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Autor Tópico: A Sátira do Livro Roubado ( texto registado na IGAC)  (Lida 23347 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #15 em: Março 21, 2022, 11:35:30 »

A terceira chegará na próxima ronda....

A televisão transmite uma opereta, O Elixir do Amor, e Gabriel, grande apreciador de música clássica, vai buscar um CD com o intuito de explicar as partes da obra à mana, uma verdadeira nulidade no assunto. Foi nesta opereta que o meu tio-avô se inspirou quando, depois de ter sido despedido do trabalho de médico legista, mal enveredou por métodos de autópsia de romances alheios pouco ortodoxos, desatou a pesquisar ervas com o fim último de curar os males da humanidade em peso, e, quem sabe?, encontrar uma fórmula capaz de lhe reverter a cara de figo seco para um verdadeiro pêssego carnudo, que apetecesse a qualquer mulher trincar.
Por fim, a opereta, ópera, ou lá o que era, acabou e César adormeceu, enquanto a Clara passava a noite em branco a tatear novos mapas de geografia no corpo de Gabriel, que dormia como um bebé. Por isso Gabriel não a ouviu ressonar…
E eu ali, diabólica, acordada também porque uma verdadeira Lilicas nunca dorme, e, por isso, nunca ressona, como disseram lá no outro livro o meu tio-avô e o ex-inspetor aposentado, com quem, se Deus quiser, ainda hei-de ter um caso. É para ver se o homem se levanta de uma vez por todas da frustração em que mergulhou. Tenho de fazer jus à minha vocação. Preparem-se para os ahs do costume.
Eu e a Clara, mano a mano, estamos aqui na cama, cada uma a pensar em ser a outra. Eu quero dar umas dentadas de amor no Gabriel, e ela, que começa a desconfiar do seu anjo por causa do bilhete manuscrito sobre a cama, e por tanto silêncio à mesa onde ela só tem direito a côdeas, prevê já, embora inconscientemente, iniciar a sua transfiguração na minha luciferina pessoa.
Vou fazer-lhe a vontade. Vou colocar-me ao jeito dele, mesmo em posição de macaca. É dos macacos que descendem os homens e as mulheres, sobre quem Clara atirou o veredicto de não terem evoluído nada. Quando Gabriel acordar, e enquanto a Clara se fingir adormecida, há de ser comigo que o meu anjo subirá de novo ao céu, como se se estivesse a evaporar inundado por vagas de prazer, brilhante como um vaga-lume. Vou deixar César dizer e sentir tudo quanto quiser: os palavrões alucinantes e vernáculos que tanto gozo lhe dão, a minha roupa interior feita em rio, a barulheira infernal que faço quando me desfaço em gemidos de arrancar os vizinhos de um prédio inteiro do sono matinal. Sou um autêntico despertador de quarteirão, um carrilhão de sinos iguais aos do Convento de Mafra a ecoar pelo mundo do faz-de-conta. Enfim, sou…
− Bom dia, meu amor! Se não me amares eu morro.
Mas, César e Clara têm de ir trabalhar. Ela tem de ir selecionar mais uns candidatos a torturados lá no mundo do trabalho, César tem de ir para a fundação contar as notas e as moedas. Além de que há por aí outra mulher a morrer de amores pelo meu anjo, aquela a quem foi concedida a graça de ser a legítima. Clara não passa de um biscate e eu não me apoquento com coisas terráqueas porque sou a super das mulheres do Olimpo, a pequena serpente do paraíso.

Continua

Leiam também o Estranho fascínio da Internet" que se vende pela net em Todo o mundo. Fisicamente é que é mais raro, só quando eu atingir o estatuto de escritora que vocês me irão atribuir. desde já com o meu muito obrigada.
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
Goreti Dias
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« Responder #16 em: Março 24, 2022, 11:29:44 »

Mas que imagens! Fortes e inusitadas! Isto promete!
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #17 em: Março 25, 2022, 19:03:28 »

Espera para ver.....



Sarita

Sou uma personagem feminina quase completamente feliz. Chamo-me Sara. Era totalmente feliz até há pouco, antes de aparecer cá em casa um velho agoirento, com uma sobrinha neta que vindos, não se sabe de onde, trouxeram com eles o azar na bagagem. A ponto de estarem a dar comigo em doida. Sobretudo por causa do meu querido Gabriel. O homem afirma convictamente que o meu marido está muito mal.
Conheci o meu amor num dia chuvoso de Maio. Foi no final do mesmo concerto em que, à beira de um maestro suado e depois dos aplausos finais, estavam, entre várias pessoas, uma mulher com um vestido vermelho, a Carolina, a Clara e o amigo desta, que depois veio a apresentar-me o César. O rapaz, o amigo da Clara, era pintor. Eu tinha-lhe adquirido um quadro quando andava a decorar o solar herdado dos meus pais na terra sem nome, por vontade da autora desta saga. Ela quer-nos, ao mesmo tempo, cidadãos de todo o lado e de lado nenhum.
Foi amor à primeira vista, e, entre o primeiro beijo e o sagrado nó, não decorreram mais de três meses, sensivelmente o mesmo tempo em que Clara andou entretida com o César. Este é, como já sabem, a personagem de um outro romance onde eu era apenas um embrião a querer ganhar vida, e cuja alma, um pouco penada, já andava em casa dele a vaguear. Estava apenas à espera de ser aprisionada num verdadeiro corpo para sentir as alegrias de me tornar mulher nos braços do meu anjo.
Quando estive pela primeira no ninho de César, estavam lá a Clara, a Lilicas e o tio-avô desta ave-do-paraíso, por quem, diga-se de passagem, nunca nutri grande simpatia. Nessa altura o velho bisbilhotava a biblioteca do meu anjo, a Clara via fotografias de quando Gabriel era criança, e eu, dada à cozinha, e, além disso, uma mulher muito prendada, prontifiquei-me a fazer o jantar para todos, enquanto Gabriel preparava um sumo de laranja para a Clara e um Vodka para a Lilicas. Nunca lhe passou pela cabeça que tinha em casa uma víbora. Refiro-me à Lilicas, é claro…
Aproveito agora para esclarecer o seguinte: nesse dia não havia nenhuma criada de touca para servir a refeição, e as malaguetas são uma perversa invenção da rapariga. Ela julga que o leite vem directamente do supermercado sem passar pelas tetas de vaca ou ovelha. É desculpável. Lá no paraíso a comida é toda liofilizada… Além de nem sequer saber distinguir uma batata de um nabo, nem uma nabiça de um grelo…
Nesse meio tempo, em três meses, o nosso amor, o meu e o de Gabriel, cimentou-se a ponto de, ainda não tinha acabado o verão, já éramos marido e mulher. Na altura tive de travar algumas batalhas com os amigos. O Gabriel, com vinte e oito anos, bonito até às alturas do céu, sob o ponto de vista deles não era homem capaz de me fazer feliz, uma vez que eu já era entradota e até com idade para ser mãe dele. Mas isso não nos fez recuar um milímetro. Até porque nunca tive razões para duvidar da fidelidade dele, e ele muito menos teve motivos para desconfiar da minha. Não temos segredos um com o outro. Além disso, é Gabriel na Terra e Deus aqui com ele para abençoar o nosso amor, talhado no céu com fitas métricas prateadas de luares de Agosto e tecidos de ouro, bruxuleantes como as estrelas. E, por isso mesmo, até sei que, no futuro dele, entre os vinte e oito e os quarenta e poucos anos, tinha sido casado com a Patrícia, de quem teve dois filhos. Mas isso não me interessa nada. Vim directamente da Bíblia para este romance, tomei as atitudes de uma mulher terrena como a Clara, e, no lugar de onde vim, o tempo não existe. Muito menos existem o passado e o futuro, que, para gente da nossa estirpe, além de tudo personagens de romance, têm a mesma importância. Ou seja, nenhuma. César, o meu anjo, acerca da Clara disse-me que teve um romance escaldante com ela enquanto namorava comigo, quando eu, casta e pudica, lhe arremessava inocentes beijos da janela da mansão, tal como se fosse uma criança a brincar com aviões de papel e a enviá-los para o espaço. Só que o entretenimento deles passou-se noutra dimensão, numas outras linhas paralelas do tempo que não se tocam com esta época, nem quando me transformei em gente da literatura. Eu, bíblica e honrada, pairando acima das tricas terrenas, até gostei de saber como se tinha desenvolvido a relação deles, que tipo de mulher era ela e como poderia isso enriquecer o meu relacionamento com Gabriel. A Clara era um pouco distraída. Sobretudo quando estava parada em semáforos a ver passar o trânsito dos outros lados. Além de ser completamente fascinada pelo vermelho, uma característica que a Lilicas também possui. O vermelho é a cor do fogo, e o fogo faz parte da essência de uma e da outra.
Não sei se foi por ter arrancado muitas destas inconfidências a César ─ tímido e calado, gozando a maior parte das vezes sozinho ─ eu própria acabei por ter um fetiche com a cor vermelha. A ponto de, um dia, me ter enfaixado nas traseiras de um camião de grelos parado à minha frente, numa altura em que a Clara tinha ido a uma pastelaria comer uma barriga de freira. Nessa época eu já andava preocupada com o meu amor. Mas não era por causa da cor macilenta que Carolina, a Woman in red, lhe vislumbrava no rosto, a ponto de, por causa disso, a autora ter decidido que o meu anjo iria morrer de hepatite B. E já toda a gente já sabe que isso não passou de um embuste literário. Gabriel estava reservado para fazer a minha felicidade num outro livro,  em que nasci para ser rainha e senhora. Embora, como a mamã já disse, muito ingénua e com uma grande propensão - não se há-de cumprir, se Deus quiser… - para ter uma testa enfeitada para lá da minha franja.
