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Autor Tópico: Peça de tetaro "quem tem farelos?" recriação  (Lida 1886 vezes)
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Goreti Dias
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« em: Setembro 12, 2020, 19:44:05 »

Numa recriação que vai muito além de uma adaptação, tenta manter-se ancorado o espectador na peça “Quem tem farelos” de Gil Vicente, dando-lhe, não obstante, um caráter distinto. Mantendo a graça e carácter originais e mantendo algumas das falas, faz-se retornar o espectador ao seu ponto de partida, nos momentos menos esperados. No final, ter-se-á a sensação de ter assistido à peça de Gil Vicente, ainda que a mistura de ritmos (diálogo, declamação, rap) e a alteração dos diálogos o diferencie. O escudeiro de Gil Vicente é uma rancheira com sentir sexual alternativo (no sentido politicamente correto) ou lésbica (no uso tradicional) e nem por isso se perde a referência ao original. Isabel é a mais fiel das personagens, mesmo discutindo diferentes ofícios com a mãe. Os tempos mudaram, os conflitos geracionais nem tanto!

Quem tem farelos (original de Gil Vicente, adaptação livre, recriação)

Personagens:
Ordonho - criado
Aparício - criado
Aires Rosada – rancheira trovadora
Isabel - filha
Mãe
Velha - beata
( Na esquerda baixa do palco, apresenta-se o narrador, vestido de negro, foco de luz vermelha incidindo com fraca intensidade sobre o folheto que ele tem na mão para ler. Todo o palco está às escuras, não se vê o rosto do narrador. )

Narrador – Gil Vicente dispensa apresentações. Seria sempre ambicioso um grupo amador representar uma peça de um dramaturgo tão conceituado e que tem sobrevivido ao passar dos séculos. Nascido em 1465, quem diria que os problemas sociais seriam tão semelhantes aos da nossa época?!  De facto, olhar em redor e ver as mesmas manias do século 15 é pouco reconfortante. Resta ironizar, brincar e galhofar com as nossas classes sociais, seus preconceitos e teatros do dia a dia. Sim, teatro. Quanta representação por aí… Como de loucos temos todos um pouco, resolveu este grupo representar a conhecida peça “Quem tem farelos” de uma forma peculiar. Nem tudo o que parece é. O teatro pode ser magia, engano, diversão. Entre a boa disposição e a concentração, desengane-se. Nunca saberá com o que pode contar. Assim, tem mais impacto. O que é novo? O que é velho? O que pertence a quem? Nem sempre saberá. Quererão saber? A inteligência e a cultura do nosso público não carece de auxiliares de interpretação. Logo, fica o convite à diversão pelo inusitado.

(O narrador sai de cena e ilumina-se todo o palco de luz média. Apenas se vê, na esquerda média do palco a parede com parapeito de janela onde se virá a colocar debruçada a “Filha”.
Entram os dois criados para a central baixa, quase a entrar na esquerda baixa, a luz em foco incide sobre os dois, criando contraste de luz com a parede, mais escura)
Ordonho – Quem tem farelos?
Aparício – Espera aí, filho da puta ruim, só porque tens sapatos vermelhos já não falas a ninguém?
Ordonho – Como passas companheiro?
Aparício – Bora lá, camarada. Se eu moro com uma rancheira, como posso eu ir bem?
Ordonho – Rancheira? Mas quem é essa rancheira?
Aparício  – É o diabo em figura de gente. Morremos ambos de fome e de caganeira todo o ano.
Ordonho – E com quem vive?
Aparício – Sei lá! Vive tão desprezada como cadela assanhada.
Ordonho – E faz o quê?
Aparício – ( em tom de rap – a luz foca agora apenas o rapper) Faz de néscia. Pentear e jejuar, todo o dia sem comer, cantar e beber, suspirar e murmurar, sempre a falar só. Faz umas trovas tão frias, tão sem graça, tão vazias, que é coisa de meter dó.
( levanta os braços, suspira profundamente dando uma volta sobre si mesmo) e prossegue:
Aparício – sempre toda vaidosa, faz de rica, pois então, três anos de vida airosa, sem eu lhe ver um tostão. Tesa como um carapau, com palha governa a nau…
(o foco de luz volta a incidir nos dois criados)

