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Autor Tópico: A Gata dos Telhados LVIII  (Lida 53679 vezes)
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Nação Valente
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outono


« Responder #105 em: Abril 22, 2021, 20:08:33 »

XLIII
- Está?
- Sim, Rosalinda.
- Já acabaste o almoço?
- Vou agora para casa. Liguei para te dizer que recebi um telefonema, da Susana, do caso do marido desaparecido, a pedir um encontro urgente connosco.
- Desliga. Quando chegar, falamos.

Laura de Castro reuniu-se no seu escritório com Pedro Galaz. a seu pedido, para tratar do divórcio de Rosalinda com Damião. Pedro Galaz, apareceu vestido de forma informal, e cumprimentou Laura de forma efusiva. Esta recebeu-o com algum distanciamento, procurando deixar claro que , não ia abrir espaço, para além de uma relação profissional.
- Então colega, - perguntou Laura - há novidades, em relação ao processo de divórcio?
- Sim, e por isso pedi esta reunião, - respondeu Galaz – embora seja um gosto voltar a vê-la. De facto, consegui convencer o Damião a aceitar o divórcio. Vai passar alguns anos na prisão, e disse-lhe que depois deve começar uma nova vida. Colocou apenas uma condição.
- Que condição?  - disse Laura, ignorando o piropo.
- O Damião considera que embora a casa onde viviam fosse adquirida em comunhão de bens, que foi ele que a pagou, e quer que Rosalinda prescinda da sua parte, já que pretende vendê-la.
- Não me cabe a mim decidir por Rosalinda, mas o colega sabe que ela tem direito a metade do património familiar. Esse argumento que foi ele que a pagou, não tem qualquer suporte. Vou falar com ela. Se for esse o preço a pagar, creio que cederá, para pôr um ponto final na relação com Damião, e começar uma nova vida. Irei  falar com ela e depois comunicarei a decisão.
- Se estiveres de acordo, -disse Pedro Galaz, tentando criar um clima de proximidade – podemos marcar um almoço, no próximo encontro.
- Agradeço, colega, mas tenho uma agenda muito preenchida,- disse Laura com uma expressão de alguma indiferença. – Após falar com Rosalinda, entrarei em contacto.


JCorreia ligou para o telemóvel deixado por Susana. Quando esta atendeu, notou alguma ansiedade na sua voz.
- Boa tarde detective. Peço desculpa pelo incómodo, mas preciso da sua ajuda. Eu e o Ernesto temos estado escondidos, porque corremos perigo de vida. As pessoas para quem trabalhávamos, consideram que somos testemunhas das suas actividades ilícitas, e se puderem fazem-nos  o mesmo que fizeram ao senhor Januário Brilhante, gerente-executivo, que foi encontrado morto na sua casa.
- Morto como? – perguntou JCorreia.
- Uma vizinha notou que ele foi visitado por dois estranhos. A seguir não voltou a vê-lo nas suas habituais rotinas. E ainda ficou mais preocupada, porque este lhe tinha dito que se lhe acontecesse alguma coisa, que tomasse conta do gato. Chamou a polícia e encontraram-no morto. Parece que concluíram que se suicidou por enforcamento. Eu não acredito e estou muito assustada.
- O que pretende que eu faça?
- Estou disposta a colaborar, se me der protecção. Tenho conhecimentos que podem levar até às pessoas de uma empresas de import/export, que vendia pornografia, e que suponho fazia tráfico de menores para prostituição. É gente muito perigosa.
- Eu não tenho condições para a proteger. Já tinha informado o seu marido para pedir protecção policial. O que posso fazer é receber o seu depoimento, e entregá-lo na PJ.
Envie-me as suas informações.

Joaquim informou Rosalinda das noticias que tinha recebido de Susana. Ao saber da morte de Januário Brilhante, Rosalinda não segurou uma lágrima teimosa, tendo a sensação que ia perder o equilíbrio. Joaquim amparou-a e pediu-lhe serenidade. Esta respondeu que não sabia como manter serenidade, se se considerava responsável pela morte de Januário, por ter conseguido que ele desvendasse aspectos do negócio da empresa, que representava com gerente. Joaquim procurou convencê-la que a responsabilidade era dele, que a tinha incumbido dessa tarefa, e da qual se tinha saído bem.
- Quando precisamos de descobrir criminosos podemos ter de usar métodos menos ortodoxos. – disse Joaquim – Faz parte da investigação.
- Ele abriu-se comigo, - retorquiu Rosalinda – porque acreditou que estava de boa-fé, e não estava. Sinto a consciência pesada.
- Os criminosos, Rosalinda, vivem fora da lei. Nós utilizamos a lei para os punir. Há uma grande diferença. Januário era apenas um “peão de bregaâ€, na linguagem tauromáquica, do grande matador. Foi a forma que seguiu para ganhar a vida. Não cometia, directamente, os crimes. No entanto, colaborava e sabia que existiam. Diz-se na sabedoria popular “quem não quer ser lobo, não lhe veste a peleâ€.
- Compreendo, Joaquim, mas sou um coração mole. E sinto-me usada. Toda a vida assim foi. Pela minha mãe que me empurrou para o casamento com o Damião, por ele que me fez a vida num inferno…

- Esquece. Quem nunca foi usado? A nossa vida enquanto investigadores policiais vai terminar. Tu já foste convidada, pela Laura, para sua assessora na empresa da Aida.
- Queres dizer, a tua filha?
- Tens razão, mas ainda não me acostumei a essa ideia.


Rosalinda a convite de Laura, encontrava-se na vivenda de Aida. Esta e Joaquim tinham viajado para o Porto, onde iam participar no jantar de despedida, da PJ, do Inspector Malanje. Rosalinda e Laura tinham decidido ficar. Iam sentir-se um pouco deslocados num evento, que não as atraía. Laura informou Rosalinda sobre as condições exigidas por Damião para fazer o divórcio amigável. Esta não hesitou na resposta:
- Se é isso que ele quer, aceito, desde que assine o divórcio. O que mais quero é livrar-me dele. Apenas exijo as minhas coisas pessoais. Sobre um local para viver, logo se vê.
- Não te preocupes com isso, Rosalinda. Vamos trabalhar juntas na fábrica, e podes viver comigo nesta vivenda. É muito grande para uma pessoa só. Como sabes, a minha mãe vai viver com o Joaquim…
- Com o teu pai, queres dizer?
- É verdade. Ainda não me acostumei à ideia. Estou convencida que nos vamos dar bem.
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« Responder #106 em: Maio 01, 2021, 22:57:28 »

Então não vamos? Vamos dar-nos lindamente...

Abraço
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #107 em: Maio 03, 2021, 18:21:17 »

LXIV

- Não te preocupes com isso, Rosalinda. Vamos trabalhar juntas na fábrica, e podes ficar comigo nesta vivenda. É muito grande para uma pessoa só. Como sabes, a minha mãe vai viver com o Joaquim…
- Com o teu pai, queres dizer?
- É verdade. Ainda não me acostumei à ideia. Estou convencida que nos vamos dar bem.


Embora não tivesse começado a época balnear, Laura e Rosalinda passeavam na praia. O tempo primaveril convidava a aspirar a brisa marítima, ainda um pouco fresca. Laura gostava de usufruir do ar marítimo, quando as praias estavam livres daquele formigueiro da época estival. Tirando um ou outro praticante de desporto, eram ocupantes quase únicas daquele espaço. Caminhavam em silêncio, usufruindo do som do mar, e apreciando o movimento das ondas a rebentar na areia. Joaquim e Aida tinham ido para o Porto, onde participavam no almoço de despedida do inspector Malanje, velho amigo e companheiro de Joaquim. Apesar de trabalharem em lugares diferentes, frequentarem cursos Juntos, e tinham colaborado em alguns processos, dos quais se destacava os das FP25.