A Clara, além de minha irmã, refeita no século XXI a partir de uma comum costela de Adão, é uma personagem curiosa. Contudo eu também devo ter os meus encantos. De outro modo Gabriel nunca teria levantado os olhos para mim. Ou não fossemos, eu e a Clara, gémeas. O César disse-me que tinha ido jantar a casa dela, comer bacalhau com batatas assadas quando ela andava a mudar de casa. E, poupado como é, não resistiu a apagar-lhe uma luz de presença numa escada interior. Essa atitude fê-la pensar, brincando com toda a certeza, que o meu anjo pudesse ser um vampiro com horror à claridade. Até pelo facto de, mesmo em casa dele, andar sempre a desligar os interruptores.
Cá para mim, se Gabriel pode apresentar indícios de forreta na poupança da energia, a mana deve ter no mínimo medo de dormir no escuro e, no máximo, deve morrer com receio de que haja por aí fantasmas, incluindo vampiros famintos de sangue a atazanar o sossego dos vivos. De qualquer modo, medo ou não, isso acabou por influenciar o modo como gosto de fazer amor com Gabriel: com muita luz, para os meus olhos de mulher apaixonada terem sempre a visão bela e grandiosa do seu corpo divino onde gosto de morrer. É essa sensação que experimento: a de uma morte boa, todas as vezes em que ele faz desabar o céu sobre mim e quando me sinto a estrela mais brilhante do universo. Embora, como já referi, seja já um pouco madura e tenha de tentar sustar na cara, à base de cremes, a força da gravidade que teima em montar tenda no meu pescoço, ali debaixo do queixo, com uma assiduidade que às vezes me deixa um pouco apreensiva. E, é verdade, com alguns ciúmes de mulheres mais novas. Não quero admitir isso, na maioria das vezes, mas é a realidade. Quanto à luz, na hora em que me entrego nos braços do meu amor, é o meu fetiche, confesso, o único. Não bebo e não fumo, não tenho vícios. A iluminação sim é a minha festa.
A mamã diz-me para não exagerar nas minhas preferências. Pelo visto, ouviu uma queixa de Gabriel no outro romance, e, por sinal, até se riu bastante com ele. Foi quando o meu amor disse ter reclamado, uma única vez, da iluminação do nosso cenário na cama. A ponto de, depois de algumas considerações sobres candeeiros, lustres, lâmpadas e mais lâmpadas, de várias cores, em tripé, chamar ao meu “estúdio” ”o semáforo”.
Respondo à minha criadora que, se sou assim, deve ser mesmo por causa da idade. E no romance não serei caso único a ter necessidade de fetiches. Tanto quando se diz por aí, o ex-inspector também precisa dessas coisas, revelando até alguma compulsividade no assunto. De facto, o homem não se coíbe de mirar, mesmo dentro de uma igreja e à socapa, as revistas pornográficas que traz escondidas dentro dos manuscritos sobre os quais se abateu uma febre de decifração. A ponto de se terem multiplicado por aqui ultimamente num universo deles. É como se este nosso tempo fosse o mesmo de Jesus quando Ele multiplicou pães e peixes para dar de comer a uma enorme multidão, tão esfomeada de comida como escritores famintos de boas personagens para os seus livros.
Foi apenas um desabafo de Gabriel, a questão dos semáforos, aposto. Pensando bem, julgo dever-se isso à doença que o tio-avô de Lilicas, lá pelos seus métodos de ervanário à força, lhe diagnosticou. Meu pobre querido…
A minha criadora diz-me que tenho de ser uma personagem dócil e uma anfitriã perfeita para os meus convidados. Apesar de não simpatizar minimamente com a Lilicas, antevendo no íntimo dela um prazer sádico que ainda irá causar muitos dissabores neste livro, tenho até de lhe sorrir de vez em quando. E logo haviam de arranjar para meu professor o tio dela, um homem feio que, além de ter sido expulso da ordem dos médicos legistas por dissecações pouco ortodoxas, ficou também sem carta. Terá entrado numa auto-estrada em contramão… O senhor, além de vesgo, parece-me também um bocado gagá. Anda preocupado com ervas e substâncias alucinogénias para descer não sei a que profundezas da mente e desvendar não sei que mistérios. Foi aonde levou esta febre danada, quando toda a gente tenta descobrir coisas de Jesus, a quem eu chamo primo por afinidade. Nunca se esqueçam que Ele é primo do meu marido. Além do mais, na Bíblia, de onde eu venho, um lugar simples, todos são primos e primas. Mas primos como irmãos. Por isso este romance é mais ou menos um incesto…
Voltando à mana Clarinha, nos três meses em que o meu amor por Gabriel se firmou, a ponto de nos levar ao altar, o dela ia perdendo importância, levando-a, desde bem cedo, a desconfiar que as intenções do santo dela conduziam ao inferno. Então começou a entrar numa esquizofrenia galopante e o Gabriel, paulatinamente, foi-lhe encurtando as rédeas. Ele não podia sequer ir à vizinha, moradora ao lado da pastelaria, pedir um vulgar ramo de salsa para as pataniscas de bacalhau e logo ela tinha pensamentos maldosos:
- Aquela não é a da Carolina, a Woman in red , ela mora para outro lado,  e assim e assado… – pensava,   envenenada pela dúvida. Aconteceu isso numa manhã depois de ela ter ficado em casa de Gabriel, no outro tempo paralelo, cujas coordenadas não chegam até este, onde existo inocente como a pomba do Espírito Santo e por ordens desta criadora a quem agora tenho de obedecer. Nesse dia, por não ter pão em casa, ao pequeno-almoço Gabriel não lhe deu - aliás, não houve café da manhã para ninguém - as côdeas de que ela tanto gostava. Então Clara, em vez de ir embora e agradecer a noite maravilhosa que, sem sombra de dúvida, passou com o meu anjo, pôs-se a espiá-lo como se fosse uma polícia de costumes, disposta a mandá-lo para a fogueira da Inquisição. Na ideia dela, ao invés de Gabriel ser um santo, ou um anjo, deve ter-lhe parecido mesmo que dormiu com uma bruxa de Salem, disfarçada até no pormenor do entre pernas.
Este romance é um manancial de literatura. Há livros para limpar o pó que nunca mais acabam. Estão aqui, juntas ou perto umas das outras, no mínimo três bibliotecas. A primeira é a do meu anjo, quando este ainda se chamava César e em casa de quem, se bem se lembram os leitores, há uma colecção de Jorge Luís Borges, a que eu e a criada, pese embora o nosso esforço, nunca conseguimos tirar aquele cheiro a amoníaco com que o velho René, o gato francês da oficina, a impregnou. Além da maravilha latino-americana, também estão cá os tesouros das estantes que uma amiga da Clara herdou do pai, um coleccionador de todas as coisas e mais algumas. No meio delas existe um velho baralho de cartas de Tarôt com que a Clara e as amigas se divertiam a tentar a arte de adivinhação exclusivamente para amigos. Há também umas runas, as mesmas onde se esconde − é melhor dizer mostra − o alfabeto escandinavo com os seus códigos de revelação dos segredos ocultos do universo, e que é usado pelos peritos da arte de desvendar mistérios. E isto para não falar dos livros da Clara, porque a Lilicas é uma doida. Não lê outra coisa senão revistas cor-de-rosa para quem as pessoas escrevem a contar problemas tão íntimos como o terem atracção sexual pelos namorados das filhas, ou porque o órgão masculino do companheiro tem um tamanho desfasado relativamente ao ideal pretendido. Os meus próprios livros têm um cunho mais religioso. A Bíblia ilustrada, comprada à Planeta Agostini em fascículos, quando ainda andava a estudar Medicina, assume um local de destaque na minha estante, juntamente com a História de Portugal. Desde que me conheço como gente, sempre intui que, quando saísse da Judeia para aterrar num romance qualquer, viveria nesse país, ao lado do meu querido Gabriel. A excepção à minha literatura bíblica são os livros técnicos, exigidos pela minha profissão de médica e os tratados sob pandemias várias que, ao longo dos tempos, se têm abatido sobre a Humanidade. A minha especialidade é Doenças Infecto-Contagiosas e vírus.
Ainda existe a biblioteca da terra para toda a gente. Há nela alguns livros raros, valiosos e místicos. A maioria deles veio de Itália, mais precisamente da Biblioteca do Vaticano,  e depois de ter atravessado duas vezes o Atlântico; uma aquando da emigração para o Brasil dos “capisce” e outra quando o velho brasileiro mecenas da terra regressou cheio de dinheiro, no início do século XX, após uma vida árdua entre o garimpo e a borracha. Depois de se ter cultivado o suficiente na velha Manaus, naquela imensa Metrópole onde não faltavam bons teatros e muita gente ilustre, o mecenas regressou ao berço fazendo então doações valiosas à terra,  de onde tinha abalado um dia pobre como Job e bruto, uma verdadeira inspiração para anedotas da corte de D. Pedro.
Com tanto trabalho no hospital e aqui, não sei a razão pela qual a nova criadora de personagens me obriga a entrar num outro romance. Está a impingir-me outra vez o velho e a sobrinha-neta, exatamente com as mesmas obrigações de antigamente, quando tive de os acolher no solar e de lhes dar de comer, sem contar com a grande possibilidade de perder o meu marido para a doidivanas da Lilicas. É isso que mais me aflige…
A verdade é que nem preciso de recorrer ao velho ditado de que mulher prevenida vale por duas. Com efeito, em mim concentram-se, não uma, não duas, mas três mulheres de papel – talvez de cartolina, mais resistente… – e é por isso que tenho de levar a cruz ao calvário…
Agora não sei quem irá seguir-se. A decisão é da mamã… Ela, parece-me, gosta menos deste eu do que dos outros dois. A Clara e a Lilicas são as queridas dela, sinto-o.
Quanto a mim, mais do que amor, inspiro-lhe provavelmente um sentimento mais pequenino. Talvez pena… Que surpresas me reservará o futuro?

