gdec2001
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« em: Março 16, 2014, 21:01:40 » |
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No Mário é que esse prazer é mais consciente. Começou a apreciar a boa comida quando ainda era estudante universitário graças a um amigo que lhe chamou a atenção para a diferença que havia entre as diversas comidas das diferentes provÃncias de Portugal e, principalmente para a diferença que existia entre a comida bem confeccionada e a mal confeccionada. Lhe mostrou como pode existir uma maior diferença entre uma batata e outra batata do que entre uma batata e lagosta, “fois-gras†ou ovas de esturjão. Logo que conheceu a Adélia, procurou saber se ela gostava de comer. Ela percebeu-o mal, tendo respondido que não sendo muito grande, comia, segundo lhe parecia, bastante pouco. Ele riu-se e explicou-lhe que não era isso que queria saber, mas se ela sabia a diferença entre a boa e a má comida. Enfim, se sabia apreciar o que comia. Então ela disse que embora soubesse cozinhar algumas coisas, na verdade ligava pouco a isso. Pois então fazes bem mal porque a comida é uma parte muito importante da cultura de um povo. Achas que sim ? Sim. Vê, por exemplo, os romanos da época imperial. Se souberes o que comiam, e como comiam, passas a saber quase tudo sobre a personalidade, digamos assim, desse povo e até compreenderás como acabaram por ser tão facilmente derrotados - facilmente é uma maneira de dizer, tendo em atenção que pareciam, tecnicamente, tão superiores - e, principalmente, por povos que vieram do oriente, de onde vinham, também, as iguarias que eles consideravam mais deliciosas. Quem te ouvir, julgará que pensas que toda a história depende da comida! Não, propriamente, toda a história porque há outros factores igualmente importantes. E afinal ... sabe tão bem a boa comida, concluiu um tanto surpreendentemente. Nunca tinha pensado nisso, dessa maneira, mas prometo-te que, doravante, passarei a dar maior importância ao que como. Mas, verdadeiramente, só começou a encarar a comida a sério, quando passaram a viver juntos e começaram a cozinhar juntos porque ele, quando está em casa, gosta muito de cozinhar . Compra livros de cozinha e experimenta coisas novas introduzindo alterações nas receitas que, por vezes dão grandes fiascos mas, mais frequentemente, produzem pratos deliciosos. A história do industrial e da OlÃvia é muito diferente. Ela sempre comeu bem e aprendeu a comer bem desde menina, de maneira que nem se lembra como foi. Na verdade gosta de comer mas não sente que o facto mereça menção de excepcional. Efectivamente nem sabia que sabia apreciar a boa comida, antes de lho terem feito notar. Com o marido, aconteceu quase o contrário. Antes de se casar não ligava nada ao que comia, nem achava que tal facto tivesse qualquer importância. Também com os pais acontecia a mesma coisa. Antes de serem ricos comiam couves, batatas e feijões e, depois de serem ricos, comiam carne e mais carne e sempre com a mesma desatenção. Depois que se casou começou a comer muito melhor mas, verdadeiramente, só se apercebeu disso muito mais tarde e tão pouco a pouco que nem se pode lembrar. Assim escolhem sempre - quase sempre - os restaurantes aonde vão comer, apreciando os pratos pela maneira como são designados e raramente se enganam porque um prato refinado tem, geralmente, um nome refinado e um prato simples e gostoso tem um nome simples mas que sabe bem. E o Duarte é mesmo capaz de se zangar, quando as suas perspectivas são muito frustradas, o que faz rir muito o Mário. E depois de termos vislumbrado não duas mas quatro das personagens principais, vejamos como se passam as coisas com as nossas duas primeirÃssimas.
Eles novamente
Ele e ela, ela e ele. É claro que continuam a amar-se muito o que não impede a existência de algumas quezÃlias. Algumas das mais sérias foram provocadas pelo incontrolável ciúme da Elsa.
O ciúme é um cão dos que mordem pela calada
Contarei apenas, como exemplo, uma cena que não é grave mas tÃpica. Naquele dia o José tinha chegado à cantina da Universidade mais cedo, o que aliás acontecia todas as sextas feiras, pois não tinha aula naquele dia, na hora imediatamente anterior à quela em que costumavam almoçar, ele e ela. Sentou-se e esperou-a lendo, como era seu costume. Nisto chegou a Manuela, uma sua condiscÃpula . Aproximou-se por de trás e colocando as mão sobre os olhos dele, segredou-lhe com voz de monstro : Diz-me quem sou. És uma fada...uma feiticeira...a rainha da lua, respondeu ele, no mesmo tom. Ela retirou as mãos e ele olhou e viu a Elsa com o sobrolho carregado. Voltou-se para trás e viu a Manuela que se afastava rindo. Ela, a Elsa claro, sentou-se e ficou calada, um sinal bem evidente de que estava amuada. Então o que tem a minha pequenina? Posso ser a tua pequenina mas não sou a tua fada nem a tua feiticeira nem a rainha da lua. E porque é que não és? Porque acabaste de dar, esses esplêndidos epÃtetos, a outra, respondeu ela de forma rebuscada. Não. Eu esperava-te e por isso, mesmo sem o pensar, era a ti que eu chamava fada, feiticeira e rainha da lua. Sim, tens razão; mas fiquei muito irritada quando vi a maneira como ela olhava para ti. Ora, ora ; somos apenas bons amigos. Duvido. O quê. Achas que minto? Não. É dos sentimentos dela que eu duvido. E sabes que não costumo enganar-me quando se trata de sentimentos. Não costumavas antes de te dar essa péssima veneta do ciúme. Tens razão. Desculpa mas é mais forte do que eu. É muito difÃcil aceitar isso, francamente. Também a mim me parece; mas é assim. Bom, bom. Creio que conseguirás vencê-los. Vamos mas é comer. Quando acabaram de comer ele disse: Quero fazer-te uma confissão. Também eu tenho ciúmes, por vezes. Oh! Não. Nunca dei por isso. É exactamente essa a única diferença entre nós. Eu consigo dominar-me e não manifesto os meus ciúmes. Fez uma longa pausa e por fim acrescentou: Creio que os ciúmes são uma coisa... atávica; e depois de outro silêncio: Mas temos de vencê-los porque são impróprios das relações que devem existir entre os homens e as mulheres . Um homem e uma mulher podem fundir-se um no outro mas nunca podem pertencer um ao outro. É claro, isso. Fundir-se um no outro, disseste muito bem. Não gozes. Não estou a gozar... Oh! Como eu gostava de ser ainda mais tu. O quê (?); não querias ser pequenina e curvilÃnea ?. Querias ser esgalgada como eu sou. Não; porque queria também que tu fosses mais eu. Ah, bem . Podemos sê-lo, em espÃrito. Não me basta. Corpo e espÃrito é um só, sou eu e és tu; queria que tu fosses mais eu e eu fosse mais tu, em tu e eu; em corpo e espÃrito. Assim será ; assim será tanto quanto possÃvel. A primeira recordação que ela tem, reporta-se a um dia em que a Adélia o levou, ao colo, até junto do jardim-escola que ela frequentava. Tudo o resto, anterior, se desvaneceu completamente. Lembra-se perfeitamente de ter ficado espantada com a beleza dele. Não que, naquela altura, ela tivesse a noção de beleza na forma abstracta, como hoje a encara. Mas lembra-se de o achar bonito, " como um anjo " e ficou célebre, na famÃlia, a expressão que então usou : Agora sim, acredito nos anjos ; ao que o pai, que estava com ela então, terá respondido muito pragmático, como sempre: Não, é apenas o José.
Geraldes de Carvalho
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