O almoço decorreu no Restaurante dos Fenianos, junto da avenida dos aliados. Aida prescindiu do seu motorista, e dividiu a condução com Joaquim. Como dois jovens em lua de mel, fizeram uma breve paragem em Coimbra, cidade que Joaquim apreciava e que não se cansava de visitar. Chegaram ao restaurante em cima da hora marcada. Os convidados já se encontravam sentados, e foram recebidos por Malanje, que os conduziu para os lugares reservados, na mesa principal, onde também estava a sua mulher e Contreras, acompanhado de uma jovem que parecia ser sua filha.
Feitas as apresentações formais, e servida a refeição, composta por várias entradas, e tendo como prato principal Bacalhau à Braga, Contreras apresentou a jovem como sendo a sua namorada. Joaquim depois de a cumprimentar e elogiar a sua beleza, perguntou aos dois companheiros, como tinha decorrido a viagem a Luanda. Malanje respondeu.
- Amigo Correia, agora não estamos aqui para falar de trabalho. Estamos para festejar uma mudança de rumo na minha vida. E olha que ainda bem não saí, e já estou com saudades. Raio da alma lusitana. Mas depois do almoço, prometo que te darei notícias sobre o que será a minha última investigação. E penso, que mesmo reformado, ainda poderás dar-nos uma pequena ajuda. Agora vamos apreciar este momento, com a tua companheira. E estou contente por deixares de ser um velho solitário. Desejo-vos as maiores felicidades.
- Pela parte que me toca, - disse Aida – agradeço a simpática recepção. O Joaquim falou-me muito bem destes amigos de muitos anos. E quem é amigo de Joaquim também será meu amigo.
- Eu, - disse Contreras - também aproveito por vos felicitar, especialmente a menina, a única que foi capaz de desencalhar um velho solteirão. Eu pelo contrário não era capaz de viver sozinho. Ainda me estou a divorciar, e já tenho ao meu lado, a Alice uma nova companheira
Aida pensou que Contreras estava certo, ao falar de uma nova companheira em todos os sentidos. Pensou-o, mas apenas disse:
- Os meus parabéns. Desejo que tudo corra bem. Na vida precisamos de encontrar equilíbrio e estabilidade. Eu e o Joaquim juntámo-nos nesta fase da vida. Podia ter sido há muito tempo, pois conhecemo-nos durante a juventude. É uma longa história.

Joaquim que tinha estado calado, saboreando o prato de bacalhau, limitou-se a fazer um breve sorriso, e a comentar, enquanto enchia os copos com um precioso néctar do Douro:
- É a vida. Umas vezes controlamo-la, outras é ela que nos controla. Aproveitemos o momento e o que nos proporciona, da melhor maneira. Agora brindemos à amizade que aqui nos reúne.


Rosalinda e Laura, regressaram da praia, exaustas das longas caminhadas. Prepararam uma refeição leve e sentaram-se no terraço à espera do anoitecer. Para Laura, a troca do dia pela noite, com aquela visão entre o fim da terra e o começo do mar, causava-lhe uma sensação de grande paz. Usando um tom calmo e despretensioso perguntou a Rosalinda.
- Então, como estás a viver este fim de semana?
- Maravilhosamente, - respondeu Rosalinda, depois de uma pequena reflexão.- parece-me que passei de um pesadelo para um sonho.
- Ainda bem. De qualquer modo, acho que pesadelo e sonho são faces da mesma moeda. Desejo que passes os maus momentos, Rosalinda. Desculpa se sou enxerida. Depois do divórcio com Damião, pensas numa nova relação?
- Nunca sabemos o dia de amanhã. Perdi essas ilusões. Penso num dia de cada vez. Ao contrário do que Damião me acusava, de ser uma puta, nunca o traí. Porém houve alturas de desespero, em que o pensei fazer, para não ter só a fama. A minha vida nunca foi fácil. A minha mãe criou-me com muitas dificuldades. No fim da vida perdeu a memória. Como trabalhadora independente, não descontou para a Segurança Social. Recebia uma pensão social que ajudava a pagar o lar num convento de freiras, que a receberam, dada a sua difícil situação económica. Eu não trabalhava, e o Damião não me dava dinheiro, com a desculpa que o gastava com amantes.

Foi nessa altura que fui trabalhar como secretária de JCorreia, mesmo contra a vontade do meu marido, dizendo-lhe  que se me proibisse saía de casa. Foi durante esse período, e antes de saber que eu e Joaquim éramos familiares, que pensei pôr os cornos ao Damião. Sentia alguma atracção pelo Joaquim que achava um homem charmoso. Comecei a fazer os meus jogos de sedução, e ele apercebeu-se, mas chutava para canto, como se costuma dizer. Nas nossas conversas dizia que o médico lhe proibira todos os vícios.
Laura que ouvia com atenção, não conseguiu evitar uma sonora gargalhada.
- Ó minha querida, ainda bem que isso não foi para a frente. Se tivesse ido, agora eras minha madrasta, uma madrasta boa, mas madrasta.
- Seria uma boa madrasta, até porque gosto muito de ti. Não aconteceu, pois o teu pai foi um cavalheiro, e percebeu que eu agia em função de muita frustração. Além disso, nunca deixou de ser fiel à sua gata dos telhados. Na altura tinha chegado à conclusão que precisava de me libertar do Damião, e agarrei-me ao que me parecia uma saída. Depois que soube das nossas relações familiares, senti que não estava só, depois da morte da minha mãe, cujos laços de parentesco, tinha perdido.Hoje que a minha vida está a tomar um novo rumo, ainda sinto o peso desses anos de sofrimento.
- Esses anos não voltarão. Garanto.- disse Laura pegando-lhe na mão – nós ainda vamos ser muito felizes.


No fim do almoço, no Porto, Malanje, Contreras, e Correia, aproveitaram-se das damas estarem em amena cavaqueira, para irem ao bar, tomar uma bebida. Sentaram-se numa mesa num sítio mais reservado. Malanje tomou a palavra:
- Eu acompanhei o Contreras a Luanda, na sequência de um caso que já estava encerrado e a pedido da polícia angolana. Como sabes, há uns tempos, investigamos um caso conhecido como o “Esfaqueador da Réguaâ€.
- Lembro-me vagamente, - disse Correia – era um assunto relacionado com a disputa pela posse de um laboratório farmacêutico.
- De facto, - continuou Malanje – descobrimos que dois dos herdeiros se uniram para conseguir afastar os outros, usando métodos intimidatórios e violentos. Resolvemos o imbróglio, mas deixamos escapar os meliantes. Percebemos que foram para Angola, onde tiveram a protecção das autoridades. Recebemos as informações que tinham morrido, numa disputa entre si. Resolvemos encerrar a investigação.
- Já percebi que foi reaberto, - disse Joaquim – mas porquê?
- Houve mudanças no poder, - continuou Contreras - e recebemos da polícia de Luanda, um pedido de colaboração, porque descobriram que havia dois portugueses integrados numa rede de tráfico de menores para Portugal. Pela descrição, chegámos à conclusão que eram os dois merlos, falsamente considerados mortos, e com nova identidade. Assim, convidei Malanje, antes de se aposentar, a acompanhar-me, porque tínhamos estado juntos nessa investigação.
- E não fui só por isso, - disse Malanje com alguma malícia – fui dar apoio ao Contreras, para que ele se concentrasse no trabalho, e não se dispersasse por outras actividades. Com a tendência que anda para trocar de mulher, cada vez mais novas, ainda trazia uma angolana.
- E em que pé está a situação?  - perguntou Correia.
- Da parte angolana, vão tratar dos suspeitos no país. A nós cabe-nos, tentar estabelecer as ligações com os cúmplices portugueses. Falaste-me de um caso de utilização de uma casa no Estoril, que te parecia estar ligada a orgias sexuais, - recordou Malanje.
- Cheguei a essa descoberta, por mero acaso, na sequência da procura de uma marido desaparecido, que me foi entregue por uma cliente. Descobri que a empresa de import/export onde trabalhava estava ligada a operações ilícitas, ligadas à casa do Estoril. Esta fechou, e eles, a Susana e o Ernesto,  estão escondidos com medo de represálias. Comprometeram-se a fazer-me chegar informações, em troca de protecção. Depois farei-as seguir para PJ, já que como detective privado não tenho competências para investigar.
- Obrigado Correia. – disse Contreras – Nem poderá ser de outra maneira. Na polícia não gostamos da intervenção de civis, mesmo ex-polícias. De qualquer modo se o tráfico se concentrar em Lisboa, ficará fora da nossa jurisdição. Quanto a ti aproveita a companhia da tua dama, que até a mim me levava.
- O Contreras, Correia, esteve casado quase trinta anos, e agora que a mulher o pôs fora de casa por mau comportamento, parece que quer abrir um harém.