Contínua.

Leiam também o estranho fascínio da internete adquirido em livraria ou on line, onde é mais barato ( em papl custa 15,90, sem portes)
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outono


« Responder #18 em: Abril 02, 2022, 18:42:53 »

As cinquenta sombras de Grey, que se cuidem.
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #19 em: Abril 03, 2022, 22:50:32 »

Bem, Nação Valente... Não sei


±
Gabriel

Quem havia de seguir-se senão Gabriel, regressado, não de férias como lhes disse, mas de um encontro com a minha mulher segredo, a minha reserva e a minha retaguarda para quando o dinheiro me escasseia nos bolsos e ela funciona como o meu Banco Ambrosiano?
Um homem como eu, com tantas mulheres, com dois empregos e, além de tudo, com dois nomes, tem lá tempo para veraneios!? Não podia deixar a Sarita sozinha em casa, com aquela gente toda, a preparar o jantar e os cómodos. Embora ela tenha a velha criada, eu também gosto de pôr a mesa e arranjar a jarra com as flores. E, apesar de, caro leitor, já saber que comi a Lilicas quando a Clara se fingia adormecida lá na minha pequena casa, onde Jorge Luís Borges, em espanhol, continua a aguardar o Prémio Nobel dos mortos, esqueça-se agora disso e finja que eu e ela não nos conhecemos. É o que ambos iremos fazer quando estivermos perante Sarita. Confiando tanto ela no marido, não quero dar-lhe nenhum desgosto… Parte da minha vida paralela a Sara já a conhece, nomeadamente o meu romance com a Clara quando ainda me chamava César, e por causa do qual ela engendrou o cenário semafórico para os nossos coitos. Um verdadeiro fetiche. Com a Lilicas é diferente…A Lilicas é uma mulher da vida, e, por ter chegado até aqui vinda do inferno, tem toda a eternidade pela frente. O inferno é uma porta ao lado do céu. É por isso que nos conhecemos tão bem. Até por causa da salsa para as pataniscas de bacalhau que um, quando o outro não a tinha em casa, lhe ia pedir.
Quanto à viagem de hoje, em primeiro lugar fui revisitar o primeiro romance, um livro feito por uma espécie de três blocos de escrita. Fui quase ao princípio, quando ainda ninguém percebia o que iria dali sair, com um funeral, o meu, no início. A seguir, ainda no mesmo livro, aparecia um homem soturno e sem nome, a pensar nos filhos, em chocolates e gravatas, bem como na ex-mulher, já para não falar na mãe, que, na altura e não sei por que estranhas associações de ideias, comparei a Maria Madalena. Prontos, como diria a Lilicas! Foi o suficiente para alguém, na febre de descodificações dos mistérios de Cristo, chamar à colação, por entre muitas outras a circularem por aí, a tese Madalenense, ligada à descendência de Jesus. Segundo essa ideia, algures na velha Europa, correrá sangue sagrado, associado, de uma forma ou outra, à demanda do Santo Graal. E, no tal romance onde a receita das batatas recheadas é falada, essa tese foi um bocado desvalorizada, por causa de Colombo e do tempo em que ele trouxe os tubérculos da América. Assim à primeira vista, havia ali uma incoerência temporal. Na verdade, nas traseiras de todo o manuscrito, tripartido como se o autor quisesse jogar às escondidas com a História, estaria, supostamente escrita pelo próprio punho de Maria Madalena, uma receita de batatas recheadas, mas cujo falso papiro o carbono 14 acabou por datar como pertencendo ao século XV e como sendo papel rafeiro. Foi então que a datação científica do manuscrito colocou a receita e a sua era mais ou menos de parte, apesar de continuar a haver por aí gente que ainda lhe dá crédito, nomeadamente os aficionados da descendência de Jesus via Maria Madalena, por quem, dizem, Ele se apaixonou perdidamente.
O poema que a minha criadora meteu no primeiro livro, assevera-me ela, foi a única coisa a atribuir à cópia daquela que é a vida de César e de Clara cinco por cento de dignidade. E o mesmo poema foi também a deixa para os autores inserirem poesia no livro do meio, o pontapé de saída por assim dizer …, como se toda aquela lírica de poetas famosos fosse uma poderosa lixívia capaz de branquear tantos disparates no tal livro entremeado, nascidos em cabecinhas ocas e empenhadas em expor obra de terceiros ao ridículo, obra que, além de tudo, por não ter sido publicada, nunca poderia ser conhecida do público. Muito menos deveria ter sido parodiada pelo livro do meio. A paródia não foi feita à homofonia e ao conteúdo de título semelhante de um outro livro, mas sim à escrita de outrem. Neste caso, da minha criadora… Foi para isso que serviram as runas do velho professor caquéctico; para revelar ao mundo o que o mundo nunca houvera visto, as cifras de um romance caído em desgraça por a autora ser uma Zé-Ninguém perdida numa terra de ilhotas e também pelos concertos lúbricos que, tanto eu como a Clara na versão Lilicas, dávamos na cama, onde romancistas curiosos gostavam de nos destapar os lençóis. A Clara e as amigas, com as cartas de Tarôt numa farsa de adivinhação, nunca foram tão longe, apesar de as banalidades ditas por uns e por outros serem idênticas.
Agora digam-me lá, mamã e senhores da editora que me atirou ao lixo e me resgatou a seguir, se sou o débil mental que Vossas Excelências apregoam por aí?
A mãe diz, apesar de tudo, ter gostado de me ver no livro do meio. Refletindo, sim, mas despido de tantas coisas negativas como as que ela me pôs às costas no dia do meu aniversário, quando me recusei a estar com a Clara depois de ela já me ter chateado o bastante para eu inventar um jantar com os miúdos. No ano anterior tinha engendrado uma reunião de condomínio, que nunca aconteceu…A mamã riu bastante com as minhas novas charadas. Além disso, no livro do meio, entre outras coisas, de fotógrafo amador transformei-me em profissional, de César passei a Gabriel, o anjo, conquanto o trabalho, quase todo ele, seja uma tortura, à excepção da fotografia.
Depois, de máquina a tiracolo e ao serviço de um antiquário, o amante da Lilicas, tive de viajar de norte a sul do país para conseguir boas fotos. Devo, por obrigação, ter uma boa relação com o homem. Até por, na obra anterior, na primeiríssima, o antiquário ser meu primo e um ex-assaltante de casas devolutas, para além um excelso ladrão de obras de arte.
Tenho então de continuar neste romance. Daqui a pouco vou jantar com a Sarita, a minha velha esposa, bem como com a turba abancada lá em casa. Não sem antes dizer o que andei a fazer na minha ausência: oficialmente fui a Coimbra a uma exposição de fotografia, no Alfa das 7h30, sozinho com os meus apetrechos de trabalho e com os pensamentos acerca de mim. Por ter já vivido tantas peripécias, sobretudo com mulheres a quem atraio como o mel atrai formigas, torno-me muitas vezes no objeto da minha própria reflexão. Tenho lá alguma culpa de ser bonito? Tenho lá culpa de despertar tanto interesse às mulheres? Isto de se ser a encarnação da beleza é uma maldição. Não há feiticeiro no universo capaz de a esconjurar. Só se me finar como queria a minha mãe de ficção, a primeira, a única, a que conhece tanto a cor do meu ranho em bebé, quando fui para Angola ao colo da Dona Josefina, como aquela que sabe com quantas mulheres coitei ao longo, tanto dos meus vinte e oito anos de vida no livro do meio, como dos meus quarenta e cinco no primeiro. O tempo e a idade em livros não interessam mesmo para nada. Ah! Coitei! Bela palavra, grande ato, no pretérito perfeito do indicativo! E como eu gostaria de, de hoje em diante, na hora em que em ação entra a diferença de um homem sobre a mulher, em vez de se usarem eufemismos tão desajustados como “fazer amor”, ou dar uma “queca”, se gritasse bem alto: Ó Brígida, ó Maria Amélia, Ó Joaquim, vamos coitar?! Mas, atenção!... É só um exemplo e nunca uma proposta de orgia, como o leitor, conhecendo-me tão bem e tendo-me como um grande amante de sexo, especialmente quando tinha o nome de César, poderia, desavisado e sem a antecedente explicação, ser levado a pensar.
Antes de dizer com minúcia por onde andei, tenho um desejo a formular ao leitor, a quem, sobre esta coisa do coito, peço encarecidamente que passe a palavra a amigos e conhecidos. O meu maior sonho é o seguinte: depois de tantas peripécias, inclusive no caixote do lixo de uma editora, desejo que o verbo coitar, o coito e todos os derivados façam escola por tudo o mundo, e que, quando algum estudioso da evolução semântica da fornicação em geral tratar do coito e dos coitados, faça alusão, com remissão inclusive para este romance, à Escola de César/Gabriel, um gramático do sexo que viveu… − esperem um pouco que tenho de perguntar à mamã o meu prazo de validade… − ela não quer dizer, para a surpresa ser maior quando traçar o resto do meu destino… Fica, pois, assim.
Enquanto toda a gente me julgava em Coimbra, fui, como já revelei, pedir um “empréstimo” ao meu dinossauro maternal. Trata-se de uma mulher do outro livro, a quem os parodiantes passaram por cima. Talvez só lhe tivessem ido buscar o ar roliço de mulher do campo… A fundação e a numismática atravessam tempos de crise, depois dos pequenos rombos formigueiros que lhe tenho aplicado… Por outro lado, o meu patrão antiquário desviou parte dos meus honorários com as fotografias para um empreendimento secretíssimo (convidou-me até para um cargo importante …) que, confidenciou-me, vai revolucionar o mundo. Mas prometi segredo. Por isso não posso adiantar mais nada…
É claro que o preço do meu financiamento no Banco Ambrosiano foi um coito rápido com a minha múmia.
Depois, ainda tinha de passar em casa da Clara, envolvida na altura, e já como se tivesse tido a premonição do meu desejo quanto ao coitar, num tratado sobre a matéria, particularmente sobre as nossas vidas enquanto exemplo vivo e ilustração da obra. Por causa das últimas desconfianças dela relativamente às minhas andanças sexuais por aí, quis sussurrar-lhe também umas palavrinhas…
Mas, antes, hesitei um bocado…
Às vezes, quando me lembro da Clara, sinto-me perdido no dilema do ovo e da galinha. De facto, não sei quem começou primeiro. Mas acho que fui mesmo eu… Aliás, posso ter sido, e fui, muitas vezes, vítima de assédio, tanto feminino como masculino… Contudo, no caso dela, dei o pontapé de saída quando falei com o Y sobre o assunto. Só que ela levou demasiado a sério a minha cara de anjo, a ponto de ficar encandeada por mim como se eu fosse um semáforo. Na realidade a minha vida está condenada a cruzamentos…
Depois, foi o que todos já sabem.
Hoje, contudo, a rapariga mostrou-se já, pareceu-me, embora possa estar enganado, mais tolerante com o meu vocabulário erótico. Até porque eu, em uma ou outra ocasião, abrindo caminho para a Escola de César/Gabriel acerca do coito, em lugar de usar com tanta frequência as parábolas de antigamente, fui mais científico e usei com rigor o coito e seus derivados. Nunca disse frases como aquela: ó rapariga, és boa como o milho! Também, na altura, estava com um bocado de pressa, por causa do compromisso com a minha nova mulher, e por isso fui bastante mais incisivo na ação do que na gramática...
No fim, quando acabámos, estávamos ambos com cara de dois felizes coitados, pudesse eu, embora, não ter conseguido desvanecer-lhe totalmente da cabeça as desconfianças que, sobretudo um certo bilhete de uma tal Lilicas Cláudia, lhe “ meteu” lá, para mal dos meus pecados.
Apesar de tudo, ela, a Clara, até já se preparava para passar o fim-de-semana comigo. Mas troquei-lhe as voltas. Disse-lhe que tinha de ir visitar os miúdos na minha identidade de César, e que a minha mãe tinha vindo de Paris. A verdade, porém, era outra, a tal nova mulher…
Agora devo ir para casa, regressar aos vinte e oito anos do romance do meio em que sou casado com Sarita, a quem o velho professor assustou demasiado com a minha doença. O jarreta, como se devem lembrar, é o homem da gabardina sebenta cor de rato, que, segundo a Lilicas, começara por ser cinzento claro. Desta mesma cor era também a gabardina de uma das minhas ex, a Carolina Woman in red, embora nunca tenha chegado ao ponto de ficar rata com o surro como aconteceu à do velho. A do homem passou a ser um trapo cuja lavagem ele impedia a todo o custo. Recorria sempre a um estranho ardil,  dizendo que o farrapo tinha sido banhado numa substância que o tornava invulnerável a todos os perigos, e entrava até em pânico quando alguém tentava meter a gabardina na água: era com medo de ficar com uns códigos de decifração de charadas que guardava no forro do albornoz destruídos. E tudo isso por causa de um elixir cuja descoberta andava a tentar há tempos sem atar nem desatar.
Quem for dado a superstições como o velho professor, só o facto de a cor da gabardina ser a mesma da gabardina de Carolina o deveria deixar como uma barata tonta tal como eu fico ao lembrar-me da Woman in red …. Esta é, em todos os romances em que eu possa entrar, uma das pessoas capazes de deitar por terra o meu prestígio de anjo seráfico. A Carolina seria um código vivo de desmistificação dos segredos de Gabriel muito mais poderoso do que as milhentas chaves que o velho professor possa trazer às costas. Também, transportar no forro do sebento farrapo os códigos de decifração dessa caterva de manuscritos espalhados por aí não é muito boa ideia! Imagine-se que, com as proezas dele, quando entra em delírio e fica a falar aramaico à custa de plantas aromáticas do género da Mimosa Hostillis, a Jurema do interior árido do Brasil, alguém se lembra de lhe deitar um balde de água pela cabeça abaixo julgando-o embriagado! A Humanidade perderia, decisivamente, a grande hipótese de desvendar os segredos ainda ocultos do Universo. Que prejuízo incalculável!
Quanto a Clara, a rapariga, parece-me, esforça-se na escrita. Sobretudo nos bilhetes que me escreve quando me chama Montanha Russa, ou, para ser mais erudito e na senda do latim, Montanëa, ficando o “Russa” para já assim,  até a minha criadora vasculhar lá no dicionário de casa um nomen  adjectivum que se lhe aproprie. E, com protagonistas iguais a nós, com a Lilicas pelo meio de botas esporadas, cintos, cabedais e carrilhões idênticos aos do Convento de Mafra, não me admiro que o novo tratado da Clara seja mesmo um renovado kama sutra, como aquele de uma tal Carla… A Clara chegou ao ponto de criticar até o kama sutra original quando um dia fui a Lisboa sem ninguém saber consultar um médico por causa da minha palidez, uma palidez, afinal, reativa e devida a nervos acumulados. Nessa altura fiquei então, diz-se, em casa da mulher, da Carla, que a minha criadora, a mamã, afirma ser nada mais, nada menos do que a Clarinha. Os senhores do romance do meio é que lhe modificaram (pouco, é certo) o nome. Foi para gozarem ainda mais com a Clara por ela ser tão pudica na cama quando, dizem, não passa de uma assediadora sexual de homens lindos como eu.
Convenço a mamã de que não posso ter ficado em casa de ninguém contra a minha vontade. Não gosto de dormir fora, longe dos Cristos do meu quarto que me protegem e tão bem sabem guardar os meus segredos de alcova. Naquela mudez pregada na cruz, um deles, um dia, serviu-me para guardar um pouquito de droga quando regressei de uma viagem à Tailândia. O interior da imagem, obviamente, era oco. Já o interior de Jesus é o interior mais cheio que conheço na minha ignorância de anjo… E eu aproveitei a estatueta como se ela fosse um guarda-joias ou um pequeno baú onde se guardam coisas de elevado valor como o pó branco.
Quanto à dormida longe do meu edredão, a mamã diz-me para ter paciência....

Continua
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« Responder #20 em: Abril 10, 2022, 22:57:45 »

E a saga continua...
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #21 em: Abril 11, 2022, 22:23:45 »

Imparável, na verdade....


