Antonio
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« em: Setembro 28, 2007, 11:54:27 » |
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O velho Joaquim vivia só na sua pequena e velha casa do bairro pobre. A mulher morrera, já fizera três anos. Os filhos tinham seguido a sua trajectória na vida e estavam longe. Reformado cedo por invalidez, vivia de uma pensão que mal dava para comer e comprar alguns remédios. Valia-lhe algum dinheiro que os dois rapazes lhe mandavam de vez em quando e a ajuda de alguns vizinhos, também pobres materialmente mas ricos de sentimentos. Estava frio nessa véspera de Natal. Mais um que iria passar somente na companhia das memórias de outros que foram bem mais alegres e das dores reumáticas que o atormentavam quasi em permanência. Comeria uma sopa requentada, um pão com margarina, uma maçã já meia podre, beberia um trago de um tinto carrascão e depois iria para a cama com uma dor no peito que o vinha apoquentando nos últimos tempos. Ainda nada dissera ao médico do Centro de Saúde. E iria mais uma vez chorar a tristeza de ser velho e só. Estava sentado no sofá sujo e roto quando bateram à porta. Disse, tão alto quanto podia: - Entre! E a porta rangeu enquanto se abria devagarinho: era a vizinha Matilde, que também vivia em solidão, pois ficara sem um filho nas obras já há bastantes anos e sem o seu homem, muito recentemente. - Posso, Sr. Joaquim? - Entra Matilde, entra! Ela aproximou-se do ancião e estendeu-lhe uma marmita amolgada pelo uso: - Tem aqui um pedacito de um naco de peru que me foram levar a casa. Lembrei-me de lho trazer. Está quentinho. - Muito obrigado! Entra e senta-te um bocadinho. - Não posso demorar muito porque deixei o lume aceso. - Estás a cozinhar? – perguntou o idoso. - Estou! Este pedaço de peru saiu agora do forno. - E vais passar a noite sozinha? - Pois! Não tenho ninguém. - E não queres vir fazer-me companhia? Comemos aqui os dois, conversamos e depois vamos dormir. Ela pensou um pouco e depois retorquiu: - Acho boa ideia! Então vou acabar de cozinhar e venho até cá com a comida. - Eu podia ir a tua casa, mas tenho dores... - Não se preocupe, Sr. Joaquim. Eu venho fazer-lhe companhia e assim também não me sinto tão solitária. - Mas tu tens televisão e aqui não podes ver nada. Eu só tenho este velho rádio. - Prefiro a companhia de uma pessoa que a da televisão. Então até já! E a mulher saiu. Pouco depois de ela voltar com uma cesta razoavelmente farta, começaram a comer e foram conversando. Já perto da meia-noite disse ele: - Matilde! Estou com frio. Vou-me deitar. Queres vir para a cama comigo? Assim ficamos os dois mais quentinhos. Ela não contava com aquela proposta, mas não demorou muito a responder: - Está bem, Sr. Joaquim! Agora vou arrumar a loiça e dar uma limpadela. - Eu espero por ti! E não tardou muito que ambos estivessem na cama, bem agasalhados, conversando até que o velho adormeceu. Manhã cedo a mulher acordou e levantou-se como era seu hábito. O homem estava quieto. A luz do sol bateu-lhe no rosto sereno mas lÃvido de morte. A Matilde tocou-lhe e sentiu-o frio e inerte como um pedaço de mármore.
Nota do autor: Este conto obteve uma Menção Honrosa (juntamente com outros 15) no Concurso de Contos promovido em 2007 pelo site "Ora, vejamos...". Concorreram 21 autores com um total de 67 contos. Está publicado numa colectânea não-comercial (Um Mar de Contos) juntamente com todos os outros premiados.
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