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« Última modificação: Maio 04, 2021, 14:36:48 por Nação Valente » Registado
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« Responder #108 em: Maio 03, 2021, 19:40:37 »

Um harém com aquela idade? Talvez um lar da terceira!...
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outono


« Responder #109 em: Maio 12, 2021, 18:59:50 »



XXXV

- Obrigado Correia. – disse Contreras – Nem poderá ser de outra maneira. Na polícia não gostamos da intervenção de civis, mesmo ex-polícias. De qualquer modo se o tráfico se concentrar em Lisboa, ficará fora da nossa jurisdição. Quanto a ti aproveita a companhia da tua dama, que até a mim me levava.
- O Contreras, Correia, esteve casado quase trinta anos, e agora que a mulher o pôs fora de casa por mau comportamento, parece que quer abrir um harém.


- Rosalinda emocionou-se com o carinho de Laura. Parecia-lhe que estava dentro de um sonho do qual receava acordar. Olhou-a nos olhos e perguntou:
- Eu saí de uma experiência matrimonial negativa. E tu, tens ou já tiveste namorado?
- Não tenho namorado, - respondeu Laura – e não é por falta de pretendentes. Estive uma relação quando andava na universidade. Na altura era quase um sacrilégio não o ter. Um pouco por modismo envolvi-me com um colega. Um dia ficamos a trabalhar até tarde na faculdade. Quando saímos conduziu-me para um descampado próximo, e eu deixei-me ir. Deitámo-nos no chão quente, era um dia do início do verão, e tivemos relações. Foi uma experiência muito desagradável. Tentei convencer-me que talvez assim fosse por ser a primeira vez. Voltámos a ter relações e nada melhorou. O meu namorado era como uma bazuca, chegava e descarregava. Resolvi acabar com a relação. Estava a ser traumatizante. De tal modo que nunca mais voltei a envolver-me com ninguém.
- O Damião também era assim. Na minha ingenuidade pensava que era normal – acrescentou Rosalinda.
- Não tem de ser assim, Rosalinda. Numa relação tem de haver acima de tudo carinho. Posso mostrar?
Laura aproximou-se de Rosalinda, e esta sentiu os seus lábios suaves na sua boca, enquanto as mãos lhe afagavam o corpo. Deixou-se levar.
Acordaram tarde, depois de uma noite calorosa. Laura levantou-se primeiro preparou o pequeno almoço, e levou-o a Rosalinda. Esta ficou muito sensibilizada e lembrou-se que durante os anos de vida em comum com Damião, nunca tinha acontecido. O fim de semana com Laura foi o culminar de uma mudança que lhe estava a acontecer.
- Obrigado Laura,- disse emocionada – estás a estragar-me com mimos. Não estava habituada.


Os inspectores retornados à investigação reuniram-se com JCorreia, para planificar e distribuir tarefas. O plano do detective privado era retomar a investigação do caso do assassino em série, vinte anos depois. Na reunião, realizada na casa de Correia participaram os ex-inspectores aposentados, Aida,e Otília. Correia fez as apresentações e justificou a presença das duas senhoras.
- A Aida, que agora é a minha companheira, foi quem me contratou para reiniciar a investigação. Portanto é a pessoa indicada para explicar as suas razões.
- Agradeço a comparência dos senhores e a vossa disponibilidade para a reabertura, à margem da actuação policial, do processo designado com “estripadorâ€. Como disse o Joaquim, fui eu que o convenci a fazer uma nova pesquisa, enquanto detective privado. Conhecemo-nos na nossa juventude, depois a vida separou-nos, e quando o descobri, pensei nele para me ajudar a ajustar contas com esse passado.
- Quero esclarecer – interrompeu Correia - os meus companheiros, que quando a Aida me contactou para voltar a investigar este caso, não imaginava de quem se tratava, o que só descobri muito mais tarde.
-  O que eu pretendo com esta nova abordagem ao caso, - continuou Aida, é conseguir chegar ao criminoso, se possível utilizando novos meios. O que me move prende-se com o facto de por força de circunstâncias adversas ter passado pela prostituição, e ter conhecido uma das vítimas. Fui madrinha da sua filha, a quem prometi descobrir o assassino da sua mãe. Hoje sou uma empresária com meios para pagar as despesas necessárias. Aliás, na minha empresa acolhi muitas jovens desse meio, tal como a Otília que aqui está presente, e que já disponibilizou dados entregues ao Joaquim, e que recentemente, descobriu novas informações.
Todos olharam para Otília. Era um jovem de pouco mais de vinte anos, que aparentava ter mais idade. A vida errante que começara com o assassinato da mãe, quando era muito pequena contribuíra para isso. Tinha uma estatura baixa como a mãe, cabelo preto, e tinha um rosto atraente, de onde sobressaiam uns olhos castanhos, que denotavam uma certa tristeza. Mexendo com a mãe direita no cabelo comprido, como se fosse uma tábua de salvação, começou a falar, com o olhar perdido, num ponto incerto do horizonte.
Como disse a dona Aida, chamo-me Otília. A minha mãe, a segunda vítima do estripador, chamava-se Clotilde. O meu pai, com quem perdi o contacto deu-me para adopção. Tive uma infância e uma adolescência complicada. As recordações que tenho desse período já as entreguei ao detective JCorreia. Mas hoje tenho outras informações para revelar. Há pouco tempo recebi a visita de uma jovem desconhecida, que se apresentou como sendo minha irmã. Lembro-me dela ter nascido, cerca de dois meses antes da morte da minha mãe, e lembro-me apesar de ser muito pequena, de tomar conta dela. Ficou com o meu pai e não voltei a vê-la. Procurou-me na senhora que me adoptou, e conseguiu encontrar-me. Foi com muita emoção e mais alegria que recebi esse reencontro. Informou-me que o pai tinha falecido, e que quando estava muito doente, lhe entregou um pequeno caderno onde a mãe fazia algumas anotações, pedindo que me o entregasse. Entre notas de clientes habituais, de marcações, há uma mensagem desesperada.