Ordonho – Irra! Então que comeis?
Aparício – Um pão dá para um mês.
Ordonho – E o cavalo?
Aparício – Está pele e osso. Não comemos quase nada, nós e o cavalo.
(em tom rap): E a gabarola finge-se endinheirada e assim passa o dia a cantar e a rilhar cebola. Que assim o dia é mais curto pra quem é mau da tola.
Em tom  normal, voltando-se para o público: Outro dia, ali no beco, deitaram-lhe a unha, deram-lhe a valer.
Ordonho – Com quê?
Aparício – C’um arrocho seco
Ordonho – hihihihi
Apatrício – O que eu folguei! hihihih
Ordonho – E ela calou-se?
Aparício – Calou, levou e calou!
(em tom rap, foco de luz de novo nele) : Anda praí  de noite, de dia não sai de casa, nem ousa de se mostrar.
Ordonho ( o foco incide nele, em aparte, dirige-se ao público, em ar de gozo) : E vasa!
Aparício: (em tom rap, foco de novo apenas nele) – Vem tão contente cear, como se tivesse o quê, mas eu não tenho que lhe dar nem ela que me dê. Agarra um pedaço de pão e um nabo engelhado e trinca como um cão um osso mal emjambrado. Não sei como se mantém nem isso me dá cuidado. É um desatino assim tão mal pensado que eu rio e choro, num olho de cada lado.
(O foco alarga-se aos dois)
Ordonho – E anda de namorado?
Aparício – Dou ao diabo a bicha, nenhum homem a quer, nem ela os catrapisca, ela gosta é de mulher.
Ordonho – Será rancheira macho à procura do seu tacho?
Aparício – Carago! (passa a rap) Um testo assim seco não tapa qualquer panela. Todas querem um badameco, antes um ele que uma ela. Receber umas prendinhas, querem lá saber de canto? Que se importam com modinhas se no entretanto caírem umas notinhas?
Ordonho – E porque estais com ela, raios?
Aparício – Diz que me arranja um tacho lá na capital!
Ordonho -  E tu acreditas em tal?
Aparício – Sei lá! Tou na lama. Sou tão farto de fome como outros de comer.
Ordonho – (o foco fica apenas nele) Tom rap : Pouca gente desta é franca. O meu é muito pior. Sonha ser grande senhor e nem tem meia branca. Juro por Deus que é um gajo sem gosto, badamerda contrafeito, galã mal disposto sem descanso e sem proveito. Fala em medalhas e oiros, guerras e desbaratos e só vejo pelejar dois gatos em unhadas e desacatos. Nunca vi tanta vaidade nem tal picardia que cavaleiro de cidade é dado a covardia. Aposto que um judeu com uma beca o matava. Nem a mãe que Deus lhe deu na luta se salvava. E quando está em descanso o desaire é bem maior, comporta-se como um ganso a picar o cu ao tratador. E faz-se de fidalgo, ter as damas no papo, o triste, seco como um galgo corre menos que um sapo. E quando se veste, o caturra Oh! Nunca mais se despacha, com tanto cuidado emburra e se toma de laracha que de prumos se empanturra e na lama se escarrapacha.
(foco volta aos dois criados)
Aparício – Por Deus, ruins amos temos. O teu tem mula ou cavalo?
Ordonho – Tem mula sem ao menos saber com que a manter. Mas meu amo tem um bem que ninguém quer roubar: o juízo que ele não tem e todos lhe querem dar.
Aparício – É músico?
Ordonho – De fama muito má. Quando escreve uma moda canta como pata choca, outras vezes como rã.
Aparício – Minha ama toca viola com uma voz tão requebrada que nem a lua quer ficar acordada quanto mais a namorada…
Ordonho – Quero ir para a pousada!
Aparício – E os farelos?
Ordonho – Só palha!
Aparício – Então vem antes comigo e verás a minha ama canalha, tão melada e namorada, tão doida que pasmarás.
Ordonho – Como se chama a tua senhora?
Aparício – Aires Rosada. Eu chamo-lhe asna pelada. Quando vai por aí fora a cantar uma balada à noite, em desora, devia estar calada.
Ordonho – Aires Rosada se chama?
Aparício – Anda daí que a tonta por estas horas lê seu livro de cantigas  a treinar a serenata.
( Saem de cena recuando para o fundo do palco. As luzes apagam-se. As personagens ficam estáticas.
 Entretanto,  na esquerda baixa do palco, apresenta-se o narrador, vestido de negro, foco de luz vermelha incidindo com fraca intensidade sobre o folheto que ele tem na mão para ler. Todo o palco está às escuras, não se vê o rosto do narrador.
Enquanto fala o narrador, a rancheira entra discretamente, no escuro, para junto da mesa e pega no livro.)
 