No mundo não há vida mais atribulada do que a vida de personagem. Então a minha e a da Lilicas nem se fala, cada qual com as suas razões para  se ser um verdadeiro Cristo das letras. E, percebendo embora os meus queixumes, diz a mamã que daqui a pouco tenho de dormir mesmo em casa da Sarita. Remata, entretanto, afirmando ser o “pouco” aqui muito mais relativo de que em todos os outros lados. A minha criadora disse-me, numa conversa repleta de sigilo, que já sabe o meu destino. Contudo, não o pode ainda revelar porque, de outro modo, sem preparação prévia, seria um autêntico apocalipse. Não para mim que, de papel e vulnerável a golpes baixos, já me habituei a encarar a hipótese de me esfarelar na água, morrer no fogo ou ficar engelhado como uma rodilha. Talvez isso aconteça quando as papudas mãos de alguém amarfanharem as páginas onde me encontro, sabendo embora que, no borrão de tinta criado pela mamã, estará um anjo de grande valor no paraíso… Portanto, para não assustar com desgraças futuras quem quer que seja, ponto final… Era só ponto final e não reticências, mas o leitor também já tinha percebido.
Respondo-lhe que está bem. Contudo, também acho, já vai sendo tempo de deixarem de me pisar os calos. E ela, para me contentar, diz-me que por nada deste mundo vai deixar que me façam mal ou me matem, como ela própria fez no primeiro romance só para fazer valer a tese da Clara. Mulheres, é o que é… Quando o assunto é homem, mancomunam-se umas com as outras e são umas chatas.
Não é o caso da minha Sarinha. Ao tirar-lhe pela primeira vez uma foto, captei uma aura luminosa de um lilás vivo e com aroma a santidade. Essa foi a principal razão da minha escolha, quando decidi que aquela mulher seria minha, juntamente com o solar da beira-rio e as amostras gratuitas de remédios para atenuar as dores provocadas pela minha hérnia a ponto de me deixarem imprestável para participar com Sarita no fetiche do semáforo, que tão feliz a deixa. A minha mulher, toda ela é luz, uma luz refratada em todas as cores,  como um imenso arco-íris no céu onde a minha e a vida dela foram talhadas para, aqui na terra, se conhecerem e completarem uma à outra. Mal comparado, é claro, entre mim e a Sarita há uma similitude idêntica à de Jesus, o meu primo, e à de Maria Madalena, a minha prima por afinidade, embora a grandeza desta seja maior do que a da minha mulher. A santidade é tanto mais grandiosa quanto maior for o pecado. E, apesar de o livro onde nos meteram pela segunda vez dizer que ela tinha vindo de uma série de romances falhados, isso é a pior das mentiras. A Sarita caiu-me nos braços num estado tão virginal como se tivesse acabado de nascer. Eu, nessa medida, assemelho-me a um enfermeiro parteiro. Foi como se a segurasse nos meus braços nesse nascimento, com a firmeza que mostrei quando decidi casar com ela, uma mulher já um bocadito velho, como diziam os meus amigos. Isso dos amores mal-amados era com a Clara. A Clara é que tinha sido casada com um gay. E, pelos vistos, como ela própria me contou, quanto a homens era cada cavadela sua minhoca. Um pior do que o outro. Até a sua vida desembocar na minha. Pudessem os nossos tempos em comum não ter sido um oásis, pelo menos flores, tanto eu como ela, tivemos bastantes. Sobretudo eu. Sem falar nas que eu trazia da aldeia, rosas, senhor!, para enfeitar a jarra da cozinha,  antes disso, ou depois disso, tive um ramo à porta de casa quando a Clara, na versão mais moderada de Lilicas, me quis enviar simbolicamente para o reino dos mortos,   na altura em que me pôs les fleurs du mal na caixa do correio com uma cruz desenhada num papel… Já para não falar da mamã, que, para fazer o jogo dela, enviou para o meu funeral, o tal embuste literário, uma colecção de mulheres enfeitadas com outros tantos ramos, quando todas as minhas amantes se foram inteirar in loco da veracidade da minha descida à tumba.
Não sei se terá sido oportuno falar nisso agora, tendo, como tenho, um problema entre mãos para resolver,  se não forem mais… Mas a mamã diz-me, entre várias coisas, que não posso apresentar-me em casa dizendo simplesmente, “olá querida, cheguei, boa noite aos presentes e ausentes, os que conheço e os que ainda me hão-de ser apresentados no decorrer do romance!” Depois de ter andado fora todo o dia, com a minha máquina especial comprada com o primordial intuito de fotografar auras, tenho de ter uma justificação qualquer. Tenho, diz ela, de regressar de Coimbra, nem que seja com a foto de uma barata fossilizada no miolo do aparelho para o livro do grande chefe antiquário. Mas, de momento, não me ocorre nenhuma desculpa razoável para dar à Sarita se chegar de mãos vazias…
A mamã diz que me vai ajudar e manda-me a casa de uma amiga fotografar um piano. O instrumento, não sendo nenhum objeto religioso do tempo das cruzadas, é no mínimo uma raridade. O fabricante foi a Casa IBACH de Berlim e, daquele modelo, onde também existe a inscrição BARMEN, só há três exemplares no mundo. Um deles encontra-se num museu em Lisboa, e o outro, vejam só, era de onde saíam os acordes das sonatas de Wagner, com que Hitler se deliciava entre os intervalos dos coitos com Eva Braun e o tratado de destruição massiva dos judeus ao longo do período negro do anti-semitismo alemão.
Além do problema das fotos, a mamã diz-me o seguinte: quer eu, quer a Sarita, estamos fartos de cometer inconfidências pelo muito do que impensadamente dizemos. Tendo ficado mais ou menos pré-estabelecido que as personagens seriam de todo o lado e de lado nenhum, já falei demais quando referi a aldeia das Sete Cabecinhas. A Sarita já fez o mesmo ao mencionar Portugal como o sítio onde sempre sonhou viver um dia com um anjo como eu, Gabriel para uns, César para outros e, além do mais, um mulherengo sem remédio.
Remédio, remédio é o que agora a nossa criadora não tem para sanar os nossos deslizes. Já toda a gente sabe onde a nossa história tríplice de queridas e requeridas personagens decorreu, e ninguém vai tentar apagar quanto de inconfidente já dissemos. Além do mais, este país também merece por cá coisas grandiosas: o nascimento de uma criança índigo, uma sátira em tribunal com a acusação de escravatura, um lavar de roupa suja tão encardida!
Mas, talvez seja tempo de ir andando e dar vez à personagem seguinte. Pelos meus cálculos e utilizando o mesmo critério do princípio, deve ser a Clara. Primeiro porque tem de se dar primazia à antiguidade. Figuras do paraíso e do céu como Gabriel, Lilicas e Sarita, também são capazes de ceder a passagem a uma terráquea vingativa quando se irrita. Errat human est… E, como já atrás disse a propósito de Maria Madalena, quanto maior for o erro mais sublime será o arrependimento, sob o qual, ao longo dos séculos, têm nascido as maiores santidades.
Contudo, antes de ver que aves de arribação chegaram lá a casa para jantar e dormir, vou esconder-me junto com o meu todo terreno, recorrendo aqui e pela primeira vez ao sobrenatural. Pois se até um professor miserável, com uma gabardina a tresandar a sebo, é capaz de aceder a conhecimentos tão profundos de língua aramaica, como os que tem revelado nas suas viagens ao passado, não poderei eu, um anjo de alta hierarquia, ter o dom da invisibilidade para melhor conhecer a Humanidade e as suas aselhices? É só mais um prodígio dos muitos que me foram concedidos por Deus. Não se esqueçam, se fui concebido no coro de uma igreja, com a bênção de anjos e santos,  é porque havia nisso um propósito. Isso, na altura própria, será revelado… Não poderão restar dúvidas de que o mundo literário ficaria definitivamente mais pobre se personagens como César/Gabriel!... e Clara/Lilicas/Sarita nunca tivessem existido.
Agora fico na minha invisibilidade, a ver todas as movimentações da terra, do ar e até do rio, não vá andar por lá o meu bom amigo Santo António a pregar aos peixinhos que é feio parodiar o que pessoas desconhecidas como a mamã escrevem para as expor ao ridículo.

Continua.
Leiam também "O EStranho Fascínio da Internet, mas este terão de o comprar, porque de borla só mesmo este....

« Última modificação: Abril 12, 2022, 22:52:04 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #22 em: Abril 19, 2022, 23:07:13 »

Não é fácil ser personagem.
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« Responder #23 em: Abril 20, 2022, 22:25:42 »

Então estas, coitadas!