“não posso deixar a rua. Preciso de dinheiro para alimentar os vícios, principalmente o do jogo. Depois do assassínio de uma amiga, sinto-me em grande perigo. Não conheço o assassino, mas de entre os clientes habituais, há um que me parece estranho. Delicado, de poucas palavras, e que paga acima do pedido. Diz que se chama Adérito. Para mim é o ruço. É um homem de estatura média, que gosta de me ver tirar a roupa, para se excitar. Mostra que conhece a minha vida para além da prostituição. Depois do que está a acontecer assusta-me.â€

-Esteves que coordenou as investigações, na primeira fase disse que essa informação nunca chegou à PJ. E mostrou estranheza, dado que o marido de Clotilde foi ouvido pelos investigadores. Interrogou-se  porque razão essa informação foi só foi divulgada depois da sua morte.
- Otília respondeu que segundo a conversa que teve com a irmã, o pai teria mostrado esse caderno porque a descrição, não apontava  em concreto para alguém que conhecesse. Que desconfiavam quem fosse mas que, sem certezas, não quis fazer denúncias. E que além disso não queria correr riscos, para si e para as filhas.
JCorreia depois de pedir a Otília para lhes emprestar esse caderno, quis deixar claro que esta investigação privada devia ser mantida secreta e por isso feita com a maior descrição. Ninguém da lista de pessoas seguir e a contactar devia desconfiar que se tratava de uma investigação policial, relacionada com os crimes do “estripadorâ€.
O objectivo era vigiar essas pessoas, perceber como viviam e tentar descobrir qual tinha sido o seu percurso nos últimos vinte anos.

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« Responder #110 em: Maio 13, 2021, 10:43:43 »

esta gata continua a dar muito que falar,
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outono


« Responder #111 em: Maio 24, 2021, 19:01:05 »

LXVI
Ninguém da lista de pessoas a seguir e a contactar devia desconfiar que se tratava de uma investigação policial, relacionada com os crimes do “estripadorâ€.
O objectivo era vigiar essas pessoas, perceber como viviam e tentar descobrir qual tinha sido o seu percurso nos últimos vinte anos.

Eles mataram Januário Brilhante. Onde pudemos encontrar-nos, em segurança? Espero marcação por mensagem.
                        Susana
O teor sintético da mensagem, encontrada na sua caixa de correspondência, não surpreendeu JCorreia. Sempre pensara que o suicídio do gerente da Figueira & Laranjeira, não passara de um ajuste de contas, depois deste ter caído na esparrela da Deolinda.
JCorreia respondeu a Susana, marcando-lhe um encontro na fábrica da Aida. Deveria dirigir-se à recepção e dizer que tinha uma entrevista marcada com Laura. Esta e Rosalinda ficaram encarregadas de ouvir o seu depoimento. Susana chegou à fábrica no dia seguinte, a meio da manhã. Foi conduzida ao escritório, por um segurança, onde foi recebida por Laura e Rosalinda, na sala de reuniões.

- Obrigado, por me terem recebido. - disse depois de se sentar, e denotando ansiedade na voz- Corro risco em vir aqui. Tenho tomado todas as precauções. Penso que “eles†perderam o meu rasto, mas nunca se sabe.
- Estamos disponíveis, eu e a drª Laura, gerente desta empresa, e advogada, para a ouvir. Embora como lhe disse o detective, que hoje não pode estar presente, devesse dirigir-se à polícia, e pedir protecção, como testemunha. – disse Rosalinda
- Não quero dirigir-me à polícia. “Eles†são muito perigosos e têm relações ao mais alto nível. Se vierem a ser presos, eu e o Ernesto, podemos depor.
- Pode precisar quem são “eles�
- “Eles†são os traficantes de crianças e jovens para prostituição. É uma rede que tem origem em Ãfrica, e fornece as jovens, para encontros, onde participam homens da alta sociedade. Esses encontros davam-se numa vivenda no Estoril, que foi encerrada, depois do Januário dar com a língua nos dentes. Custou-lhe a vida e na calha estavam eu e o Ernesto
- Consegue ser mais concreta e identificá-los, perguntou Rosalinda.
- Não, - respondeu perentoriamente, Susana – nós só conhecíamos os nossos chefes directos. Sobre isso não posso ajudar. O que sei é que se mudaram para uma quinta na zona de Alcabideche. Aparentemente é um local de produção agrícola, e de realização de eventos, e que esconde o local dos encontros.
- E em relação a clientes tem algum conhecimento?
- Ninguém, no terreno, os conhece. Nas festas, estão todos mascarados. Apenas as meninas se apresentam de cara descoberta. O que ouvi dizer é que existe uma espécie de ritual, como forma de as distribuir. O que me chegou aos ouvidos, é que quanto mais jovens, maior é o preço. E se forem virgens o preço duplica.
- Sabe dizer-nos o local dessa quinta, com mais pormenores.
- É uma quinta que aparece na Internet, como local de realizações de eventos. Aí poderá encontrar a localização. A partir daí pode estabelecer-se a cadeia que leva aos responsáveis.
- Vamos analisar as suas informações, com o detective, - disse Rosalinda. Mas como sabe, não possuímos competência, nem meios, para fazer essa investigação. Para mais o detective está numa fase de pré-reforma.
- Disse-vos o que sabia. Como devem imaginar essas coisas sempre existiram, e continuarão a existir. Fiz parte, fazendo pequenas tarefas, para ganhar a vida. Assumo essa colaboração, mas não sou responsável. Não fujo à minha responsabilidade. Enquanto essa gente estiver à solta, não estou descansada.
- O que podemos fazer, está feito. Ouvi-la. Quando o detective  JCorreia voltar da sua romagem da saudade, contactamo-la.


Joaquim e Aida fizeram uma escapadinha ao Baixo Alentejo interior. Ela queria encontrar-se com as suas origens. Em criança lembrava-se de ir com os pais a uma aldeia do concelho de Mértola, onde viviam os seus avós. Recordava-se dos tempos que aí passava, brincando com primos e primas. No início da dos anos sessenta ainda vivia muita gente nesse local, perdido no planalto alentejano. A vida baseada na agricultura extensiva, era muito pobre. O trabalho era sazonal, seguindo o ritmo das estações do ano, das sementeiras e das colheitas. Quando começou a industrialização do fim do Estado Novo, e a emigração para alguns países europeus, os mais jovens, como os pais de Aida deram corpo a uma fase migratória. Depois da morte dos seus pais Aida não voltara a aldeia, e perdera o contacto com os familiares que aí viviam.

No distrito de Beja viajaram por estradas secundárias, numa rota de memórias, que davam corpo à saudade. O cenário em termos de paisagem humana era desolador. Aldeias quase desertas. Idosos sentados à soleira das portas. Ruas fantasmas. Aida viu as minas de pirites abandonadas, um loca que recordava fervilhante de vida, na parte inglesa e na parte portuguesa. Passou pelos banhos de um local onde ia por um caminho de terra batida, e onde na época estival se juntava gente que pretendia curar maleitas, e que hoje apesar dos melhores acessos era um ermo sem vivalma.

Na sua aldeia entraram numa velha mercearia, que teimava em servir os poucos resistentes ao êxodo. Identificou-se como filha do local, e o merceeiro, talvez da sua idade, disse-lhe que sabia quem eram os seus pais, e que ainda tinha lembranças de a ver em pequena na aldeia. Foi uma pequena alegria, na tristeza que era ver o interior quase despovoado.

- São boas recordações, Henrique. Lembro-me do teu pai. Um homem muito simpático. - Quando a minha mãe me mandava a mercearia comprar, por exemplo petróleo, para o fogão e para o candeeiro, o teu pai adoçava-me a boca com rebuçados. Um luxo.
- Tempos difíceis Aida. Ao mesmo tempo, alegres, apesar da falta de electricidade, e de água canalizada. Mas havia gente. Sem pessoas não há vida.
- Eu só vinha cá de férias,- disse Aida – com um brilhozinho nos olhos – e sentia-me muito bem.
- Eu, - continuou Henrique - saí de cá depois de vir da guerra. Tinha tirado o Curso industrial, e fui trabalhar para a fábrica de vidros, perto de Lisboa. Por lá fiz a minha vida. Quando me reformei e com os filhos encaminhados, voltámos. Continuei o pequeno negócio dos meus pais. Estou de novo em casa.