Narrador – Poesia? Encantamento? De que panos se fazem as cantigas? Morre-se de amor ou de enganos? Como se descreve a paixão? Pelo ridículo, pela emoção? Quem quer mesmo saber? Vocês querem?

( As luzes acendem-se e os dois criados dirigem-se para a direita baixa onde se encontra a rancheira, de livro na mão. A rancheira dirige-se para a central baixa e os criados recuam para a direita alta. O foco de luz abandona-os para se fixar apenas na rancheira. Vão fazendo momices de acordo com a leitura dos versos, tentando ridicularizar as trovas)
Rancheira (lendo do seu livro, passeando-se na central baixa, de um lado para o outro em passo cadenciado, em tom declamatório) – Cantiga de Aires Rosada/ a sua dama/e não diz como se chama/ que é discreta namorada.
Senhora, bem lembrais/que me não sois desconhecida/mandai ao diabo esta vida/no desprezo que me dais.
Ou me irei ali enforcar/ e vereis que eu sou quem/por vos querer grande bem/ ali se foi matar.
Depois lá no outro mundo/veremos que conta dais/do meu triste folgar/e da vida que matais.
Por amor me quereis matar/com dor/tristeza e cuidado/meu sonho é já finado/e me vou a enterrar.
Fui tentar a minha sorte/convosco cruel senhora/e agora me dais a morte/Ah! Má hora!
Chore quem quiser chorar/saibam que já morri/por amar quem não quer amar/num amor que nunca vi.
Amada garina Isabel/ prometi nome não divulgar/mas se sois para mim fel/ aqui o deixo ficar.
Minha amada Isabel/ minha paixão e fadiga/ bora lá ao meu quartel/ não sei mais que vos diga.
Só quero dizer verdades/ mas é tanta a paixão/que partida em metades/não cabem na minha mão.
Estou de candeia acesa/mas vós não temeis de mim/ no meu peito estais presa/este vai ser o fim.