César

Então quem sou eu? Pois sou um homem versátil que serve todos os interesses.
Este breve lapso, enquanto tive de assistir à verborreia dos outros, deve ter sido por causa de ser um bocado sisudo, apesar de bonito como o Gabriel. A nossa geminação não é falsa. Fui concebido no mesmo ato de onde resultou Gabriel, embora, depois, ao longo dos romances da nossa vida, eu tivesse sido adoptado por uma escritora de meia tigela e o Gabriel tivesse ido parar a uma oficina de livros onde umas senhoras e uns senhores lhe deram um destino literário bem diferente do meu. O Gabriel nasceu para ir longe… Já a mim, Deus reservou-me a dita de ser apenas um homem com cara de anjo, enquanto ao mano lhe concedeu esse atributo por inteiro… Critérios, que não se devem discutir, como diz, a propósito de Deus, José Saramago num dos muitos romances que o levaram ao Nobel.
Bom, mas, como já sabem, não sou de muitas falas. Por isso vou cingir-me ao essencial.
Posso até estar enganado, mas o Gabriel ainda é capaz de surpreender muita gente… Como sou o seu espelho, conheço-lhe parte do íntimo, apesar de haver qualquer coisa nele que me escapa completamente…Razão tem a Clara quando diz que não me consegue fixar os contornos do rosto, e que tem medo de não me reconhecer se me encontrar na rua fora de contexto… Pois como não lhe haveria de acontecer isso se, nessas alturas é o Gabriel que finge ser César enquanto eu ando longe, em pensamento, a vaguear pela memória de todas as mulheres da minha vida, a coitar com elas, ao menos inspirando-me em cada uma delas, já que a Clara, na cama, em vez de ser a boazona que toda a gente anda por aí a apregoar, é uma desenxabida que me obriga a recorrer à imaginação para conseguir com ela um coito com alguma dignidade.
Verdade, verdade, não ressona, como a irmã dela, a Lilicas, que veio parar à minha alcova por via de um romance a que agora a minha criadora chama o “romance do meio”. Essa ronca como um escritor feio, barrigudo e, além do mais, com maus fígados, eventualmente por não ter nas letras o sucesso que julgava merecer, nem vender milhões de livros como a senhora do Harri Potter.
Quanto à Clara, não temos lá grande afinidade de gostos. Enquanto ela adora o preto e fica ofuscada com o amarelo, eu gosto do vermelho, cor que ela só usa para me agradar, apesar de já me ter dito uma vez que, metida num vestido dessa cor, se sente como uma mulher da vida a atrair os clientes à beira da estrada.
Ela poderia, simplesmente, ter dito, “puta”, mas, como é doida por eufemismos, inventa frases bonitas para me impressionar, já que, quando não é o Gabriel a fazer-se passar por mim, eu, terráqueo dos quatro costados, solto a língua até ao mais graduado dos palavrões, enquanto ela se limita a inventar literatura de cama para almas pudicas se deleitarem. A minha linguagem é um bocado mais forte…Gosto assim. Tanto como gosto do vermelho. Além de que tudo quanto digo à Clara na cama, durante o, o…, como aquelas tiradas do milho, é puramente enfático. Trata-se de um gongorismo barroco de quem acha não haver nada para dizer nessas alturas. O amor, aquele das musas e dos poetas, toda a vida foi uma grande treta. O dito amor não me deixa nem mais nem menos erudito do que aquilo que sou ou deixo de ser em todo o lado. Inclusive debaixo do meu edredão.
Não sei se isto já foi dito aqui por mais alguém, mas, como já viram, este romance é uma enorme balbúrdia, em que a lógica é idêntica à da banda desenhada: um cão pode ficar esmigalhado no chão como um tapete sob os rodados de um camião, para, logo a seguir, emergir para a vida com todas as gotas de sangue no lugar devido. Portanto se não lhe perceberem a intenção não faz mal, é porque deve ser mesmo assim…
Quanto ao amor, apesar da paixão freudiana pela minha mãe, não sei o que isso é, como, pelos vistos, ela não sabe. Até pela forma ligeira como se livrou do meu pai e pela alcunha de Maria Madalena que eu próprio, baseado em factos reais, lhe pus, com muita pena minha agora que nem eu, nem ela, nem o resto das personagens temos sossego. Mesmo o meu padrinho, aquele que esteve na origem do meu nascimento, quando rasgou a traseira das calças nas obras do campanário, foi chamado não sei quantas vezes à colação no livro do meio por causa da inócua “porra” que proferiu na altura de um malfadado rasgão nas calças. Só para chatear, mais nada! E pode a minha criadora ser uma escritora de um escalão inferior das letras, mas vê-se claramente que era mesmo só para gozarem com todos nós, incluindo com ela. Tantas vezes escreveram a palavra “porra” que não me atrevo a mencioná-la senão aspada. Os senhores do romance entremeado disseram não ser grande vocábulo para obras literárias, e, por isso, não quero manchar esta paródia do romance roubado. Mas lá que o tal calão mal-educado lhes encheu a boca ao longo do primoroso livro da broa é verdade! Foi como se estivessem todos a deliciar-se, como eu me deliciei com o pudim francês em casa da Clara, quando tentei entrosá-la na economia da luz eléctrica desligando-lhe as lâmpadas acesas superfluamente. Isso tudo acontecia no tempo em que eu e a rapariga coitávamos esporadicamente. Era quando ela ainda desconfiava pouco de mim e enfeitava a jarra da minha cozinha com rosas, nos meus momentos de encarnação masculina da Rainha Santa Isabel. Era também quando eu trazia aqueles pães enormes da aldeia, cujas côdeas a deliciavam na mesa da cozinha, onde comíamos a sopa fresca das quintas-feiras feita pela mulher-a-dias e ela apanhava um frio de morte nas costas nuas por causa do metal das cadeiras. Nessa altura andava eu na recolha de apontamentos para um livro que sempre quis escrever. Compilava as minhas recordações, tentando contactar as pessoas da minha vida até à idade real que tenho, aquela que só assumo quando estou distraído. Não sei porquê, tiro sempre no mínimo um ano aos meus Invernos, porque quem tira grandes nacos de tempo às Primaveras costumam ser as mulheres…E eu gosto de estabelecer diferenças…
Também a Lilicas, mais um dos meus flirts, desta vez com algo simultaneamente de paraíso e de inferno, além de aldrabar no nome, diz quem a conhece desde o tempo das fraldas que já lhe viu três certidões de nascimento. E fiquemos por aqui… Quero, sem perda de tempo, falar do manuscrito que acabou por ir parar ao caixote do lixo de uma editora:
Nesse Verão, convidei a Clara para ir comigo desenterrar, numa aldeia remota,  a minha viva professora primária reformada,  por quem tive uma paixoneta adolescentina. Era a festa da aldeia das Sete Cabecinhas. Ela tinha ensinado lá as letras a raparigas e rapazes da minha idade, mas nenhum tão lindo como eu. Foi ela própria a confirmá-lo perante a Clara. Eu continuava bonito como sempre – disse então – apesar de inicialmente não me ter reconhecido, quando me fez engolir em seco ao pensar na Clara como a minha nova companheira depois de me ter divorciado da Patrícia. Na verdade, embora a Clara não estivesse tuberculosa, sempre a vi mais como uma espécie de dama das camélias, a quem, uma vez por outra, levava aos concertos da fundação, onde ela nunca tossia por muito frio que o ar condicionado lançasse na sala. Tão pouco batia palmas quando não devia entre os andamentos da música. Por isso, tive de informar a minha antiga mestra da real situação da Clara, só uma amiga, respondendo-lhe de rajada às perguntas que ela me fazia do mesmo modo sobre tudo e mais alguma coisa: onde trabalhava, a idade, filhos, porque é que a minha mãe não tinha ido comigo e por aí adiante. Nesse momento descaí-me e pus em cima da mesa, metaforicamente falando, o meu bilhete de identidade. A Clara, um dia, igualmente enquanto figura de estilo, com as manias dela de Ágatha Christie, também tentou “furtar” o meu BI com o fim indómito de decifrar pelo menos um dos meus mistérios, a idade. Os outros subterfúgios, sobretudo quantos se relacionavam com o feminino e que me referenciavam como um grande mulherengo, só muito mais tarde os descobriria, e, ainda assim, com a ajuda de terceiros.
Encontrámos a velha professora numa casa cheia de franjinhas de plástico à porta como se fosse um talho de carne fresca. Devia ser por causa das moscas dos burros e das moscas de Verão. E foi também aí, dentro da casinha, a coberto da investida dos velhacos insectos, a páginas tantas, que a minha querida professora nos presenteou com um melão fresco e com um vinho delicioso, que alegraram a alma de quem a tinha. Eu, pelos vistos, sou pouco almado… Contudo, ao meu corpo em geral e às minhas papilas gustativas em especial a merenda soube maravilhosamente. A receita da mestra, o vinho e afins, depois, num outro livro, foi usada para dar de beber a um professor amalucado, a uma luciferina Lilicas e a um ex-inspector reformado, convocado à revelia do sistema para solucionar um crime de morte. De facto, embebedaram mesmo a rapariga com tanto licor. Já os outros comparsas ficaram mais ou menos sóbrios, por estarem habituados a emborcar doses superiores àquelas na maior parte das vezes. No livro do meio, numa reunião com uma mulher, a bruxa (sessenta por cento a minha professora) levada a cabo com o firme propósito de o professor regredir à condição de homem apto a conhecer coisas sobre o período aramaico, uns e outros evocaram ainda as sequelas que tinham ficado na curandeira por causa do inspector. Tudo por, um pouco antes da reforma dele, a bruxa se ter prestado a um papel na arte de entretenimento. Tinha tirado a roupa ao som de música e por causa disso tinha sido muito maltratada.
Vejam só, a minha professorinha a morar numa casa com franjas à porta e uma curandeira a viver numa semelhante, embora térrea. A arquitectura já teve melhores dias em Portugal. É difícil entender o facto de as personagens do romance intermédio terem ido desembocar na casa da senhora. A menos que ela fosse dotada de personalidade dupla, ou tripla, e se dedicasse, de dia a ensinar criancinhas como eu,  e de noite a entreter homens a braços com graves problemas de erecção, eventualmente suscetíveis de cura por via de umas ervas milagrosas ou de bruxedos tirados do Livro de S. Cipriano. Deve ter sido por isso que a minha querida mestra nunca se casou. Não se entende bem a coincidência entre as duas mulheres, ao menos na questão das bebidas. Mas, haverá coincidências por aí, nesse mundo de Deus, o excelso padrinho do meu irmão Gabriel? E como se pode entender que a César, ou seja, a mim próprio, apenas tenha calhado para padrinho um homem com um problema entre mãos no dia em que rasgou as calças no traseiro sendo nós gémeos? Foi, por certo, descriminação do Altíssimo. Sempre ouvi dizer que os irmãos gémeos nunca deviam ser separados…Deve ter sido mesmo para o Gabriel, na sua delicada condição de anjo divino, ter acesso a conhecimentos impossíveis de adquirir de uma maneira mais humana…
Mas eu, embora terreno, calado e sereno, não venho para aqui pôr ao léu os podres da minha vida. Sobretudo se as enzimas e os fungos salpicarem terceiros com os resquícios de mim próprio, que, como toda a gente sabe, comecei por ser um feio cadáver bem diferente do tempo em que a vida me pulsava através dos poros com a força de um vulcão em frenética atividade.


Continua.

Leiam também "O Estranho Fascínio da Internet", mas este tem de ser comparado. Que diabo, preciso de ganhar um dinheirito para tomar café de vez em quando.
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outono


« Responder #24 em: Abril 30, 2022, 18:16:05 »

César pôe os pontos nos is, sem papas na língua.
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« Responder #25 em: Maio 01, 2022, 23:54:00 »

Não deixa nada em branco.....