Aida e Joaquim, almoçaram em Mértola, uma vila abraçada ao Guadiana, que se transformara num loca de passagem de viajantes para as praias do litoral. Desenvolvera um nicho de restauração, onde se podia degustar a gastronomia alentejana. Durante o almoço puderam juntar o prazer do sabor da comida, à vista para o velho rio, que Aida se lembrava de atravessar numa ponte de barcas. Visitaram o castelo, muito tempo esquecido, e agora revitalizado pelas escavações arqueológicas, pondo a nu o espólio deixado pelos árabes. Entraram na igreja, que mantem a traça da velha mesquita.
Foram dormir a uma estalagem situada num antiga herdade, onde puderam desfrutar dos prazeres da natureza, os sons, os cheiros, a tranquilidade.

O inspector da PJ Bernardo Morais atendeu o telemóvel pessoal.
- Quem fala? - perguntou
- Homem, já não reconheces a voz? Sou o Contreras. Temos colaborado nalgumas investigações.
- Claro, o Contreras do Porto. Peço desculpa, mas a tua voz parece mudada…mais jovem.
- Talvez esteja num processo de rejuvenescimento. Efeito de uma nova relação sentimental. Mas isso são outros quinhentos.
- Não me digas que estás a seguir o exemplo, aí do homem forte do futebol da cidade?
- Não é exemplo que queira seguir. Adiante. Estou a ligar-te por causa de um caso de tráfico de menores, com origem em Angola, e que estou a investigar. Pensamos que tem ligações aí não região de Lisboa. Já enviei documentação oficial para a PJ. Fazia muito gosto em que tu colaborasses. Tenho boas recordações do nosso trabalho conjunto.
- Até ver não sei de nada, em concreto. Vou informar-me.
- Então aguardo. E mudando de assunto: de um modo geral, está tudo bem contigo?
- Tudo bem, tirando os desgostos do futebol. O meu clube continua arredado do título. Quanto ao resto, cá vamos “cantando e rindoâ€.
- Em boa verdade, já sinto saudades, do teu sentido de humor e das tuas piadas. Vamos ver se voltamos a rir juntos, mesmo de coisas sérias.
- Rir, amigo Contreras, é importante para manter a sanidade mental, nesta merda de profissão. Também estou um pouco preocupado, com a falência do banco americano. Abarrunto borrasca da grossa. Quando o mar se descontrola, quem paga, quem é?

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« Responder #112 em: Maio 26, 2021, 22:26:34 »

Vamos continuar.

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outono


« Responder #113 em: Junho 02, 2021, 20:35:32 »

XLVII


- Em boa verdade, já sinto saudades, do teu sentido de humor e das tuas piadas. Vamos ver se voltamos a rir juntos, mesmo de coisas sérias.
- Rir, amigo Contreras, é importante para manter a sanidade mental, nesta merda de profissão. Também estou um pouco preocupado, com a falência do banco americano. Abarrunto borrasca da grossa. Quando o mar se descontrola, quem paga, quem é?


- É verdade camarada Bernardo Morais. Nós representamos a justiça, mas a injustiça é tão forte, que às vezes nos sentimos inúteis. Considero que a nossa acção não vai além dos pilhas galinhas. Quando a caça é grossa, trabalhamos para aquecer. Os magnatas que controlam o sistema financeiro são mais difíceis de agarrar que enguias. Eu já percebi que não posso melhorar o mundo. Por isso, procuro tirar o melhor partido dos tempos que me restam, antes que os neurónios se zanguem com as sinapses, e o garantidor da continuidade da espécie, entre no sono profundo. Entretanto, vou fazendo o meu papel de faz de conta. Não tenho esperança de chegar aos tubarões da pornografia infantil.
- Porra Contreras, para polícia estás muito filosófico. Procurando traduzir, já percebi a tua filosofia. Comer, beber, dar umas mordidelas na carne fresca. Queres gozar o momento, mas arriscas-te a acabar no inferno. Fica descansado, Se esse processo me cair nas mãos, cá estaremos.
- Assim espero Bernardo. Para mais, agora que perdi o Malanje, para a boa ou para a má vida. Quem sabe? Até breve.


O ex-inspector Esteves reuniu-se com os antigos companheiros para fazer o ponto da situação, da sua nova fase de investigadores, instados por JCorreia. Galhardo tomou a palavra.
- Como sabem, de acordo com a distribuição de tarefas, calhou-me investigar o suspeito chamado Carlos Coelho, professor primário, e sobre o qual não se recolheu qualquer prova. Durante os interrogatórios que lhe fizemos, mostrou sempre coerência e segurança nos seus depoimentos. Agora descobri que está aposentado e vive na terra onde nasceu, uma aldeia no Ribatejo. Vive com uma irmã viúva. Dedica-se a cultivar uma pequena horta que herdou. Não casou, e manteve as características que mostrava:  um solitário, reservado e tímido. Frequentava na época o meio da prostituição, mas continuo a pensar que é uma carta a descartar.
- Também me parece que não encaixa no perfil, apesar de ser apontado como suspeito por algumas prostitutas, por ser um tipo algo estranho. E tu Vitorino o que tens a declarar, sobre Alberto Caraças? - Perguntou Esteves.
- O forense Caraças levantou algumas suspeitas dada a sua atracção por órgãos internos. Na altura além da falta de provas, concluímos que satisfazia esse “vício†no seu trabalho diário. Soube que faleceu nos anos noventa. Viveu sempre com a irmã e tinha vários sobrinhos. Quando esta enviuvou, ajudoa-a a criar os filhos. Os vizinhos descrevem-no como uma pessoa simpática, discreta e disponível para ajudar. Saía de manhã, voltava ao fim do dia. Levava os sobrinhos a locais onde tinha actividades lúdicas.
- Na parte que me toca, - continuou Batalha Romã – o Silvério Marques, técnico de informática, continua a exercer a sua profissão. Casou aos quarenta anos
com uma amiga de infância que se divorciou, depois de descobrir que o marido tinha uma amante. Vive no Lumiar, como vivia, na zona onde trabalhava e foi assassinada a segunda prostituta. Como ficou registado, no seu depoimento, teve uma infância complicada. A mãe foi acusada da morte do pai, por envenenamento, depois deste a contaminar com  SIDA, que terá contraído na relação com prostitutas. Foi criado com uma tia, de quem herdou a casa, onde continua a viver. É descrito, no trabalho e na zona de residência, como uma pessoa muito reservada. Para além de provas que o incriminassem, conseguiu durante os interrogatórios, apresentar um alibi credível. Acresce que se encontra ligado a movimentos políticos de extrema-direita. Portanto um cabrão fascista que continua a levantar suspeitas.
- Falta saber o que tem para dizer o Correia sobre o suspeito conhecido como o Ruço. - concluiu Esteves. Acontece que não pôde estar presente, porque depois de nos meter na alhada, desapareceu em combate, com a sua Gata dos Telhados, como lhe chama. Estão em parte incerta, incontactáveis. Sobre o Leandro Cidade, que me calhou investigar, foi muito fácil. Além de sabermos, que era um professor universitário, que escrevia livros policiais, e que morreu com SIDA, uns anos depois dos crimes: Não há, no presente, muitas informações. Era solteiro e não deixou descendência. Na minha análise há duas evidências: o processo prescreveu e o criminoso também, isto é, deu a alma ao criador. Isso explica, em parte, o facto de ter desaparecido, depois de três crimes, próximos uns dos outros.