(Aires Rosada volta-se para os criados e fala com Aparício que se chega à frente, para junto da sua senhora. A luz foca ambos.)
Aires Rosada - Como tardaste, Aparício!
Aparício – Tardei tanto assim?
Aires Rosada – Aparício, bem sei eu que te faz mal a boa vida!
Aparício – E desde ontem não comemos…
Aires Rosada – (em tom de insulto) Vilão farto, pé dormente…
Aparício – (Volta-se para Ordonho) – Oh! Ordonho, como mente!
Ordonho – Igual ao meu amo. É o que temos!
(Ordonho que estava no fundo, sai de cena discretamente pela lateral; Aires Rosada mantem-se na central baixa; Aparício desloca-se para a direita baixa, próximo da central baixa, criando espaço entre eles)
Aires Rosada – (desafinada) Dó, Ré, Mi, …
Aparício – (voltado para o público) – Veem? É com eu digo…
Aires Rosada – (voltado para o criado) que diabo falas tu?
(canta voltado para o público uma música qualquer, desafinada)
(dirige-se ao criado que abana a cabeça e resmunga algo que não se entende): que resmungas tu comigo?
(volta a cantar)
Aparício – Ai, Jesus, que agastamento.
Aires Rosada - Dá-me cá esse instrumento (aponta para a guitarra encostada a um canto do palco, atrás do criado. O criado pega na guitarra e entrega-a a Aires Rosada que começa a tocar ( A personagem faz de conta que toca e ouve-se uma gravação de uma música antiga)
Aparício – Na música menos mal. O pior é quando abre a boca…
Aires Rosada – Agora que estou preparada irei tocar para a minha dama.
Aparício – Já ela estará na cama
Aires Rosada – Pois que seja acordada!
( Aires Rosada dirige-se à “janela” e começa a tocar – ouve-se, de novo, a guitarra)
Aires Rosada (a cantar enquanto toca) – Se dormis, minha donzela…
(os cães interrompem a ladrar, ela cala-se, a guitarra também)
Aires Rosada - Aparício, mata-me esses cães ou vai dar-lhes a comer alguns pães.
Aparício ( voltado para o público) – Ela nem meio pão tem.
(volta a tocar a guitarra e Aires Rosada recomeça a cantar)
Aires Rosada – Se dormis, minha donzela, despertai e vinde ouvir (cala-se a guitarra e a cantiga à espera que surja a donzela)
Aparício (para Aires Rosada, voltando a cabeça, de vez em quando, para o público): Ao diabo eu te dou que tão má cabeça tens. Não tens mais de dois vinténs que hoje o cura te emprestou. (Dirige-se à rancheira e tira-lhe a guitarra e coloca-a no chão junto ao banco baixo)
Aires Rosada – (cantando esganiçada) Chegou a hora de partir/ se comigo quereis vir.
Aparício – (voltado para o público)A partida será embuste/que cavalo vai levar?
Ordonho ( reaparece ao fundo do palco, em ar de troça) – Olha, olha, ela nem tem que lhe dar (volta a esconder-se atrás do pano)
Aparício (para o público) – ela não tem um tusto…Aquilo é só fantasia que arranjou sem nenhum custo.
Aires Rosada (prossegue a cantiga, agora sem música) – se estais descalça…
Aparício (sempre em aparte para o público) – Eu estou bem descalço!
Aires Rosado – Não trateis de vos calçar…
Aparício – Se nem tens que me dar e até fome passo…
Aires Rosado (continua a cantiga) –Que muitas águas tereis que passar…
Aparício - Eu também?
Aires Rosado – ( para Aparício) Toca a andar!
Aparício – Pois não espero outra coisa senão caminhar.
Aires Rosada ( De novo voltada para a janela) Pelas águas de abril, é chegada a hora, se quereis partir.
( a moça responde da janela, mas tão baixo que ninguém ouve. Apenas pelas palavres de Aires Rosada percebemos as respostas dela. Ela fica na iluminação normal, o foco incide em Aires Rosada)
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Dionísio Dinis
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« Responder #1 em: Setembro 12, 2020, 19:45:23 »

Li, representei, reli e sempre com prazer redobrado.
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Goreti Dias
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« Responder #2 em: Setembro 12, 2020, 19:45:58 »