continuação

César


Diz-se por aí que a Clara, depois de eu lhe começar a cortar as rédeas, se fartou de me chamar amoral, por causa de eu ter uma coleção de números de telefone, e de presentes simbólicos oferecidos pelas minhas amantes quando não tinham dinheiro para me dar nos períodos de falência absoluta. Igualmente terá afirmado que me é indiferente a mulher com quem possa coitar. Dizia também que me pareço com um cão, apesar de eu presumir, com fortes probabilidades de não me enganar, que essa malévola suposição tem o nome de Carolina woman in red. Essa é forte! Mas, apesar de tudo, um cão é o mais fiel de todos os animais da criação, e eu, no fundo, tenho de entender isso como um elogio, uma espécie de hino à fidelidade, porque, perante uma mulher em cada momento, comporto-me sempre como um fidelis rafeiro, que nem sequer se dá ao trabalho de atender os telefones quando eles entram em histeria colectiva. Não penso em nada mais.
A excepção era a Clara… De facto, com ela era obrigado a dar largas à imaginação sobre outras raparigas, para não arriscar um coito desprovido de condimentos e impeditivos daqueles ahs! de prazer,  como quando se está a beber uma refrescante bebida numa noite de calor.
Não sei o que é que o Gabriel tem andado por aí a dizer da Clara. Mas é bom não se alongar muito porque a Clara é um problema meu, conquanto o problema dele seja mais a Lilicas e Sarita…Apesar de eu também já ter tomado o lugar dele em várias ocasiões, como fazem os verdadeiros gémeos... Este romance é uma orgia pegada, uma espécie de cama para toda a gente. Aqui todos se podem divertir à grande e à portuguesa, sobretudo os leitores mais dados às coisas eróticas, e que não fiquem indignados por eu estar, num livro para toda a gente ler, a tratar de uma matéria tão bíblica e com tantos adeptos em todos o mundo, possam embora os livros sagrados de uns e de outros ser diferentes.
Com a Lilicas já tive um petit dejeneur delicioso,  e com a Sarita fora aquela história do semáforo,  a que às vezes acho alguma graça nesta minha vida sempre em trânsito, mas  é bom ela não se entusiasmar muito quando está comigo. Tem de se deixar de dizer que quer morrer em mim, ou frases do género na eminência do ou durante o orgasmo. De outro modo, um dia arrisco-me a vê-la acordar derretida como chocolate mole, e eu só poderei sair da beira dela de escafandro. Mas o pior nem é isso: a grande dificuldade seria como explicar ao Gabriel por que é que ela tinha morrido nos braços, além do mais em roupa interior, ou mesmo sem roupa nenhuma, como é mais habitual. Ele que fique com ela! Mulheres já me chegam e sobram! Irra! Basta de assédio! Por outro lado, Gabriel é o marido da Sarita, um homem jovem a quem os donos do romance do meio fizeram uma plástica ao bilhete de identidade, tirando-lhe anos suficientes para perfazerem quase outra maioridade. Mas nem por ter apenas vinte e oito anos Gabriel é mais bonito do que eu nem mais competente. Ele, até por ser casado com uma mulher vinda directamente da Bíblia, com a lagartixa da Lilicas a tiracolo como ele traz a máquina fotográfica, devia ser comedido nas palavras. Isto se é ele quem anda a alimentar este cochicho sobre o outro eu dele próprio. Ele um anjo por inteiro, e não apenas um homem que, de anjo, só teve direito à cara! Mas não… Tudo não deve passar de conversa de mulheres… Principalmente da tonta da Clara. Como todas as outras, a Clara sempre bebeu o ar que eu respirava. Por mim seria capaz de passar uma tarde inteira com senhoras aborrecidas numa reunião da Tuppwrere,  só para me comprar uns plásticos onde eu pudesse guardar a sopa feita pela mulher-a-dias às quintas-feiras,  e que um dia azedou como a Clara azedou comigo. As saias são mais dadas a falatórios do género dizendo o que é e o que não é. Incluindo a mamã… Mas, agora a mamã já aceitou várias vezes ser desmentida por esta mistura de César/Gabriel quanto ao facto de, um e outro (podia dizer a trindade mas falta cá um…) serem acusados de muitas coisas que nunca fizeram, nem sequer em sonhos coloridos.
A Clarinha, depois, como já devem ter percebido, transformou-se num demónio. E eu, para não chamar aqui mais entidades maquiavélicas, vou chamar-lhe simplesmente Lilicas. É um bocado ao jeito dos senhores que a querem ver continuamente nos braços do ex-inspector,  a manejar os cintos e a fazer ranger os cabedais para ver se o homem sai, definitivamente, daquela erétil apatia em que mergulhou no estrangeiro, nos manuais de história universal e após uma aposentação prematura. A ser verdade quanto dizem do homem, aqui já não se sabe o que é verdade e o que não passa de embuste puro, até eu, confesso, chame-me César ou Gabriel e imbuído de uma profunda solidariedade só passível de encontrar entre os homens, não me importarei se a Lilicas vier a dar umas “coitadas” com a criatura. Não sou invejoso, e gostava de o ver deixar definitivamente aquela atitude compulsiva de estar sempre a lamber os dedos quando tem de virar a página das revistas pornográficas, sobretudo porque elas, em princípio, meio e fim, são de minha propriedade exclusiva. Não é assim, mamã?
Gabriel comungará certamente dos meus ideais terapêuticos para com o ex-inspector, e, mesmo a Sara, com o seu ar assexuado e jeito de rapaz, poderá, com tácita autorização do marido, contribuir para o milagre, depois se se levantar, como um Cristo ressuscitado, o morto que o homem tem no meio das pernas. A Sarita, a ser assim, transformar-se-ia numa espécie de realizadora de filmes ao jeito de Spielberg quando ordena peremtoriamente:
- Acção!
Não sei se já me estou a repetir por, eventualmente, todas as outras personagens terem referido questões com as quais esteja a massacrá-los de novo. Mas, quando há desordem em sua casa, leitor, é capaz de encontrar, no meio da balbúrdia, por entre a mistura de peúgas sujas e lavadas, copos para um lado, pratos para outro, um parzinho de coturnos certinho e, além de tudo, sem estar roto? É claro que não. Por isso, desculpe. Isso acontece-me a mim presetemente. Não sei de nada. A história de César resvalou para uma loucura desenfreada. Todos acorrem à procura de coisas, manuscritos, roupas, louças e baús que tenham a ver com Cristo. É como se estivéssemos em época permanente de saldos, sobretudo quando se trata de relíquias semelhantes à túnica Dele ou ao cálice da última ceia. Vê-se, por detrás desta procura frenética, que os esquartejadores de romances mergulharam afanosamente na época queirosiana. Deve ter sido para ver como o escritor tratava as suas múmias. Tinham de extrair para o romance do meio um significado que fosse assemelhável às andanças de Cristo. Como o livro do meio não passa de uma reciclagem feita por um batalhão de escritores sem imaginação, todos precisavam de escrever com muita consistência e de deixar, o menos possível, semelhanças com o livro parodiado. Nenhumas, de preferência. Não conviria muito deixar o livrito como uma espécie de gato escondido com o rabo de fora. Mas aconteceu isso, apesar de tantos cuidados. Há no livro do meio tantas coisas idênticas à minha primeira vida!... A começar na gabardina sebenta de um velho, a que uns misteriosos banhos químicos confeririam proteção contra maus-olhados. Ela é, na verdade, em tudo semelhante à gabardina da Carolina, ao até à da Clara… E se num livro a peça de vestuário era de bom gosto, no outro não passa de um farrapo escanzelado como um cão. Tudo para chatear a mamã! Acreditará, caro leitor em coisas tão estapafúrdias como num banho de impermeabilização contra maus fluidos? Se sim, então deve estar a necessitar urgentemente de uma boa terapia cerebral! Ou, então, deve precisar das mezinhas de uma curandeira inscrita no sistema fiscal para o curarem de uma doença semelhante à da “morada aberta”.
No meio de tanta loucura, deixem-me ao menos as imagens de Cristo intactas na cómoda do quarto, que o professor velhote andou também a admirar quando se espantou com Jorge Luís Borges, em espanhol, antes de saber do defeito da obra. Tal como a Sarita tem fetiche por semáforos, eu sou louco por Cristos, que aqui talvez devessem levar letra minúscula por não ter lá em casa, como gostaria, um Cristo verdadeiro, se me excetuar a mim próprio. De facto há uns tempos a esta parte tenho vindo a sentir-me um autêntico Cristo… E deve passar-se o mesmo com Gabriel, ou não fossemos nós sangue do mesmo sangue e carne da mesma carne.
Continuo, todavia, sem perceber a razão pela qual tanto se tem especulado sobre a infância de Jesus, só porque Clara, já transformada na serpente Lilicas, andou a dizer que a minha meninice deve ter sido a génese da minha personalidade hipersexuada e distorcida, doida por todos os géneros de óperas lúbricas. Não era isso que ela comentava com o colega do escritório, ao fim da tarde, depois de ter selecionado empregados e enquanto ambos tomavam a bica do dia? Mas, nessa altura, ela já estava totalmente azeda comigo. Por isso não admira…Não sei o que quer tanta gente saber mais de Jesus e de mim próprio, quer me chame César ou Gabriel. A minha infância teve, como a Dele, mãe e leitinho em vasilhas frescas. E se quanto a mim ninguém duvida de que tenha tido também uma chupeta de borracha, ao fim de uns meses de chupadelas preta como breu e cheia de cotão, já quanto ao Menino Jesus, quem esteja no seu juízo perfeito nunca tentaria a decifração da Sua meninice através de uma mama tão falaciosa como uma chupeta. Um Jesus que se preze, conhecedor de tudo e mais alguma coisa, nunca aceitaria ser enganado por uma mama tão seca.
Depois a vida do professor é uma vida de doido. O homem está completamente maluco. Regressar ao passado e ver uma chupeta como o pontapé de saída para descobertas inéditas sobre Jesus, só mesmo de alguém em estado adiantado de regresso ao passado. Só uma deslavada meninice seria capaz de considerar a sua própria chupeta como a mama artificial do Menino Jesus. E numa altura destas já poucas coisas que esse viajante do tempo diga devem ser levadas a sério. O resultado de todas essas patranhas está à vista: tudo culminou numa abominável tragédia, com sangue e fogo a sair pela boca de não sei quantas metralhadoras e num livro que, num concurso de ridículo, onde a Sátira do Livro Roubado também pudesse ter participado, o ganharia por unanimidade, mesmo se o júri fosse constituído por um exército inteiro de um país como Portugal.
Não sei se fui eu ou o Gabriel (irra!, isto aqui é uma confusão dos demónios e já ninguém sabe às quantas anda!) a dizer que a nossa mãe biológica abandonou o marido, o meu pai,  quando eu tinha uma idade quase ainda de meses depois de virmos de Angola. Urge, contudo, repor a verdade: ela só deu com os pés ao velhote quando eu tinha uns tenros seis anos e uma beleza muito prometedora, apesar de nessa altura parecer um bezerro desmamado. Só passados mais tantos anos como os meus de então é que a mãe biológica deste Cristo foi para França. Nessa época não precisou de ir a salto porque a emigração já era legal. Se levou algum salto foi nos sapatos, embora toda a gente, depois de a conhecer e de falar dois minutos com ela, diga que lhe foge sempre o pé para o chinelo. Segundo várias opiniões, é um bocado bruta. Mas eu gosto dela mesmo assim. Até por ter herdado especialmente da Dona Josefina este corpo que me confere o estatuto de Adónis. É como se tivesse vindo nas asas do tempo e da mitologia grega para me desfazer em fluidos no corpo de todas as mulheres terrenas, possam elas não passar às vezes de sacas de batatas mal atadas ou de velhas com a cara a precisar de goma-arábica. Tenho de prosseguir na minha missão de mulherengo. É para um dia ter uma alma que não seja apenas a alma de um cão, indiferente à fêmea com quem copule, ou, segundo a Escola de César/Gabriel, simplesmente, coite. É um verdadeiro karma e não o posso alijar das costas, tal como faria com um sobretudo num dia de muito calor. Tenho de aguentar. Misturar personagens dá nisto tudo. Toda a gente fica confundida, até nós próprios. Se a mamã escritora me tivesse posto só a mim, César Augusto, a falar sem opiniões de ninguém, nem mesmo do Gabriel, pelo menos nos assuntos familiares não haveria por aqui tantas incoerências. Mas como tem de manejar os cordelinhos de uns e de outros, como se fossemos pequenas marionetas, não admira a balbúrdia.
E agora, mudando de assunto:
Eu posso ser um bocado mentiroso, mas à woman in red, com quem o meu affaire foi um pouco mais estreito, contei toda a verdade sobre a minha vida. É fácil conferir isso com ela, apesar de, quando conversávamos os dois, tudo ter um carácter bastante mais trivial e muito menos solene do que aparece por aqui. Se há na narrativa muitos enganos, o culpado deve ser o Gabriel: por ter menos dezassete anos do eu, fez confusões temporais suscetíveis até de enlouquecer o leitor. A ponto de podermos um dia vir a ser processados por falsos testemunhos, danos materiais e danos morais em grande parte dos leitores.
Depois, muitas coisas acerca da mana ninfomaníaca têm de ser lidas com esta pequena adenda, senão não fariam sentido! Embora ela, mesmo assim, tivesse podido mamar até quando lhe apeteceu, enquanto a mim, antes do seu nascimento e por razões óbvias, me ter sido retirado esse privilégio! E não foi em França que ela andou na escola foi na aldeia de onde a minha mãe abalou com a filha pela mão. Nesse tempo, se a universidade de alguém tivessem de ser sacrificada era a das raparigas. Desde o paraíso, de onde agora apareceu esta Lilicas igualmente ninfomaníaca, tinham, todas elas, a missão única e exclusiva de andar de vassoura em punho, cozinhar e remendar os coturnos rotos do marido e dos filhos.
Resquícios dessa época encontram-se ainda bem vivos na Clara e por isso ela me convidava para comer as receitas que engendrava numa casa iluminada sempre de alto abaixo como se vivesse todo o ano enfeitada por inúmeras árvores de natal. É boa dona de casa, a rapariga, embora possa cometer, de vez em quando, como qualquer cozinheira, pequenos deslizes na cozinha, o que aconteceu no primeiro dia em que fui jantar à casa nova dela e o assado ficou pouco apurado, por deficiências do fogão novo ou por aselhice dela, enquanto eu aproveitava para lhe apagar as lâmpadas e fui, depois, tomado por um Drácula disfarçado e com horror à claridade. Boa cozinheira é também a Sara, a quem os pais deram uma educação tradicional, apesar de já temperada com os ventos do século XX. Adotaram-na de uma família pobre da Bíblia para ela poder estar na linha da frente contra as pandemias do novo milénio, num país pequenino como Portugal mas onde os escritores, incluindo os que se dedicam à paródia de romances alheios, ombreiam com os autores de todo o mundo. E não sei qual a razão por que o gémeo Gabriel contou à esposa coisas acerca da Clara, nomeadamente a história da iluminação, para eu, depois, quando estou a trair o meu irmão, ter de levar com aquelas luzes a piscar… A ponto de, recentemente, ter optado por só coitar com a Sara com os óculos de sol na minha “cara de anjo”. Esta foi uma alcunha posta pela Clara quando a nossa relação já cheirava pior do que um cadáver com alguns dias de sepultura. Antes disso, eu era Montanha Russa, obviamente por lhe deixar a cabeça a andar à roda.  
Estou sempre falar, ora, na Lilicas, ora na Sara, ora na Clara e não há maneira de me dedicar por inteiro à “Clarinha”. É por causa dela que andamos todos a penar como condenados em três romances. E sendo assim tenho de aproveitar para a desmascarar o mais possível.

Continua...

Leiam também, por favor,  " O Estranho Fascínio da Internet" mas este tem de ser comprado
« Última modificação: Maio 02, 2022, 00:26:12 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #26 em: Maio 11, 2022, 15:14:33 »

  (Irra!, isto aqui é uma confusão dos demónios e já ninguém sabe às quantas anda!) César dixit!
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« Responder #27 em: Maio 16, 2022, 13:05:14 »