Joaquim e Aida regressaram à capital, do império perdido, depois de uma escapadinha, à placidez da planura alentejana, onde mergulharam num passado irrepetível. Vivendo dentro das lembranças, sem saírem do presente, procuraram recuperar do tempo perdido, ou pelo menos viver essa ilusão. Regressaram com vontade de voltar. Aida não se importava de ficar perdida naquela quietude, naquele silêncio, longe da do que fora a amargura que a envolvera na sua caminhada.
Após entrarem no bulício da cidade, Aida disse a Joaquim que queria continuar a sua romagem, agora por locais onde não fora feliz. Foram jantar ao Bairro Alto, e percorreram as ruas, que bem conhecia, mas das quais se afastara. Passaram pelo bulício nocturno, onde se mesclavam as “mulheres da vidaâ€, os proxenetas, e turistas ávidos de aventuras exóticas, os habitantes resistentes.
Pelo meio, fazendo do solo colchão, do cartão lençol, e de um saco com todo o património travesseiro, estavam os mais pobres dos pobres, chamados de “sem abrigoâ€. Uma cidade secular, bonita, única, mas onde os contrastes que marcam as diferenças, de quem vive a leste do paraíso, estão presentes a olho nu. E onde são aceites com toda a naturalidade.
- Desde que mudei de vida, -  disse Aida - não tinha tido coragem para vir a este local. Um ex-libris da cidade, que mantém as suas características. O que mais me perturba é a quantidade de línguas estrangeiras que aqui se ouvem.
- De facto, a cidade está cada vez mais cosmopolita, - continuou Joaquim – mas como dizia o poeta, publicitário, “primeiro estranha-se e depois entranha-seâ€.

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« Responder #114 em: Junho 05, 2021, 20:45:47 »

"Bamos a continuar"
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outono


« Responder #115 em: Junho 14, 2021, 18:58:44 »


XLVIII

- Desde que mudei de vida, - disse Aida - não tinha tido coragem para vir a este local. Um ex-libris da cidade, que mantém as suas características. O que mais me perturba é a quantidade de línguas estrangeiras que aqui se ouvem.
- De facto, a cidade está cada vez mais cosmopolita, - continuou Joaquim – mas como dizia o poeta, publicitário, “primeiro estranha-se e depois entranha-seâ€
.
- Nem mais, nem menos. E agora está na hora de regressarmos a casa. A outra gata, a Judite, já deve estar preocupada com a nossa ausência.
Da caixa do correio, perdido no meio de folhetos publicitários, Joaquim Correia encontrou um envelope que lhe era dirigido. Abriu-o e retirou do seu interior uma folha decorada com letras de imprensa recortadas, com o título “Último e único avisoâ€

Quem te avisa teu amigo é. Aviso-te que estás a meter o bedelho num assunto que não te diz respeito. Aconselho-te a repensares a tua intervenção na empresa Figueira & Laranjeira. Já nos obrigastes a fazer algumas alterações nas nossas rotinas. Aconselho-te a saíres desse papel de detective decadente, se queres continuar a  saber como te chamas. Aproveita a vida que te resta, com a tipa com quem andas, e que como sabes também tem um currículo de má vida. Sabes que o ridículo pode matar, e tu já bateste o esse recorde. Não te julgues a palmatória das injustiças, tão velhas como a humanidade. As coisas são como são. O que fazemos sempre foi e sempre será feito. Afasta-te enquanto é tempo.
P.S. : Os nossos ex-colaboradores e agora traidores, estão a passar a ideia que Januário Brilhante não se suicidou. Garanto-te que se suicidou por causa da tua empregada de nome Rosalinda. Escudada numa estratégia de sedução tentou tirar nabos da púcara do nosso colaborador. Com o seu charme de puta barata, endrominou o Januário, e fez com que ele se apaixonasse. Quando percebeu o logro ficou desesperado e pôs termo à vida.

Joaquim partilhou com Aida o conteúdo da carta e a seguir comentou.
- Se estes filhos da puta, exploradores de pornografia infantil, pensam que me intimidam estão redondamente enganados. Cruzei-me com eles por acaso, e estava a pensar em abandonar o caso. Para mais, quando a PJ já lhes está a seguir o rasto. Não me conhecem. Vão continuar a ter-me à perna.
- Pensa bem Joaquim.  - disse Aida – Estás a lidar com gente muito poderosa e muito perigosa. Têm o beneplácito de entidades ao mais alto nível. Os seus clientes são pessoas que podemos considerar depravadas, que fazem parte de altos extractos sociais, e com influências, ao nível da justiça. Contratei-te para tentarmos chegar ao chamado estripador, com o objectivo da Otília fazer as pazes com o seu passado. Não sabemos se está vivo, ou se está no país. Se o descobrirmos não podemos alterar nada, pois a caso prescreveu. Por isso, peço-te que encerres esta investigação, e te reformes de vez- Preciso de ti vivo.
- O teu raciocínio faz sentido, Aida. Sei o risco que corro, mas não me deixo amedrontar por criminosos. Estive uma vida de luta, sobrevivi a uma guerra, e vou dar o meu contributo no apoio às forças polícias. Fica descansada. Não sou kamikaze. Vamos dar prioridade ao caso do estripador. Vou reunir e analisar os contributos da equipa de ex-polícias que reuni. Falta acrescentar a situação da testemunha Adérito Cunha, conhecido como ruço, que tenho de investigar.

A gata Judite quando ouviu o barulho da chave na fechadura da porta posicionou-se para os receber, com uma demonstração de protesto, expresso num miado que modulado pela tristeza, e nalguma desarrumação de pequenos objectos.
Se percebesse língua de gato Joaquim teria ouvido lamentos e críticas pelo abandono. Se a Judite entendesse os humanos teria de ouvir as desculpas e justificações de Joaquim
- Não sei o que queres dizer, mas deitando-me a adivinhar, estás zangada por ficares uns dias sozinha. Mas daí a partires para a violência! Se me entendesses percebias que para onde fui só pude levar uma gata. Mas ficaste com mantimentos para sobreviver.
- Será que estou a ouvir bem Joaquim? Agora falas com gatos?- perguntou Aida com uma forte gargalhada.
- Há muito tempo Aida, desde que comecei a falar contigo.

- Na hora marcada para assinatura do contrato de divórcio entre Rosalinda e Damião, Pedro Galaz compareceu no escritório de Laura de Castro, onde esta o esperava com Rosalinda. No contrato já assinado por Damião, constava que a sua mulher renunciava a todos os bens acumulados depois do casamento, e a que tinha direito. Cedeu a esta pretensão do marido para que ele admitisse o divórcio amigável. Para Rosalinda foi o dia da libertação, depois do pesadelo que vivera. Pedro Galaz, depois de terminadas as formalidades, insistiu com Laura para irem almoçar. Esta pegou, de forma um pouco provocatória na mão de Rosalinda, e voltou a recusar o convite, informando que se tinha comprometido em ir almoçar com os pais, que no dia anterior haviam regressado de viagem pelo Alentejo.Sem deixar de demonstrar algum desencanto, Pedro Galaz, percebeu que era uma carta fora do baralho de Laura, e saiu sem dizer palavra.