Aires Rosada – Senhora, não vos ouço bem/ Oh! Que vos faço eu aqui?/ Quê, senhora? Eles a mim?/ Não tenho medo de ninguém./ Olhai, senhora Isabel/inda que tragam pistola/eu só lhes darei na tola/com uma espada de papel.
Que são quê? Rebolarias?/ e mais ride-vos de mim?/eu que venho aqui e vos amo/ faço-vos descortesias? Mana Isabel, ouvi, / em que vos difamo?/ Oh! Desgraçada tonta/ tendes-me em fraca conta.
Não sabeis que me digais?/Sabeis que bem vos entendo/ainda mais me arrependo/com quanto mal me queirais./E mais me hei de perder/que essa vossa maldade/ataca minha vaidade/e aumenta meu sofrer.
Aparício – (meio para o público, meio para Aires Rosada) – Entrou-te na cabeça o diabo/ Não tem siso o grande nabo.
Aires Rosada – Senhora, que é isso de me mandar embora?/Não quereis este amor fervente?/Nem esta loucura descontente?/ Dizei-mo aqui na hora!
(pausa)
Que tendes? Um pé dormente? (volta-se para o público) OH! Que bem que ela mente! HIHIHI
(Volta-se para Isabel) de que me rio?/ Rio-me de mil coisinhas/ mas apenas minhas.
Aparício – (para o público) Olhai-me aquele desvario!
(ouvem-se outra vez os cães) – ão ão
Aires Rosada – Não ouço com a cainçada. /(volta-se para Aparício)Rapaz, dá-lhe uma pedrada/ou farta-os de pão!
Aparício – Co as pedras os ajude Deus
Cães – ão ão ão
Aires Rosada – Que tem Deus com os cães? Aparício, dai-lhe vós! (volta-se para Isabel) – Senhora, que maldade atroz a desses bichos leais!
Aparício (atirando pedras) – Toda esta pedra é tão leve, tomai lá esta seixada.
Cães – ( em barulho ensurdecedor) him him him
Aparício – Perdoai-me vós, senhor.
Aires Rosada – Agora o fizeste pior/Ah! Pesar de minha mãe, não vos vades, Isabel./ estais aí?/Nunca tal mofina vi de cães e tão cruel./ Não há coisa que mais me agaste que cães e gatos também.
(ouvem-se gatos a miar em grande zaragata)
Aires Rosada – ( de novo em conversa com Isabel) Mas que bem!/ Agora é que me tramaste./ Falai, senhora, a esses gatos/ e não sejais tão sofrida/ que antes queria a vida/ toda comida por ratos.
(pausa)
E tornais ao difamar/mas quem é que fala disso?/ senhora, dai-me no toutiço/que eu já não sei falar! Vós andais por me ferir/desancar a minha mona/como se foras a minha dona/ E eu só para vos servir.
Vós andais para me matar/ Isabel, gaiata, olhai/ eu falo com teu pai/ele há de concordar/ e vossa mãe também/rancheira é mulher de bem.
Aparício (em aparte) Mas sem vintém.
Aires Rosada – Sou fidalga por minha avó,/ privo com ministro…
Aparício (em aparte) – Querem lá ver isto?/ vai lá limpar o pó…
Aires Rosada – Falarei com vossos pais/não quero dote nenhum/tenho de meu algum/ Não quero que me deem mais.
Aparício – (em aparte) Oh! Como será aviada / e seu pai encaminhado!
Aires Rosada – que tenhais ou não tenhais/ não me importaria/ meus cavalos na estrebaria/ são tantos e tais/ que não tereis mais em que pensar/ a não ser em me agradar.
Aparício – (novamente em aparte) –Oh! Jesus! Que má ladra!/quer enganar a coitada!
( na janela já não se vê Isabel, Ordonho entra discretamente, senta-se à mesa com um baralho de cartas)
Aires Rosada (volta-se para Aparício) – Ide ver se está acordada/ que não sei porque tarda!
Galos – cococococó
Aires Rosada – Meia noite deve ser
Aparício – Está na hora de comer/pois os galos cantam já. (Aparício senta-se ao lado de Ordonho. Jogam as cartas e bebem água.)
Aires Rosada (volta-se para o público e esganiça) – Cantam os galos e eu não durmo nem tenho sono.
( Isabel volta à janela, mas não se ouve)
Aires Rosado -  Como? Vossa mãe vem cá?/ cá à rua? Para quê?/ Mas, por quem é, venha que aqui me achará.
(Isabel desaparece de novo, apagam-se as luzes. A rancheira mantém-se no médio alto, fica às escuras, de pé, quieta)
( Na esquerda baixa do palco, apresenta-se o narrador, vestido de negro, foco de luz vermelha incidindo com fraca intensidade sobre o folheto que ele tem na mão para ler. Todo o palco está às escuras, não se vê o rosto do narrador. )

Narrador – De grande coragem se enchem os amantes. Para mentir ou falar verdade- Enganam-nos as personagens e nem damos conta. Bem gostamos de tais enganos, aliás, pois então! Quem manda no Destino? Podem as personagens mudá-lo?