A saga continua, Nação valente

César

A mamã diz-me para ser breve no meu direito de resposta porque, dentro de pouco tempo, a Clara estará aqui a dizer de novo as razões dela, como num tribunal de comarca, lá quando eu era o santo da fundação de numismática e fotógrafo apenas em part-time. (A propósito, nunca tirei nenhuma fotografia à Clara… Nem mesmo quando ela me brindou com aquela teoria de que se houvesse laços fortes entre o modelo e o fotógrafo as películas captariam isso…).
Enfrento de novo a minha criadora com coragem e digo-lhe que, se as outras personagens já tiveram oportunidade de falar duas vezes cada uma, ela terá de me compensar com igual tempo de antena. Não sou, quero demonstrá-lo, nem o cobarde nem o mentecapto apregoado, quer pela minha criadora, quer pela Misse Clara, quando ainda não tinha de encarnar papéis duplos e triplos nas segunda e terceira réplicas.
Logo no início do romance parodiado, a mamã pôs-me com ar sorumbático, em frente a uma mesa de vidro, onde a biografia de uma mulher infeliz como Maria Calas me fazia companhia no dia do meu aniversário… E só agora penso na minha sorte!… Não sei por que não se terá lembrado a minha criadora de acrescentar a todos os itens negativos com que me descreveu mais um. Neste caso o de necrófilo, quando deixou o cadáver de uma mulher morta há tantos anos à minha mercê, ali sobre a mesa dentro das páginas de um livro. Ainda bem!.. Ao menos escapei dessa ignomínia. De contrário, passaria a não haver sobre a terra uma única pessoa capaz de gostar de um homem que, para além de qualquer mulher lhe servir, não se escusava ao contacto com uma morta, em cima de uma mesa transparente e, além de tudo, com estatuto de diva.
Mas, agora sou eu a desafiar a mamã: porque não, através da arte de engendrar situações em que os escritores são exímios, trazer até mim, viva e sem doenças de amor, a divina, para, juntos, encetarmos uma história de amor, sem a traição de que ela acabou por ser vítima com o grego? Eu, embora não seja rico como ele, nem pouco mais ou menos, sempre sou mais bonito, e tenho, inclusive, ascendentes na mitologia helénica, de que o divino Apolo e o belo Adónis são expoentes máximos. Talvez ela não viesse a finar-se com a alma mirrada pela solidão, depois de o homem a ter trocado por outra mulher, igualmente infeliz, calando-se para sempre uma voz de deusa vinda directamente do céu para encantar terráqueos como eu. Para a ver feliz de novo, mas, desta vez, a meu lado, seria até capaz de fazer intervir sempre o Gabriel nos momentos de intimidade. Não só por ele ser anjo como ela, mas, sobretudo, porque sempre tem, apenas e só, vinte e oito anos. Para uma mulher ser cortejada por um jovem tem uma importância decisiva, levanta-lhe o ego, fá-la sentir-se especial. Oh!, como a Humanidade teria a lucrar com isso! Era bom poder acontecer uma coisa assim. Se um regresso destes fosse possível, eu, César Augusto, contentava-me em ouvir Calas a todas as horas do dia e da noite, e desta maneira teria impedido um velho rabugento de tentar apropriar-se do título de uma ópera lírica para dar o nome a um elixir que tentava a todo o custo descobrir, o tal elixir que era a última esperança de o homem poder transformar a sua cara encarquilhada de figo seco num delicioso pêssego e quase sem caroço. Falo, é claro, no tio-avô da minha ninfomaníaca Lilicas.
Agora, em maré de confidências, tenho de admitir, como aliás já fiz, que desde bem cedo a Clara me passou a aborrecer.
Ela, apesar de ser direta a maioria das vezes, julgando-me tímido, nunca se referiu ao meu vocabulário erótico. Mas eu percebi rapidamente que não lhe agradava muito. Sempre teve aquelas maneiras poéticas de encarar o coito e todos os coitados, que, por causa de meras questões linguísticas, andam anos e anos a jejuar. Seria o caso dela se eu não tivesse tido a ideia de comentar com o pintor acerca da rapariga sem homem no concerto. O goês, o cigano, com quem a Clara tinha a chafarica do Gabinete de Psicologia, tenho a certeza, nunca foi para a cama com ela, como insinuaram os senhores do romance do meio, quando a mascararam da Lilicas Solas e Cabedais, a rapariga sadomasoquista com quem pretendem que o ex-inspector se cure, definitivamente, do problema de falo descaído.
Julgo eu, a Clara já se encarregou de narrar a história do nosso primeiro encontro, e de como nos relacionámos ao longo dos quatro mil e trezentos e vinte minutos da vida de casal nascido para o fracasso. Cedo começou ela a tresler comigo, quando eu, naquelas férias, com a vida toda revolteada, não lhe atendia o telemóvel. Nessa altura, estava com um amigo no solar da aldeia, que comprei expressamente para lá instalar a minha mãe e para captar auras num estúdio de fotografia avançada. A minha disponibilidade era, por isso, reduzida. Não sei que minhocas entraram na cabeça de Clara, além das que já lá havia, num dia que o nosso coito, contrariamente ao habitual, foi mais rápido. Mas isso foi porque a mana mais nova, a francesa, vinha de Paris. Embora a “vinda” da irmã fosse mais uma desculpa para me desalinhar do convívio com a Clarinha. Eu tinha conhecido uma nova fulana, e, sem saber ainda se teria sucesso na conquista, aproveitei a “comida” da Clara, sempre mel e açúcar enquanto me pedia, eufemisticamente, julgo eu, que não morresse sem lhe dizer adeus…
Nunca percebi o significado daquilo. Talvez ela, por artes estranhas, quiçá semelhantes às do velho professor tio-avô da Lilicas quando regressa ao passado, soubesse antecipadamente que, além de uma hérnia discal, eu trazia também o destino de me finar como um bacalhau, seco por causa da maldita hepatite. Felizmente tudo se revelou uma grande fraude…
Certo, certo, dois dias depois do nosso tête à tête, a Clara utilizou o velho truque do telefone, ligando-me sem falar para o fixo na suposição de que eu não conseguia descodificar o número. Estava convencida de que o meu telefone tinha saído como brinde num pacote de detergente, dentro de um saco plástico, quando, afinal, eu tinha uma central telefónica avançadíssima em casa. E, além de ver num ecrã o número de quem ligava, ainda podia gravar mensagens. Depois de ela telefonar e desligar, ora para um ora para outro telefone, descobri de imediato o truque. Era a Clara detetive e, tal como Agatha Christie esmiuçava a vida das personagens suspeitas nos seus romances, ela andava à cata dos meus eróticos calcanhares, geralmente de grande envergadura.
Nesse dia, nunca mais atendi o telefone.
Isso deixou-a uma verdadeira leoa enraivecida. A ponto de, na manhã seguinte, provavelmente depois de uma noite inteira sem pregar olho e a mancomunar que maldade iria fazer-me, me colocar umas flores na caixa do correio, à entrada, tornando-me depois e mais uma vez no bobo de um quarteirão inteiro.
Nada a que não estivesse habituado. Uma coralista, a Alzira, fez-me coisas bem piores....
Nada a que não estivesse habituado. Uma coralista, a Alzira, fez-me coisas bem piores. Após ter furtado as minhas chaves de casa, um dia apareceu-me lá dentro, disposta a dar-me uma monumental sova. E isso só não aconteceu porque a Carolina woman in red chamou a polícia, salvando-me das garras daquela outra doida.
De facto, só tenho encontrado malucas…
E é por coisas assim que me acham cobarde? Quero ver se vocês estivessem no meu lugar, com um furacão a assolar-vos por todos os lados, da cabeça aos pés, sem contemplações por nenhuma parte especial do corpo, se não recorriam a todos os meios como eu fiz! E fiz a primeira coisa de que me lembrei, ligar à Carolina…
No dia imediato, providenciei a mudança da fechadura. Troquei-a por uma forte o suficiente para até a Clara dizer que aquela porta parecia o ferrolho de uma cadeia. Era quando eu, de pijama, tinha de a levar, no elevador, à saída, para ela ir dormir a casa. Os vizinhos eram todos muito medrosos, especialmente a velha coscuvilheira para quem um dia a Clarinha me chamou a atenção. O prédio, depois das nove e meia da noite, transformava-se num verdadeiro bunker, inacessível a Alziras e a Claras que não fossem devidamente convocadas por um morador. Ao menos na minha casa era assim. Não sei se algum dos outros condóminos tinha uma vida tão movimentada como a minha. Mas julgo que era tipo único… A beleza não andou por aí a desperdiçar encantos. Sou encantador mesmo e até tenho cara de anjo.
Agora, enquanto Gabriel, o meu querido irmão e anjo inteiro, está invisível,  a espiar os movimentos suspeitos perto da casa da sua querida Sara, prestando também atenção ao velho rio,  não vá dar-se o caso de andar por lá Santo António a pregar aos peixinhos, vou entreter-me um pouco. Disponho de cinco ou seis minutos de sossego. Não tenho nenhuma mulher a assediar-me, e por isso vou reler a biografia da divina Calas. Não há como embrenharmo-nos na vida de alguém famoso para, ao menos imaginariamente, fazermos parte durante alguns instantes de uma existência cujo talento apreciamos. A ponto de quase extrairmos dele o nosso próprio talento. Embora eu não possua aquela voz de rouxinol que sempre e ainda hoje me fascina… Os meus talentos são outros, sou exímio nas artes de alcova, no desvio de dinheiro e, já agora, sou um fotógrafo competente. A ponto de ter sido escolhido por um colecionador de obras arte para fotografar os tesouros antigos existentes por esse Portugal fora, que, além do mais, no anterior romance, era meu primo e uma ave de rapina de coisas valiosas. É para não dizer ladrão...
Já quanto aos poemas, vou deixá-los por conta de Sara, cuja sensibilidade levou o meu querido irmão Gabriel, o anjo de corpo inteiro, a consorciar-se com a bíblica mulher, não sendo todavia de esperar do matrimónio, devido à avançada idade dela, sequer um filho para amostra. Só se Deus interferir no assunto e recorrer ao sobrenatural, em que eu ainda não acredito nem sei se algum dia vou acreditar.
A Clara deve estar a assomar por aí. Tenho de entrar na câmara do meu recolhimento temporário e tentar entretanto elaborar o rascunho da minha próxima intervenção no romance.
 
Continua

Leiam também O Estranho Fascínio da Internet, mas desta vez tem se ser a pagar

« Última modificação: Maio 18, 2022, 13:14:05 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #28 em: Maio 21, 2022, 21:13:47 »

Este César iá teve muito tempo de antena. Que venha o contraditório.
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« Responder #29 em: Maio 21, 2022, 22:26:28 »

É verdade....



