Na莽茫o Valente
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outono
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« em: Novembro 07, 2019, 16:47:55 » |
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O av么 nasceu durante a monarquia constitucional, assistiu, muito jovem 脿 implanta莽茫o da Rep煤blica, que serviu, temporariamente, como militar. Viveu a maior parte da sua vida no regime salazarista. Esp铆rito livre voltou ao local de origem para viver a vida como a gostava de viver. Por op莽茫o, desde certa altura da minha inf芒ncia, comia e dormia na sua casa. O av么 , apesar de sempre ter estado em actividade, conseguia dar-me aten莽茫o e aturar as minhas 鈥減arvoeiras鈥 do tempo da juventude, sobretudo quando o vinho, a droga da 茅poca, o libertava da m谩scara que usamos para cumprir os rituais do quotidiano. Fal谩vamos bastante, mas n茫o fal谩mos tudo. Ficaram coisas por dizer, ficam sempre, porque filtramos muito do que gost谩vamos de exprimir. Nesta carta p贸stuma, com a 鈥渟api锚ncia鈥 que o tempo, um grande mestre, vai trazendo, quero recordar, um dia de vida em comum, igual a tantos outros, mas ao mesmo tempo diferente, porque ficou para sempre vivo nas minhas lembran莽as.
Nesse dia, fui bruscamente acordado, madrugada escura, com umas pancadas na velha porta de madeira, muito trabalhada, mas j谩 corro铆da por anos e anos de intemp茅rie , sem o merecido restauro. Como diz o ditado, em casa de ferreiro, espeto de pau. Recordo-me, como se fosse hoje, que o av么 se levantou sem enfado(madrugava sempre) e se dirigiu para junto da porta perguntando: 鈥渜uem 茅?鈥 Uma voz emergindo do sil锚ncio da noite disse: 鈥渟ou o genro do Calado, que morreu repentinamente e que precisa de um caix茫o鈥. O av么, perito nos trabalhos com madeira, incluindo caix玫es, balbuciou entredentes: 鈥減ois o Calado calou-se para sempre鈥. O av么, como era da praxe, perguntou qual era a altura do defunto, e perante a indecis茫o do 鈥渆ncomendador鈥, foi-lhe dizendo para n茫o se preocupar, porque tinha, mais ou menos uma ideia, e que serviria de modelo, sem mais custos. Na despreocupa莽茫o da idade da inf芒ncia, voltei a adormecer at茅 o dia raiar, enquanto o av么 come莽ou de imediato a cortar e a aplainar t谩buas. Quando voltei da escola do senhor Simpl铆cio, uma escola privada que, com paralelismo pedag贸gico, preparava alunos at茅 ao segundo ano dos liceus, encontrei o av么 ainda a aplainar t谩buas para terminar a tempo o esquife do senhor Calado.
Lembro-me bem do senhor Calado, como ser vivente. A imagem, mais n铆tida que dele retenho , foi criada junto 脿s tabernas da aldeia onde, como muitos outros, bebia at茅 perder a compostura. De uma forma geral os 鈥渂锚bados鈥 eram pessoas alegres e creio que felizes naqueles momentos em que trocavam a lucidez pela fantasia do reino da etiliza莽茫o. Recordo-o, tr么pego de embriaguez, numa rua entre duas tabernas, a correr atr谩s de uma bola, que um jovem inconsciente tirava, sucessivamente, do seu alcance. Fiquei com a sensa莽茫o que se divertia, sem no莽茫o clara da 鈥渇igurinha鈥 que nunca faria em estado de sobriedade.Nem sei se se apercebia que espectadores ocasionais observavam a cena do p谩tio das tabernas adjacentes, divertidos com o espect谩culo gratuito que estava a proporcionar. Divertidos com o acto, em si, e n茫o com qualquer falta de respeito para com a pessoa que ali estava transfigurada.
O senhor Simpl铆cio, ex-seminarista que n茫o tomou votos, e cuja vida era um mist茅rio e quase uma lenda, voltou 脿 aldeia quando as rugas lhe povoavam o rosto e os cabelos escassos perdiam a cor. Para sobreviver, na terra onde regressou como filho pr贸digo, inventou-se como professor, e que professor, cujos alunos tinham fama de ser os melhores nos exames de Liceu. No dia em que o senhor Calado se calou, deixou-nos sair mais cedo da aula, para irmos ver passar na estrada nacional o senhor general Sem Medo , que prometera dispensar o Presidente do Conselho, se ganhasse as elei莽玫es presidenciais. Quando, vindo da escola, cheguei a casa dos av贸s, passei pela cozinha, onde a av贸 confeccionava um dos seus inconfund铆veis petiscos, que tamb茅m ali me prendiam, e aproximei-me do av么 que continuava embrenhado na tarefa priorit谩ria daquele dia, porque nos outros dedicava-se mais a obras para glorificar a vida, tais como portas, janelas, m贸veis, arados, charruas... Olhou-me de soslaio, calculou a hora pela posi莽茫o da sombra, e sem tirar a m茫o da plaina perguntou: 鈥渆nt茫o Z茅, sa铆ste mais cedo da escola? Sa铆 av么鈥 senhor Simpl铆cio dispensou-nos para vermos a caravana do senhor general. O av么 n茫o vai?鈥
Sil锚ncio! Apenas o barulho das ferramentas na sua rela莽茫o com a madeira. Percebi que a sua vontade estava prisioneira de um compromisso inadi谩vel. Percebo hoje que muitas vezes temos de ser prisioneiros da nossa pr贸pria vontade. Sil锚ncio! O av么 disse: 鈥渙 Calado j谩 n茫o fala, vai tu Z茅 ver o Homem que quer que todos falemos. 脡 mais importante para ti do que para mim.鈥
Fui com outros mo莽os e alguns adultos, que se puderam libertar dos afazeres quotidianos, para junto da estrada. A caravana estava atrasada. Constava que na sede do concelho, tinha sido travada durante uma ac莽茫o de rua. Gente agredida, gente presa. Por fim come莽aram a passar os carros resistentes, que diminu铆ram a velocidade mas continuaram a sua marcha. Num deles vi o General sem Medo, sorridente a acenar, 鈥渙bviamente demito-o鈥, e a garantir liberdade de express茫o, no dia em que, ironicamente, mais um 鈥渃alado鈥 se calou. O av么 n茫o esteve presente, mas foi como se estivesse. Senti-o e ainda o sinto. Nunca o disse, digo-o agora. A liberdade passou por ali, breve, apressada, acossada鈥, mas um dia veio para ficar. O av么 j谩 n茫o a viveu, mas, decerto, que a pressentiu. Para quem nasceu livre, e sempre o foi, 脿 sua maneira, n茫o podia ser de outro modo. Ano da gra莽a de 1958
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