(Acendem-se as luzes, as personagens ganham vida.)
Mãe – ( entrando no palco pela esquerda média, dirigindo-se a Aires Rosada) Rogo à virgem Maria / que quem me fez erguer da cama/se perca na má fama.
(voltando-se para a rancheira, com cara de escárnio)_ Oh! Quem diria! (volta-lhe as costas e sai de cena como se fosse entrar em casa.
Aires Rosada, agarrada à guitarra, recua para a central alta e surge vinda da direita média, caminhando para a central baixa, uma velha beata. Enquanto a velha reza pelo missal, a rancheira senta-se no banco baixo e leva as mãos à cabeça.
Beata – (caminha de lado a lado no palco, desde a direita baixa até à esquerda baixa, ouve-se o alter ego da beata, mais feroz nas suas falas ) Rogo à Virgem Maria /que lhe dê má cama e má dama/e má lama negra e fria/. Má mazela e má courela/mau regato e mau ribeiro/mau silvado e mau outeiro/má carreira e má portela./Mau cortiço e mau sumiço/maus lobos e maus lagartos/nunca de pão sejam fartos/ mau criado, mau serviço./ Má montanha, má companhia/ má jornada, má pousada,/ má achada, má entrada/má aranha, má façanha.
Má crença, má doença/ mau doairo, mau fadário/mau vigário, mau trintairo/má demanda/ má sentença/mau amigo/e mau abrigo/mau vinho e mau vizinho/ mau meirinho e mau caminho/mau trigo e mau castigo,
Irá de monte e de fonte/ irá de serpe e de drago/perigo de dia aziago/em rio de monte a monte./Má morte, má corte, má sorte/má dado, má fado, mau prado/mau criado, mau mandado/ mau conforto te conforte.
Rogo às dores de Deus/ que má caída lhe caia/ e má saída lhe saia/trama lhe venha dos céus./ (em aparte): Jesus que escuro que faz!
Oh! Mártir S. Sadorninho/ que má rua e que mau caminho/ cego quem m’isto faz! (faz um gesto com as mãos voltada para o público, dois dedos indicadores apontados)
( sai pelo lado do palco onde termina a ladainha)
Mãe ( sai de casa e dirige-se à rancheira que se levanta de um salto) – Má onda parida / Jesus, até me enleio/ Esta praga de onde veio?/ Deus lhe dê negra vida.
Aires Rosada (dirige-se ao central baixo e fala para o público) – Por amor, era por amor!
Mãe – Mas que ardor! Quem é este gaio?/ picanço ou papagaio/ a falar assim de cor?
Ai que tratante este/ que assim me desacata/ má fado à porta bata/ que à minha já bateste.
Maldição de Santa Engrácia te mate essa falácia!
Aires Rosada – Ai que nos separam, chavala!
Mãe – Má estrada te leve!
Aires Rosada (cantando esganiçada) – Eu amei uma senhora,/bela como uma cereja/Não querem que a veja/ e mandam-me embora!
Mãe – Maus cães te comam/ e o demo te leve/minha filha nunca teve/ por namoro um rascão.
Nem de pão te fartas/rancheira de uma figa/ que não comes há quem diga/ mas andas nas serenatas.

