gdec2001
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« em: Março 05, 2014, 03:33:37 » |
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Ela e o Mário dão longos passeios nos Sábados e nos Domingos.
Cada um faz a sua viagem. Não há duas iguais. Há bastante tempo que ela insistia com ele para comprarem um carro porque “gostava de conhecer outros rios†Ele resistiu um pouco porque “só gosta de conduzir camiõesâ€. Ela achava que isso era uma tolice e dizia que, sendo necessário, tiraria a carta de condução. Este argumento convenceu-o. Comprou um carro aparentemente pequeno; não parece nada um camião, mas no interior é bastante amplo. Agora saem de Lisboa em todas as férias. Ele encanta-se porque a verdade é que gosta muito de conduzir e ela encanta-se porque gosta muito de ver caras novas, paisagens novas e mesmo novas casas, principalmente velhas. E cada um deles gosta de sair com o outro porque lhes parece que o outro, quando viaja, não é bem o outro mas outro. (Que me perdoem, Vossas Mercês, os que não gostam de jogos de palavras, mas há dias em que não resisto.) Gostam de visitar, nos dias ensolarados, pequenas cidades e vilas que ficam à beira mar. As cidades antigas com longas e estreitas ruas são mais belas quando não há sol. E se chover um pouquinho, são ainda mais bonitas. Ali, onde ninguém os conhece, podem praticar o amor em quase todos os sÃtios o que, na verdade, significa apenas que podem beijar-se em público pois são ambos bastante discretos. Como os tempos mudam, pensam eles, cada um para seu lado: Aqui há uns anos, quando eram novos, o mais que conseguiam era andar de braço dado em público e agora, que já têm idade para ter juÃzo atrevem-se mesmo a beijar-se. Os mais jovens porém olham-nos com sorridente simpatia pois beijar-se, nesta altura, toda a gente se beija. Rios, rios é que nem vê-los, na maior parte das cidades, excepto de de cima das pontes. E falamos de cidades que, no mapa, são atravessadas por rios mas que na realidade, lhes voltaram as costas, escondendo-os, emparedados, atrás de armazéns ou por vezes de jardins meio abandonados, porque neles quase ninguém passeia por ficarem muito distantes dos lugares habitados. Nalguns casos estenderam-lhes, ao lado e ao longo, estradas rápidas. É certo que isso também aconteceu em Lisboa e acontece, ainda, em alguns trechos do Tejo mas há, agora, um salutar movimento de devolução do rio à cidade. Adélia esforça-se por encontrar pedaços dos rios aonde possa ver o correr da água, mas isso é ainda mais difÃcil porque a maior parte deles foram represados um pouco depois das cidades e, se é certo que se pode, agora, navegar neles, todos esses parecem apenas lagos. O mar é que se não deixa emparedar e a Adélia que antes mal o via algumas, poucas vezes, por ano, perde-se agora junto dele imaginando-se levada para mais longes terras ou vogar nas altas ondas ou adormecer nos ignotos e misteriosos fundos. E embora veja agora o Tejo com outros olhos, não gosta menos dele, porque conhece cada recanto de ambas as margens. O Mário não vê propriamente a beleza das coisas. Todo o seu interesse se concentra nas pessoas e é através delas que pode admirar também as coisas. Assim tudo quanto a Adélia admira, ele admira; tudo quanto ela vê, ele vê. Mas admira e vê mesmo e isso é o mistério do amor. É claro que uma casa ou uma escultura ou um quadro não são, propriamente, coisas mas sim pessoas que ele vê e pode admirar independentemente dela ou de qualquer outra pessoa. E é exactamente isso, e todos os demais espectáculos do homem, que ele gosta mais de ver . E tem os seus critérios de beleza, um tanto rÃgidos, de modo que é vulgar ele entender que não gostou mas a verdade é que uns são os critérios de beleza que a gente pensa que tem e outros os critérios do coração porque o coração tem razões e etc. etc.. O Duarte e a OlÃvia acompanham-nos, por vezes. Finalmente ela conseguiu que ele largasse o trabalho nas fábricas, entregando-as a gerentes que parecem governa-las ainda melhor. Pelo menos é o que ele concluiu, por ver que retira delas mais ou menos o mesmo rendimento. Ao princÃpio ficou inteiramente perdido por não ter nada que fazer porque não tinha qualquer outra actividade de que gostasse. Ler, aborrece-o mortalmente. Passa horas procurando ver futebol na televisão e indigna-se porque transmitem tão pouco !. Pelo prazer de viajar com o Mário e com a Adélia, ele aceita todos os desafios e nas viagens maiores vão no carro dele, um BMW, que ele conduz com o seu habitual cuidado. O Mário e a Adélia ao princÃpio insistiam em pagar parte da gasolina mas agora deixaram-se disso porque ele aceitava sempre contrariado. E a verdade é que, quando vão no carro do Mário - geralmente nas viagens que fazem dentro do paÃs - ele nunca se ofereceu para pagar coisa nenhuma, porque não parece dar qualquer importância ao dinheiro. É a feliz consequência de nunca lhe ter faltado, nota o Mário. Ao princÃpio, o Duarte, parecia nada ver a não ser a funcionalidade das coisas quando fossem do seu campo de interesses. Admirava, por exemplo, uma igreja pelo silêncio e o recolhimento que permitia, pois sempre praticara a religião. No entanto, se lhe chamarem a atenção, admira a beleza das coisas e tem mesmo um instinto natural para distinguir as coisas belas das vulgares, como acontece com a maior parte das pessoas . Pouco a pouco começou a notá-las por si próprio. Mais difÃcil é perceber a reacção da OlÃvia a estas viagens. Embora ela soubesse que existia o mundo fora das suas sensações fÃsicas – digamos assim, grosseiramente – na verdade não acreditava nele verdadeira, verdadeiramente. Sabendo embora que existia, não o sentia, na pele, digamos um pouco melhor. E quando começou a descobri-lo não sabia bem o que devia sentir e ainda vive nesta indecisão entre o reconhecimento e o espanto, de maneira que parece quase indiferente a quem a não conhece bem. E, verdadeiramente, apenas a Adélia a conhece bem. E ela, não se admira nada de sentir-lhe as lágrimas no fundo dos olhos quando olham para qualquer coisa nova e maravilhosa, das muitas que existem pelo mundo. Mas o certo é que ela nunca se mostra como é, porque ganhou o hábito de aparentar ser aquilo que foi. E embora tenha mudado muito a sua maneira de sentir, pouco mudou a sua maneira de expressar aquilo que sente, de maneira que é normal ela rir-se quando está triste e chorar quando está contente; mostrar-se entusiasmada quando está indiferente e aparentar indiferença quando alguma coisa lhe interessa muito. Agora no que todos, os quatro, tendem a estar completamente de acordo é em matéria de comida. Todos gostam de comer bem, uns por uma razão, outros por outra. No Mário é que esse prazer é mais consciente.
Geraldes de Carvalho
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