o João, o Nel do Côto, o…
- Qual João?
- Da tia Ermelinda… e bebemos umas malgas de vinho novo.
- Vê lá, já não estás habituado e pode fazer-te mal.
- Não se apoquente, minha mãe. Pouco bebi e só demorei mais um bocadinho porque encontrei na esquina da pensão um companheiro de escola e fiquei à conversa. Depois ele seguiu para casa e eu pelo Sol Posto acima… Aqui me tem!
- Quem é esse companheiro de escola? O Camilo?
- Esse ainda não vi. Era o Berto da Nila…
A tigela caiu com fragor no chão, espalhando cacos e caldo em todas as direcções. A cor fugiu das fasces rosadas da Lurdes, petrificada de espanto e horror.
- Que foi, mãe? Parece que viu um lobisomem… Conhece o Berto da Nila… onde está o espanto?
- Tens a certeza, meu filho? – Balbucia a Lurdes, procurando o rosário no bolso do avental.
- Tenho, mãe! Então eu não conheço o Berto?! Olhe que fizemos juntos a quarta classe…
- Mas isso não é possível… a Nossa Senhora nos acuda…
- Então qual é o problema? Ele até estava tão bem disposto…
- Virgem Santíssima – gemeu a Lurdes com as lágrimas nos olhos – a sua alma não está tranquila.
- Que está aí a dizer, minha mãe! A sua alma?!...
- Sim, filho… O teu amigo… o Berto da Nila, esteve muito doente, chegaram a levá-lo para o Hospital de Viana, mas mandaram-no de volta para casa… o Berto… coitadinho, foi enterrado ontem…
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Fevereiro 20, 2014, 21:23:47 »

Ao que parece, o amigo precisava despedir-se.
Intrigante!
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Goretidias

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margarida
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« Responder #2 em: Março 09, 2014, 18:58:57 »

Vá-se lá perceber esta coisa das almas Sad Sad Sad Sad
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #3 em: Março 17, 2014, 18:05:07 »

É verdade, Margarida. Belo texto, com sabor a terra, a mar e a vidas difíceis.
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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