Tino Saganho
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« em: Setembro 22, 2016, 19:32:46 » |
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DEPOIS DA SOGA A TOGA…
O carreirinho, por entre campos, sobranceiro à presa onde abundavam diversas plantas, arbustos silvestres e insetos das mais variadas espécies era, na época, o mais curto elo de ligação entre a aldeia e a escola primária. Por aquele estreitÃssimo e infindável caminho de terra saibrosa e pedra solta passavam, diariamente, todas crianças daquela pequena aldeia, com destino ao único estabelecimento de ensino da freguesia. Na estação de inverno, especialmente durante o perÃodo daqueles dias mais gelados, a passagem da pequenada era inconfundÃvel. Ainda vinham longe… e já se ouvia o arrastar dos tamancos e solipas, calçado em voga na época nos meios mais pobres. Com a chegada do verão, reinava o pé-descalço, mas nem por isso havia mais sossego à sua passagem. O centeio, que crescia livremente nos campos que ladeavam o referido carreiro, absorvia completamente toda aquela reduzida área de trânsito pedestre e transformava-a num sombrio túnel. Era aà que os alunos ocupavam o seu tempo livre, à procura do famoso «dente-de-cão», – uma espécie de grão de centeio de maior dimensão, de cor negra, que germinava em algumas espigas desse cereal – para depois o venderem à medicina popular. Naquela tarde soalheira de primavera, a professora resolveu «presentear» toda a classe com uma falta de comparência à s aulas. Divulgada a notÃcia, os «putos» deixaram a escola e, num ápice, invadiram toda aquela área de cultivo, em procura do tão ambicionado grãozinho negro. A azáfama de toda aquela gente de «palmo e meio» foi interrompida por sucessivos gritos de aflição: – Fugi depressa que vem aà o meu pai – gritava um adolescente, que aparentava 13/14 anos de idade e corria esbaforido na direção do grupo. Os traquinas, surpreendidos, fugiram aterrorizados – como ratos fogem dos celeiros, quando há predadores por perto. Em poucos segundos, toda a área de cultivo ficou deserta e em estado de destruição tal… que mais parecia um campo de batalha em fim de combate. – Que maldita canalha do demónio! – desabafava o dono do campo, ao ver aquela cena de destruição. – É isto que vós andais a aprender na escola? Só sabeis fazer garotices. Está aqui o suor de muitos dias de trabalho e sacrifÃcio, para agora ter este desgosto. Depois de uns momentos a meditar, – talvez para avaliar os estragos –, o agricultor dirigiu-se ao filho: – Vê o enorme prejuÃzo que esses teus amigos me causaram... Não te quero ver mais na sua companhia. Vai já para a soga do gado e nunca mais me voltes a pedir para ires à escola. O rapaz explodiu num choro convulsivo e, numa correria atabalhoada, pontapeou tudo o que encontrou pela frente, ao mesmo tempo que gritava de raiva: – Um dia fujo. Um dia fujo e não volto mais! O jovem era conhecido por «Tino do Açude», por viver junto a um açude na margem do rio Ave. Era filho de um remediado casal de agricultores e sonhava vir ser alguém na vida… O adolescente queria ser aquilo para que estava vocacionado: culto, instruÃdo e fazer parte da sociedade que lhe conquistou a simpatia. A sua vontade de vencer na vida motivava-o para grandes projetos no futuro. Que revolução ia no seu peito de adolescente! Ao completar 16 anos de idade, cumpriu a ameaça que tinha feito: – Partiu ao romper do dia. Sentia-se mais amadurecido, menos dependente do pai e mais dono de si. Os seus projetos eram agora claros e sólidos e a vontade de vencer era menos ilusória e mais realista. O êxito estava ali ao seu alcance. Acolheu-o a cidade de Lisboa. No dia seguinte, escreveu ao pai uma resumidÃssima carta: – Meu pai, desculpa, mas tinha que ser assim… Na aldeia, o Tino do açude foi sendo esquecido pelos amigos e até familiares menos próximos. Na capital, não esperou que o trabalho lhe batesse à porta e foi ao seu encontro. Prestável e humilde como era, cativava patrões e companheiros de trabalho. Tornou-se popular de tal modo que, quando desapareceu sem deixar rasto, deixou os companheiros preocupados. Cerca de vinte anos depois, naquela manhã fria de outubro, «chovia a cântaros». A rua central da cidade estava cheia de gente que, curiosa, se concentrou à porta do tribunal para ver chegar os criminosos. A polÃcia tomava posições estratégicas em redor daquele tribunal algarvio, onde um julgamento de crime ia ter lugar. Dez assaltantes iriam ser julgados e talvez condenados, por assaltos a bancos. A sala de audiências estava a abarrotar de gente e a expectativa pairava no rosto das pessoas presentes. Abriu-se uma porta e, por ela, entraram vários polÃcias que escoltavam os réus. Fez-se, então, um silêncio absoluto e aguardava-se o inÃcio da audiência. Momentos depois, outra porta se abriu e por ela entrou um cavalheiro, de meia-idade, que envergava toga preta. Dirigiu-se para o cadeirão principal, bateu levemente com o «martelo da justiça» e exclamou: – Está aberta a audiência. A soga de gado tinha cedido o lugar à toga judicial.
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