Joaquim e Aida, chegaram cedo à sua vivenda, agora ocupada por Laura e Rosalinda. O outono fazia, com pés de lã, a sua entrada, aproveitando o ocaso do verão. O cinzento de um céu com nuvens, pintava a paisagem que se estendia até ao mar que se fundia com o ambiente envolvente. Era um dia que se deixara entristecer talvez em solidariedade com as injustiças que dominavam o mundo. Indiferente aos estados de alma da natureza Lucília, a cozinheira da família, esforçava-se por confeccionar um repasto que compensasse a aparência daquele dia outonal.
Durante o almoço e depois de Aida e Laura, tocarem impressões sobre a situação na fábrica e sobre a romagem ao Alentejo, Joaquim relatou os últimos dados conhecidos do caso da prostituição infantil.
- Ontem, quando chegámos a casa, encontramos uma mensagem que me exigia que abandonasse as investigações, e ameaçando-me com represálias, se não o fizesse. O que quero dizer-vos é que se devem afastar deste caso, especialmente a Rosalinda que também é visada. Neste momento vamos deixar que as autoridades actuem. Hoje recebi uma mensagem do inspector Contreras informando-me de que a PJ de Lisboa já está a investigar.
- Enquanto vocês andavam escondidos pelo Alentejo, eu e Laura – disse Rosalinda – fizemos uma observação da quinta que a Susana nos indicou. Corremos algum risco, e verificámos movimentos de entrada e saída de viaturas. Uma delas transportava crianças de origem africana. Através de um número que não pode ser identificado, procuramos saber de eventuais eventos. Do que conseguimos apurar, concluímos que aquele espaço funciona como clube privado, onde a entrada está dependente, da indicação de um membro inscrito.
- Vocês andam a meter-se onde não devem – comentou Aida com um semblante preocupado – Vou ter de vos garantir protecção especial, e peço-vos para se afastarem dessa gente.
- Eu, - continuou Joaquim – concordo com a Aida, e vou fazer uma proposta. Já temos uma viagem programada à minha aldeia natal, e estão convidadas a vir connosco. Está na hora de conhecerem as vossas origens.

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« Responder #116 em: Junho 17, 2021, 18:16:37 »

É mesmo. E nunca se esquecer de quem fomos.

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« Responder #117 em: Junho 22, 2021, 18:13:28 »


XLIX

- Eu, - continuou Joaquim – concordo com a Aida, e vou fazer uma proposta. Já temos uma viagem programada à minha aldeia natal, e estão convidadas a vir connosco. Está na hora de conhecerem as vossas origens.

- Vocês estão numa de rapiocar – disse Laura- E fazem bem. Aproveitam o tempo perdido, mas eu e a Rosalinda ainda não estamos reformadas. Não posso deixar de concordar que conhecer as nossas origens significa conhecer-nos melhor.
- O tempo perdido, perdeu-se, minha querida filha. Não o vamos recuperar. O que queremos é aproveitar o que temos para viver,- afirmou Aida.
-  Uma das coisas que a vida me ensinou, - continuou – Joaquim, é que devemos aproveitar cada momento. Fazer essa viagem não nos pode desfocar de outros actos. A propósito, a seguir vou reunir com a equipa que está a trabalhar no caso do estripador.

Um grupo de cinco anónimos cidadãos, cada um por sua vez, subia discretamente a rua do Carmo. No bulício cosmopolita, gente em movimento, falando desvairadas línguas Para os tocadores de instrumentos que animavam o ambiente, para ganhar umas moedas, eram gente história, como tantos outros que davam vida e cor à mudez dos edifícios recuperados, depois do fogo que os destruiu. Quem com eles se cruzava, desconhecia que tinham protagonizado a investigação do caso do estripador , que espalhara terror, vinte anos atrás. E tinham regressado, a essa investigação, numa espécie de ajuste de contas com o sue passado. O seu destino era a cervejaria Trindade.

 Laura e de Otília, chegaram mais cedo, e esperavam-nos sentadas numa mesa que tinham reservado. O bando dos quatros, ocupou os lugares que lhe estavam reservados. Depois de acomodados, Correia, agradeceu a presença, e pediu-lhes para consultarem a ementa e fazerem os seus pedidos. Galhardo olhou para a ementa e tomou a palavra.
- Obrigado Correia por nos convidares para este repasto. Se bem te conheço és um homem generoso, e nós merecemos pois andámos a dar o coiro, enquanto tu andavas no bem bom, bem acompanhado pela tua princesa, com todo o respeito. Falando um pouco mais a sério, espero que se tenham divertido.
- Ó Galhardo, não te tinha como quem não pode ver um pobre, com uma camisa lavada. - respondeu Correia com bonomia – Garanto que sigo um lema que aprendi na tropa, “ trabalho é trabalhoâ€, conhaque é conhaqueâ€. Antes do conhaque fiz o meu trabalho, como vais ver.
- Senhor Galhardo, - continuou Aida – foi muito gentil em chamar-me de princesa. Quem não o sonhou. E como nos está a ajudar, merece a minha gratidão. Também sou generosa, por isso sugeri ao Joaquim que nos reuníssemos aqui. Conhece melhor sítio para falar de trabalho que à volta de um bom prato, e de um melhor copo? Ah, e a despesa é por minha conta.
- Aida, - permita o trato familiar, disse Esteves – não ligue ao Galhardo, sempre foi muito agressivo quer com a língua, quer com as mãos. Mas no fundo é boa pessoa. Mais arranhão menos arranhão, nunca matou ninguém.
- Pois não, - acrescentou Vitorino, -  embora vontade não lhe faltasse.
- Bem, companheiros, - interrompeu Correia – enquanto esperamos pela comida, e vão dando de beber à dor, quem quer fazer o ponto da situação, do trabalho feito?

Esteves nunca fora homem de verborreia sem freio. Gostava de ouvir. Dizia o que tinha a dizer não massacrando as palavras. Adoptava o silêncio como norma. Até era acusado de ser mudo praticante. Num país de tagarelas, de especialistas versados em qualquer assunto, os cultores da moderação verbal, não eram apreciados. Enquanto os companheiros deitavam conversa para o lixo, ocupou a boca a degustar as saborosas entradas, entremeadas pelo frescura da cerveja sem lhe dar tempo para aquecer, na sua caneca. Quando achou oportuno, e aproveitando uma pausa, levantou a mão, timidamente, e comentou, ajudado pelo seu humor:

- Com estes banquetes/reuniões até apetece ser polícia. Quando éramos polícias a sério, não havia estas mordomias. E se queríamos dizer umas larachas, juntávamo-nos na tasca do Zé da Esquina, a comer uns coiratos com vinho carrascão. Como hoje, enquanto os outros palravam, o meu bate-papo e com a pele do suíno. Chegou a minha hora de dar de comer ao verbo, a pedido do Correia, e como coordenador desta bófia fandanga,  se estiverem de acordo.
(…)
Interpreto o vosso repouso linguístico como uma autorização. De acordo com as informações que foram reunidas, por este grupo de vencidos da justiça, apurou-se que dos suspeitos, expiados, se concluiu que nenhum deles, como aconteceu na altura dos crimes, parece vestir a pele do estripador. O que vive na aldeia a plantar couves, o informático casado, na meia-idade com a uma viúva, o forense praticante, e o escritor de policiais, são cidadãos que viveram uma vida banal. Estamos tal como há vinte anos, no ponto zero.
Batalha Romã ouviu com interesse o depoimento de Esteves, embora parecesse nervoso, bebericando a pequenos intervalos, goles de cerveja. No ponto zero, pousou a caneca, e no seu estilo afirmativo, contestou Esteves.
- Desculpe chefe, mas discordo que estejamos no ponto zero. Nunca estivemos e sabe-o bem. Houve um recuo a esse tempo, quando nos afastaram da investigação. Coisas que veem lá de cima. Na observação que fiz do informático, concluí que encaixa no perfil do tipo capaz de matar sem piedade. Antes pagavam as prostitutas, agora quer acabar com os malditos emigrantes. Um fascista que devia ter sido passado à bala no campo pequeno, como se falou no PREC. E não se esqueçam que vivia e vive na zona onde aconteceu a morte da mãe da Otília. Este gajo não me merece confiança. Continuo a tê-lo debaixo de olho.
Otília mostrou alguma agitação, com o relato de Batalha Romã. Aproveitando o silêncio que se instalara perguntou.
- Esse suspeito não tem por acaso, cabelo ruço?
- Sim, - respondeu Romã – não me admiro que se julgue descendente da raça ariana, e que queira limpar o mundo dos pardos que nós somos. Continua a haver quem queira continuar a obra do führer.
- Pois se assim é, faz sentido. - continuou Otília. -  Esse estupor pode ter-se safado, por falta de provas. Se assim for, temos contas para ajustar.