Aires Rosada - (volta-se para a janela onde se não vê ninguém) – Não me querem para ti/ amor da minha terra/ vou procurar outra guerra/vou-me por aí.
Mãe – Vai ao diabo com seu pai/ e dormirá a vizinhança/com esta maluca andança/ ninguém daqui sai.
Aparício (para a mãe) – Dizei-lhe que vá cear. Hoje não trincou bocado.
Mãe ( para Aires Rosada)– Vai comer e dai ao demo o tanger!
(Continua): E se pão não tens já/ começaste mal a vida/ padeira era uma saída/ou, quem sabe, tecelã.
Aires Rosada (voltada para a janela onde já se vê Isabel) – Isabel, querida,/os meus olhos já se vão/cá me fica o coração/ já vedes minha partida.
( Apagam-se as luzes, as personagens ficam estáticas. Na esquerda baixa do palco, apresenta-se o narrador, vestido de negro, foco de luz vermelha incidindo com fraca intensidade sobre o folheto que ele tem na mão para ler. Todo o palco está às escuras, não se vê o rosto do narrador. )
Narrador – Mas grande ilusão é a do teatro. Corremos para a direita e veem-nos na esquerda. O fim é o princípio e o princípio é o fim. Nada é o que se espera.
( Acendem-se as luzes de novo, as personagens ganham vida. Sai Aires Rosada de cena e fica a mãe no central baixo falando com a filha)
Mãe – Isabel, tu fazes isto/ tudo isto saiu de ti/ Eu bem vi/ que tu tens culpa nisto.
Isabel (bem alto e descendo da janela até junto da mãe) – Pois sim! Eu a fui chamar!
Mãe – Ai, Maria rabeja!
Isabel – Trama a quem a deseja/ mas eu espero não desejar!
Mãe – Que dirá a vizinhança? Diz-me, má mulher sem juízo!
Isabel – Que tenho eu que ver com isso?
Mãe – Que má criação!
Isabel – Alguma coisa valho eu/ e alguma coisa mereço/ pois se eu não o peço,/vêm pelo que é meu.
Vós quereis que me faça de simplória/vós quereis que tenha modos/que pareça bem a todos/ e depois não haja história?
Vós quereis que mate gente/ de tão formosa e atinada/ depois quereis que nem fale/ e me mostre contente.
Quereis que cresça e viva/ e não deseje marido/ quereis que reine cupido/ e eu seja sempre esquiva?
Quereis que seja discreta/ e que não saiba de amores/ quereis que sinta primores/ mui guardada e mui secreta?
Mãe (voltada para o lado por onde saiu Aires Rosada) – Tomai-a lá. Ui, Isabel/ quem te deu tamanho bico/ rostinho de cerolico/ és tu moça de bacharel?/ Não decoraste assim o ato de contrição que ouviste na confissão.
Isabel – Isso não é para mim!
Mãe – Então é o quê?
Isabel – Eu vo-lo direi:
Ir amiúde ao espelho/ a pôr branco e vermelho/ e outras coisas que eu sei./ Pentear, cuidar de mim/ pôr a sobrancelha a jeito/ e morder por meu proveito/ estes beicinhos assim.
Aprender a passear/ para quando for casada/ não dizerem que fui criada/ em cima d’algum tear.
Saber ouvir um recado/ e responder d’improviso/e saber fingir um riso/ falso e bem dissimulado.
Mãe – E bordar?
Isabel – Faz a moça muito mal feita/ corcovada/ contrafeita/ e não pode usar anel
Faz muito mal aos olhos/ e vesga não me quero/por descanso é que espero/ e lindas saias de folhos.
Mãe – Ui! Ajeita-te a costurar e terás saias aos molhos!
Isabel– Isso é pior que bordar.
Mãe - Enjeitas o costurar?
Isabel – Não hei de pegar em agulha/ que sou filha de moleira/ e se não quero ser padeira/para quê esta bulha?
Mãe – Aprende logo a cozinhar! Ou então a arrumar!
Isabel – Não achais mais nada/ não sabeis de outro ofício?/ eu quero pra meu benefício/ andar toda asseada.
Cozinheira que se preze/ anda suja de gordura/ e da minha formusura/ nada quero que se reze.
Mãe, deixai-me em paz/verás como me arranjo/ com esta cara de arcanjo/ arranjo um bom rapaz.
À rancheira não na quero/ que não tem que me dar/o dia por que espero/ vem aí a raiar. Que tendes para eu tragar?
Mãe – O almoço te dou eu/ com este marmeleiro/que filha de moleiro/ não é filha de sandeu.
Isabel – Ah! Ah!
Isso é para mim?/ Então lá vou à rancheira/ que não quero à tua beira/ morrer de fome assim!
( Isabel sai a correr para o lado por onde saiu Aires Rosada e a mãe para o lado contrário. Os focos de luz acompanham as duas personagens que saem de cena, morrendo a luz nas laterais. Apenas ficam as luzes gerais que devem diminuir de intensidade também.
Quando os espectadores pensam ter o teatro terminado, as luzes ligam-se todas de uma vez no palco e reentram Aires Rosada de braço dado com Isabel, cantando o seguinte rap:

Vamos neste dia bailar/Que o mundo tem dois dias/Num passo de folias/Vamos lá desbundar.
Esta tralha de vida/nos dê acrescento/ que este momento/ é da mais atrevida.
Queremos comer o mundo/ antes que o mundo nos coma/ uma e outra como goma/ no alpendre do fundo.
Vamos daí procurar/ outra vida mais vadia/ se mulheres formos de dia/ de noite seremos par.
Comida há de aparecer/ a gente lá se amanha/ na guitarra ela arranha (fala Isabel)/e eu a merecer(Fala de Isabel).
Um carinho mais atento/uma pausa bem menor/ um assomo de ardor/ para duas um contento.
Pobrezinhas, magrelas/ um dia ricas de pão/aparece um morcão/ e faz papas nas panelas.
De carteira recheada / pagará meias e collants/ azeiteiro de divãs!/ dono d’ Aires Rosada.
Somos gajas bem apessoadas/ usando cera nas pernas/rindo bem fraternas/ das vestes por ele compradas.
(alternando os versos) - A vida tem mais sabor/vivida como se quer/ seja homem ou mulher/  viva o Amor!
( ambas, em tom altissonante) - E a carteira rota!










« Última modificação: Setembro 12, 2020, 19:50:02 por Goreti Dias » Registado
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« Responder #3 em: Novembro 11, 2020, 15:21:17 »

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Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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