Clara
Meu Deus, tanta escrita! Terão as outras personagens deixado alguma coisa para eu dizer?
Pegando nos mais recentes rabiscos da história, vejo que o último a falar foi César, o único, o verdadeiro, aquele para quem eu era boa como o milho, mas que, neste novo romance, deu o dito por não dito. Pelo visto não passo de uma rapariga insossa, com quem só à custa de muita fantasia conseguia um coito “com alguma dignidade”. Palavras dele. O seu aparente “travo” na língua, julgo agora, não passou de uma técnica de conquista semelhante à que usou no primeiro romance, quando se referiu a duas portuguesas malucas em França, uma delas casada, razoavelmente saciada pelo marido nessa manhã, que até prescindiu de coitar com César só para a solteira se derreter como manteiga de cacau nos braços do nosso querido anjo universal.
Se a generosa mulher portuguesa/francesa soubesse que o anjo copulador tinha nascido com um vulcão no sítio onde não devia haver sexo nenhum, não tinha deixado escapar a oportunidade de ir ao céu com ele, quando, de manhã, nem sequer tinha, com toda a certeza, estado à porta do paraíso com o marido. Com um Adónis como aquele, por quem todas as santas e santos eram capazes de virar a cara, só para terem nem que fosse por um instante um pequeno vislumbre de beleza diáfana e concentrada numa única pessoa, a solidária criatura nunca devia ter estado. Os olhos também comem e o homem dela não devia passar do b a bá habitual…
Quanto à conversa entre as raparigas, o estupor nem uma palavra disse sobre o facto de a língua materna dele ser a mesma de Camões. Nem antes, nem depois de… Ao que sei, elas quase tinham tirado à sorte para ver quem iria guardar os fluidos dele, de sangue inclusive, se por acaso arranhassem as costas ao rapaz. Mas sobretudo de sémen, para quando os ventos da história e a evolução da ciência precisassem de analisar tudo e mais alguma coisa e ver até que ponto, naqueles sagrados húmus, não andava alguma parentalidade com Jesus. Principalmente quando César passou a encarnar a personagem de Gabriel, um anjo de corpo inteiro, mas, mesmo assim, com os pés demasiado bem assentes na terra para não rejeitar nenhum vestido que lhe aparecesse pela frente. O filho de uma égua, depois de saciado por uma das raparigas, limitou-se a ir para a casa de banho rir das moças, enquanto elas pensavam ter comido um francês louro e de olhos azuis. A outra mulher, a generosa, ao menos imaginariamente, também não deixou, com certeza, de se banquetear com César à grande e à francesa.
Ainda vou levar o Gabriel a tribunal. Não me comparando à minha irmã Lilicas, sou uma mulher habilitada a induzir, num cara de anjo ou num um anjo completo, uns ais de prazer, que, na escala de um a dez, teriam a cotação máxima. Embora, como já disse, a Lilicas Cláudia, ou lá que outros nomes e idades tem noutros tantos bilhetes de identidade, seja bem capaz de rebentar com a pauta. Interpretando os sinais acerca da sua personalidade, bem podemos esperar que os seus êxtases eróticos-vaquicos incomodem os ouvidos do tio-avô, um professor alienado por causa de uma planta, com um efeito semelhante ao da Jurema brasileira, e com ambições de plebeu que aspira à salvação da humanidade.
De causar arrepios é também o caso de um ex-inspector traumatizado pela virilidade perdida no meio dos livros de história de arte, folheados em Londres no tempo de todas s pesquisas. E mais dramático será ainda o que se há-de passar com a minha irmã, a Sarita, se um dia sonhar que a cabra da Lilicas lhe anda a papar o anjo. Vai cair-lhe definitivamente o queixo, que ela tenta segurar lá em cima, à custa de cremes e inúmeras injecções de botofe. Mas o problema é dela. Também quem mandou a Sarita casar-se com um rapaz com idade para ser seu filho? Toda a gente sabe, o moço, quem o quiser ver feliz, é ao lado da mãe. Sobretudo quando se sente perdido, no meio de pessoas como uma tal Carla, a grande reformuladora do velhíssimo kama Sutra. Todos avisaram a Sarinha, aconselhando-a a limitar-se a umas “coitas” com Gabriel. Mas ela não deu ouvidos a ninguém. E, na minha opinião, ainda vai sofrer muito por causa disso.
Agora, quando eu esperava fazer definitivamente as pazes com César, começou ele a sujar a minha imagem de boazona, mas nem tanto, dizem os senhores do romance do meio, com toda a imparcialidade que a provecta idade lhes confere. Depois de termos penado tanto, eu, César e todas as personagens do primeiro romance, era o que devia acontecer, ficarmos amigos. Todos fornecemos qualquer coisa para os parodiantes comporem nova gente de papel, e o livro II nasceu assim como uma manta de retalhos. Por isto e por causa disto, tinha pensado em exorcizar com César, ajudado pela bondade de anjo dele, o tempo em que a minha vocação de Lilicas maquiavélica soçobrou, perante uma Clara encandeada pelos olhos do seu aristocrata gato francês, substantivo e título honorífico tão do agrado do meu príncipe dos anjos. Não falo do gato René, não senhor. Esse pertencia mesmo à oficina dos livros, para onde ia dormir, quase todas as tardes, regaladas sestas e quando, depois, se dedicava a dar concertos de mio encarrapitado em pilhas de literatura. Assim, pensava eu redimir-me perante César, o meu actual Gabriel, o meu Sol, o meu Mar, e, por entre tantos mares que há por aí, esperava que ele fosse, ao menos por momentos e outra vez, o meu Mar dos Sargaços ou a minha Montanha Russa, como eu lhe chamava depois nas cartas que lhe enviava roída de remorso por tê-lo virtualmente “matado”, enterrando-o a seguir com uma cruz na caixa de correio, onde não faltaram “Des fleurs du mal postas nas campas dos defuntos a título de choro e de homenagem. No entanto, querendo César, parece, eternizar os nossos enfunos, vou seguir-lho o exemplo limitando-me a narrar os factos.
Depois do “assassinato” na caixa do correio, transformei-me numa viúva negra à espera da última hora, e pedia tanto a César que me perdoasse o vexame como pedia o mesmo a Deus, que, bem vistas as coisas, era mais o Diabo. Implorava-lhe para me levar até ao Seu reino. Neste miserável mundo de paixões e vilezas, só havia lugar para mim se decidisse continuar com os propósitos de Maquiavel, iniciados na fatídica noite do truque dos telefones.
Passei um Natal em completa abstinência de açúcares, e, na noite de consoada, empanturrei-me de couves e de bacalhau, por sinal bastante salgado. Isso obrigou-me a beber um bocado mais de vinho, e, pela primeira vez na minha vida, enfrentei o Menino Jesus na Missa do Galo com uma asa, não só com um, mas com vários grãos. Só queria esquecer o mal causado, e tive medo de que César, ou Gabriel, seja, se risse do cartão que lhe tinha enviado dias antes, estendendo os votos de boas-festas a todos os natais da vida dele. Era como se um de nós fosse morrer realmente, em princípio eu, que, por aqueles dias, para ter direito a funeral, já só me faltava o caixão, porque a cara era mesmo de enterro.
Ele, o meu anjo, respondeu-me com toda a generosidade. Embora o tenha feito num escrito sucinto. Era poupado na escrita como nas palavras. Economizava sobretudo na energia eléctrica, visto que tinha sempre extremo cuidado em não manter muita luz acesa para evitar o desperdício.
Depois, passados uns dias, já o Novo Ano era crescidinho, surgiu o telefonema dele. Foi numa altura em que as minhas plantas, murchas até aí e completamente solidárias com o luto da dona, arrebitaram as orelhas, quando o visor do meu telemóvel mostrava, sem margem de erro, que o meu perdão tinha por fim acolhimento na alma do meu amor. Daí a pouco convidava-me ele para ir lá a casa assinar o tratado de paz, que certamente iria ser selado com um coito destinado a figurar na história como o ex libris dos armistícios.
Entretanto prometi, a Deus e ao céu inteiro, jamais magoar aquela criatura sagrada, de novo a abrir-me as portas de casa e da alma, que, esperava eu, se tivesse enchido mais durante a minha ausência, deixando-me, daí para a frente, sem motivos para duvidar de que Gabriel, o meu anjo, não era nenhum pobre de espírito nem um amante exacerbado de sexo.
Era Inverno, e, depois de tanta chuva no coração, apareci-lhe embrulhada até ao pescoço numa gabardina que me tinha custado os olhos da cara, já velha, mas em bom estado e limpa. Não tinha nada a ver com a do tio-avô da Lilicas, que, por causa dos códigos para decifrar a pandemia dos manuscritos sobre Jesus entre os homens, fedia como uma doninha. Além do mais, uma doninha morta.
É claro que os tempos das côdeas na cozinha voltaram. De repente ali estava eu, depois de ter pensado nunca mais entrar naquele santuário dos Cristos. Eles estariam agora, provavelmente, com atenção redobrada a todas as nossas exéquias na cama. Afinal eu já tinha dado provas de que me podia transformar numa demoníaca Lilicas, podendo enveredar de novo por mortes virtuais ou, eventualmente, por bruxedos de modo a desviar definitivamente do caminho do meu amor todas as outras mulheres. Incluindo a Sarita.
Contudo, não demorei a perceber, as coisas continuavam como dantes. Talvez até pior porque eu tinha colado na testa o rótulo de “ A matadora do correio expresso”. E isso deveria ter levado César a redobrar os cuidados quanto a possíveis ataques malignos vindos da minha pessoa. Por outro lado, Gabriel, no tempo em que eu chorava amargamente pela maldade Baudelairienne, sem contar com a Sarita, devia ter conhecido um quintal de raparigas. Foi, com toda a certeza, para afogar o desgosto de alguém o querer ver morto antecipadamente sem ele ter experimentado todas as mulheres que o destino lhe devia.
Quanto às outras coisas, tudo permanecia igual, e já nem falo na toalha das riscas vermelhas... Continuava pendurada no varão, à espera do próximo uso. Era ainda a mesma, mas que os senhores do romance do meio teimam em substituir por um roupão da mesma cor para Lilicas avançar sobre o anjo em todo o esplendor da sua luxúria. Ao que parece, a Lilicas, se as coisas correrem bem e ele não cair em tentação, será o passaporte para Gabriel ascender a estruturas hierárquicas mais elevadas no Olimpo… Segredos…
Já eu própria, nesse primeiro dia, no Ano Novo, fui outra vez boa como o milho…
O César que não venha agora estragar-me a reputação, lá por actualmente se chamar Gabriel, ter vinte e oito anos e ser casado com a “mãezinha” Sarita, a quem eu não confiaria um diagnóstico sobre mim, nem mesmo que padecesse de uma vulgar constipação. Que raio de médica é aquela que permite a um velho maluco atirar sobre o marido vaticínios de morte só por causa de uma palidez dele, Gabriel? Nem sequer consegue enxergar que a cor de Gabriel é a mesma do amarelo seráfico dos serafins e dos anjos? Tenham dó! E, depois, para que servem os exames complementares de diagnóstico? De facto, aquele hospital é uma autêntica casa de doidos, um covil onde vão cair, sobretudo ao bar, os desempregados espertos e doutorados, como algumas tontas que andam por lá, depois de o canudo não lhes servir para nada em mais lado nenhum. É só por vaidade! É o caso da rapariga dos “cimbalinos”. Foi para lá só para lhe chamarem doutora e ser admirada como a boazona lá do sítio!
César continuava, no início daquele malfadado ano, a ser aquele homem que, por todas as razões e mais alguma, devia ser riscado do mapa das minhas ambições. Comigo manifestava-se como o mesmo retardado mental de sempre. Só pensava em coitar, e, a cada telefonema, lá tinha de andar a toalha das riscas vermelhas numa roda-viva, com os Cristos no quarto a servirem de testemunhas às exéquias. Não só do nosso crime lúbrico, mas talvez de dezenas deles, incluindo o da Lilicas, porque, com a Sarita, tudo passou a ser legítimo quase logo no primeiro instante em que os olhos de ambos se cruzaram.
Era altura de ir embora. O César nem atava nem desatava. Eu apaixonada como uma burra sem cabeça, e ele, impávido e sereno, a ver, sempre que podia, a cor da minha lingerie, quando, depois do coito, eu ficava com cara de insossa e com uma sensação de vazio, que o rapaz, de todo, não tinha atributos para preencher. O potencial dele circunscrevia-se à cama e, além de tudo, a uma cama com vocação de cama rolante, em que muita gente podia dar uma volta, como se fosse a uma feira popular andar de carrossel. Sentia-me autenticamente o era e não era quanto a este anjo profundamente sexuado por quem, apesar de tudo, continuava obesamente apaixonada.
Comecei então a soltar a veia epistemológica e a escrever cartas sobre cartas à minha “Montanha Russa”, já mais ou menos a desmoronar-se, carregadas de eufemismos que o César confessou não entender. Dizia-lhe eu, entretanto, “tenho de acabar com tudo”. Eu amando-o desesperadamente e a pedir-lhe constantemente um gesto, uma atitude inequívoca de que Clara C. C. era o seu único amor. Como resposta, obtinha sempre um lacónico nem água vai nem água vem, possivelmente por ele ter medo de molhar a cama, quase sempre o local das conferências.
Depois era o seu silêncio, uma tortura, mais um riso cínico e uma conversa bacoca, quando, de início, decidida como uma verdadeira Maria da Fonte, tentava arrancar-lhe qualquer coisa susceptível de me dizer que a Clara não era só a 11ª letra cê do seu álbum de recordações, depois de uma Carla, não contando já com alfabetos estrangeiros capazes de estragarem a minha ordem no catálogo, mas sim a única, a mulher especial com quem ele gostasse de repartir as côdeas do pão e enfeitar a jarra da cozinha com rosas.
Nessa altura não sabia eu, já a Sara, na dimensão que não se toca nem com um dedo cá deste lado da fantasia, andava a toda a pressa a tratar dos papéis do casamento.
Enquanto isso, a mana ninfomaníaca insinuava-se também junto de um ex-inspector aposentado, a quem queria aplicar a versão de “ Lilicas Solas e Cabedais”. Para o nosso anjo colectivo guardava a rapariga o “doce” que havia em si, sabor que o pobre do goês pau de canela não apreciava. O negócio deste, ao que tenho ouvido dizer, era mesmo o pornográfico, e a Lilicas queria converter isso em sadomasoquismo puro como último recurso para o mal do homem.
Eu não sabia, nunca soube, aliás, quem era verdadeiramente aquele cara de anjo que me tinha calhado, depois de ter assistido, com uma porção de testemunhas, a um concerto de música clássica numa fundação dedicada ao dinheiro antigo. Tudo era, senão segredos, pelo menos silêncios e, desde bem cedo, eles me puseram a cabeça às voltas e a imaginação a trabalhar à velocidade da luz, mas já com os devidos ajustes que a física quântica introduzira à teoria da relatividade. Se tivesse tido um pouco mais de paciência, tudo teria sido, talvez, diferente. Contudo, em tão grande rodopio, não me dei a mim mesma a oportunidade de voar até ao céu, à fábrica onde se fazem os anjos, para poder compreender os mecanismos e todas as rodas dentadas de que Deus faz os seus entes celestiais. Sim, não segui por aí, com muita mágoa minha…
Mas, leitor, como vamos entrar na parte sórdida da minha vida, deixo isso a cargo da Lilicas, se a mamã não se importar, porque a minha personagem acaba de fazer uma boa estirada. Estou olimpicamente cansada e a precisar de um céu para repousar deste corrupio.
A minha criadora diz que sim. Será a Lilicas a narrar a história de um romance pantominado, depois de a mamã ter imaginado já o seguinte: deve andar por aí muito escritor a lambuzar-se à custa de escrita alheia. E ela espera não se encontrar com algumas dessas criaturas em nenhum lado. Nesse caso esconderia delas a carteira, como a esconderia de vulgares ladrões que quisessem meter lá dentro os seus dedos de garfo para lhe surripiarem umas notas. Ao menos para se “inspirarem” quando a sua imaginação fosse de férias para o Algarve apanhar banhos de sol e água quente.
continua

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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
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