Começou a ser servida a refeição. A brigada grisalha da primeira investigação, em acção recorrente, fez uma pausa. Joaquim Correia, aproveitou para fazer o seu relato.
- Da experiência da minha vida, aprendi à custa de muitos tropeções, que não nos devemos precipitar, senão dá trambolhão. O que descobri sobre o Adérito Ruço, também conhecido como Shenandoah, é intrigante. É melhor comermos primeiro estes deliciosos bifes à café, não vá o que vou dizer tirar-nos o apetite.
 
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« Responder #118 em: Julho 03, 2021, 23:36:13 »

Ala que se faz tarde...
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outono


« Responder #119 em: Julho 05, 2021, 18:52:50 »

L

Começou a ser servida a refeição. A brigada grisalha da primeira investigação, em acção recorrente, fez uma pausa. Joaquim Correia, aproveitou para fazer o seu relato.
- Da experiência da minha vida, aprendi à custa de muitos tropeções, que não nos devemos precipitar, senão dá trambolhão. O que descobri sobre o Adérito Ruço, também conhecido como "Shenandoah", é intrigante. É melhor comermos primeiro estes deliciosos bifes à café, não vá o que vou dizer tirar-nos o apetite.


Enquanto os comensais, se deliciavam com os sabores da refeição, e com a conversa a condizer sobre banalidades de banalidades, Joaquim Correia refugiou-se no seu mundo de solitário assumido. Quando a refeição terminou, com os estômagos e os espíritos satisfeitos, pelo alimento para o corpo e para a alma, Correia, retomou o assunto que os reunira
- Caros amigos, depois de se renderem às tentações da gula, e de terem desenferrujado a língua, o que espero vos tenha relaxado, vamos ter de voltar à “â€vaca friaâ€, ou seja ao que aqui nos trouxe. Como vos estava a dizer, o "Shenandoah", um dos suspeitos de ser o estripador, nasceu numa aldeia das beiras, e veio com os pais para Lisboa, onde procuravam fugir à pobreza da terra onde nasceram. O pai veio trabalhar para os serviços municipais, da Câmara de Loures. A mãe fazia trabalhos domésticos, pagos à hora.
- Desculpa a interrupção. Eis em simples palavras o retrato deste país, desde a sua fundação.- disse Vitorino, pensando no seu próprio percurso – País de poucos recursos naturais, nem sempre bem aproveitados, tem com fado a migração.
Estes migrantes, como outros, não vieram encontrar o “el douradoâ€. Instalaram-se numa barraca nas margens da ribeira de Odivelas. Os magros salários não davam para mais. Faziam parte do batalhão de explorados que rumavam às cidades, como mão-de-obra barata, e para trabalhar no desenvolvimento industrial do fim do salazarismo.

- Só o nome me causa fornicoques. - disse Batalha Romã, pensando no que chamava a longa noite fascista – Eu sofri na pele a repressão desses filhos da puta. Em 1967 estava em Direito, e fiz parte dos grupos de auxílio voluntário que se formaram para ajudar as pessoas atingidas pelas cheias. Muitos desalojados, os mais sortudos, e centenas de vítimas mortais. Eu vi com estes que à terra pertencem. Quando as autoridades se aperceberam a verdadeira dimensão da tragédia, receberam ordens superiores para a esconder. Revoltei-me e fui preso. Senti na pele a delicadeza dos torcionários da polícia política, que me atribuíram o estatuto comunista. E no 25 Abril, esses cabrões, passaram entre os pingos da chuva. Por mim, tinha-lhe dado sumiço. Gente dessa não merece misericórdia

- Calma amigo Romã. – continuou Correia - O que vale é que estou habituado ao teu radicalismo, mas no fundo sei que isso é mais da boca para fora. E podem não merecer misericórdia, mas merecem justiça. Numa coisa dou-te razão, de facto essa calamidade deu maior visibilidade à pobreza oculta. Uma catástrofe natural imprevisível, mas que pôs a nu a natureza da ditadura retrógrada que foi imposta aos portugueses, e que estes, com excepções, aceitaram durante quarenta anos, no âmbito dos seus brandos costumes.
Nessa noite trágica, desde Cascais a Alenquer, um dilúvio assolou de forma inesperada toda a região. Começou a chover torrencialmente ao início da noite de um sábado. Foi como se uma nuvem prenhe tivesse parido as próprias entranhas.
A ribeira de Odivelas, galgou as margens e inundou a barraca onde vivia a família de  Adérito. A frágil habitação, não aguentou a força da corrente, e começou a ser arrastada. O pai desesperado, e ao mesmo tempo com pouca capacidade de reacção, dominado pelo álcool, que usava como antidepressivo, para a vida madrasta que vivia, um pouco zombie, com a melhor das intenções,  abriu a porta e desapareceu no escuro da noite. A mãe procurou proteger o filho, e agarrou-se ao que restava da habitação. Uns metros à frente, os destroços encalharam numa árvore de grande porte, que resistiu à força das águas. Diz o ditado que “ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão debaixoâ€. Neste caso só se aplicou ao menino, e à mãe que não estava incluída no ditado. Adérito e a mãe salvaram-se do dilúvio, assim como a sua irmã mais velha, que vivia, como criada de servir, na casa de um alto funcionário público.
Depois da tragédia que destapou a arca da miséria salazarista, mãe e filho foram viver para uma quinta da zona da mesma ribeira. Costumava dizer que lhe parecia ter sido parido pela tempestade e que era seu filho. As suas memórias começavam aí. Foi  ajudando nos trabalhos campestres, que Adérito cresceu, e se fez homem.
Dos dados conhecidos não consta qualquer profissão. Pensa-se que vivia de trabalhos ocasionais, nos armazéns daquela zona onde era visto. Reservado e solitário, foi identificado por prostitutas entrevistadas, como um cliente habitual, pacífico e discreto.

- Lembro-me de interrogar esse Adérito, referido por uma prostituta, que trabalhava nessa zona.- acrescentou Galhardo – Apresentava lapsos de memória, talvez consequência, das sequelas sofridas depois de arrastado pela corrente. Creio que veio daí a alcunha de "Shenandoah". Negou sempre quaisquer ligação aos crimes. Se bem me lembro estava diagnosticado com Sida. Encontraste alguma informação sobre o que é feito dele?

Na abordagem que fiz recentemente não descobri qualquer rasto dele. Vinte anos depois, a mãe que tinha uma saúde frágil, deve ter falecido. Vinte anos depois, Odivelas e a Póvoa de Santo Adrião tiveram grandes mudanças. Cresceram como zonas periféricas de Lisboa, como bairros habitacionais. Blocos de cimento nasceram do chão como cogumelos. A população que hoje ali vive, em grande maioria, não é a mesma. Nenhuma das pessoas mais idosas que contactei, se lembra do Adérito.
O próximo passo é encontrar a irmã. A informação que recolhi junto dos seus patrões é que casou, e foi viver para um bairro camarário. Sei que se chama Maria Luísa Ruço.
- Esse nome não me parece estranho, - disse Aida.
- Vamos ver se encerramos isto. – acrescentou Esteves. A minha cana de pesca não aguenta a ociosidade. E os robalos devem estar com saudades de umas minhocas traiçoeiras.

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« Última modificação: Julho 05, 2021, 22:59:39 por Nação Valente » Registado
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Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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