Nação Valente
Contribuinte Activo
Offline
Mensagens: 1268 Convidados: 0
outono
|
|
« em: Setembro 03, 2016, 18:04:52 » |
|
A carta chegou no correio da manhã. Alzira recebeu-a da mão de Pedro Zarolho, de alcunha cara de pau e como iletrada guardou-a no bolso do avental. António, o seu irmão caçula, estava sentado na soleira da porta da sua loja. Abriu a carta que ela lhe entregou e começou a ler em silêncio. O seu rosto magro perdeu a cor e ficou branco de cera. Respirou fundo e procurou refazer-se. A carta era breve e dramática; Mãe muito estimada Que estejam todos bem é o meu desejo. Eu estou muito mal. Chegou o dia de ir à s sortes e não o posso fazer. Mandei fazer um casaco no alfaiate da vila, para me apresentar de forma digna, mas encontro-me sem dinheiro para o pagar e assim não posso levantá-lo. Não vou a esse acto feito maltrapilho. Não tenho outa alternativa a não ser pôr fim à vida. À hora que esta receber já devo estar morto. Peço perdão por qualquer coisinha… -É uma carta do teu filho Sebastião, disse António. (É preciso esclarecer que o jovem tinha migrado para a vila, com o intuito de melhorar a vida.) -Senta-te Alzira e mantem-te calma. António procurava ganhar tempo para encontrar uma forma suave de dar a notÃcia. Alzira inquietava-se. -Então António, o que se passa? António foi descrevendo o conteúdo e acabou com a frase “ o Sebastião ameaça matar-seâ€. Mano, não me enganes, diz-me o que aà está escrito. António voltou a ler a carta em voz alta. No corpo de Alzira nem um músculo mexia. Na face lÃvida e fria correu uma lágrima teimosa. -Aquieta-te mana. Vou partir de imediato para esclarecer o assunto. Se bem conheço o meu afilhado, isto não passa de um truque para lhe pagarmos o casaco. A Maria Carrapata especialista em "quadrilhice" e que passava pela loja, foi a primeira a saber do triste evento e em menos tempo que o diabo esfrega um olho, todo o povoado sabia da novidade: o Sebastião está morto. António partiu na sua motorizada e desapareceu na primeira curva da estrada envolto numa nuvem de fumo diesel. Uma hora depois fez um telefonema para o telefone público “ o Sebastião está bem. Tudo resolvido". Às dezanove horas daquele dia estival, a velha camioneta parou no largo da aldeia. Começaram a sair os rapazes das sortes nos seus fatos de ver a Deus. No fim do grupo apareceu Sebastião, algo envergonhado e um pouco escondido na neblina da tarde, e no seu casaco de linho novo. Os moços da aldeia formados em duas filas pelo professor primário, gritaram a uma voz, viva o morto-vivo Os pássaros poisados nos beirais das casas do largo da paragem, mortos de riso, bateram as asas e saÃram em voo picado saudando o, morto-vivo Alberto Coiras, o taberneiro da loja da paragem, regedor e apoiante da União Nacional, morto de bêbado, bebeu mais um copo e com a voz arrastada disse: O vinho (e o Salazar) dão de comer a um milhão de portugueses, viva o vinho e viva o morto-vivo Pedro Zarolho, cara de pau, que nunca mostrava os dentes estragados, deu uma sonora gargalhada, viva o morto-vivo Perpétua, conhecida como ministra, pela facilidade no uso do verbo, deu a sua sentença: ninguém morre de véspera, a não ser o perú do Natal. E só quem vive fora deste mundo não percebeu a impossibilidade dessa morte anunciada. Santos, o sacristão, esqueceu-se dos bicos de papagaio, subiu a escada da torre da igreja, e fez tocar os sinos em honra do, morto-vivo Toino, o parvo da terra,( todas têm o seu, sem esquecer todos os outros) num arroubo de lucidez afirmou: “e eu é que sou o parvo!†Os jovens aptos nas sortes e vivos para morrerem pela nação, ribombaram foguetes. Bartolomeu, barbeiro, versejador e filósofo popular, fez ali um improviso: Viva o Sebastião das sortes Com o seu fato de linho Não foi em tretas de mortes E chegou vivo e limpinho, Mandou a morte à s urtigas Que ele quer é viver E está-lhe fazendo figas Que ainda não quer morrer De qualquer morte morrida pois tem muito pra fazer na encruzilhada da vida termino e mais não digo, e que viva o morto-vivo. E eu, pirralho com um metro mal medido, vi tudo, claramente visto, e tal e qual transmito, com muito gosto, para a posteridade, a aventura de Sebastião que ficou vivo para poder morrer pela nação. E para que todos, os que souberem e quiserem, possam dizer, viva o morto-vivo
|