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Autor Tópico: A Sátira do Livro Roubado ( texto registado na IGAC)  (Lida 19524 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #45 em: Julho 18, 2022, 10:36:29 »

Coitados, mesmo


Parece já não haver dúvidas de que o livro do meio só está escrito daquela maneira devido às personagens da mamã. O livrito dos pantomineiros, com tantos exemplares vendidos, até poderia ter o mesmo título, mas nunca por nunca teria aquela trama se não fosse gente de papel como a velha coscuvilheira do andar de cima da casa de César, a sensualidade de Clara e do mano César (ou de mim próprio, já agora, quando tinha quarenta e cinco anos, antes do tempo e da idade que tenho agora terem andado para trás). Os ingredientes estavam lá todos. A começar por uma mãe mais ou menos pecadora e parecida com Maria Madalena por quem César tinha verdadeira adoração; um pai boçal que se expressava, em grande parte das situações da vida, com essa mesma boçalidade herdada por César; um padrinho que, por causa de umas calças rasgadas, teve a espontaneidade de dizer “porra,” para terceiros glosarem em circunstâncias distintas num livro do futuro. E já para não falar em expressões como macaquinho, ou o meu comentário de não ter culpa de ser bonito, tão idêntico àquele em que César, meditando, dizia para com os seus botões serem-lhe as mulheres mais ou menos indiferentes por já ter andado com milhentas. Tudo para o achincalhamento de uma escritora que só não foi gratuito porque todos se fartaram de ganhar dinheiro à nossa custa.
Depois, eram os Cristos no quarto de César, a infância de César, a vida pecaminosa de César, o A César o que é de César por aí adiante…
A mamã diz-me para me deixar de conclusões, ainda mais ou menos precipitadas e dá-me um pequeno raspanete. Atira-me à cara que já estar a ver há muito as minhas preferências pelo primeiro livro. Não é mentira nenhuma… Provavelmente, tudo se deve à circunstância de eu ser sensível, talvez por causa da minha perene palidez e por ter horror a cadáveres. Também não posso com assassinos, embora haja lá no livro primogénito um morto. Logo eu, mas na pele do mano mulherengo. O meu fraco é, sem sombra de dúvida, pela primeira história. 
A minha mãe literária ordena-me com voz áspera para não perder tempo. Há ainda muito trabalho pela frente. E, apesar de, na véspera, ela ter quase dado a entender ao Professor que ele hoje não iria à biblioteca dos livros vindos do Brasil na bagagem de um homem ilustre da terra, como castigo pelas suas “bocas, ” terá de ir lá.
Se não houver mais contratempos, vou ficar em casa com duas mulheres ainda meio atordoadas com o efeito da Jurema. O mesmo vai acontecer com o prisioneiro do quarto dos fundos, partilhado com o Professor ou com a alma gémea deste, que, pelos vistos, é um Agricultor dos antigos.
A verificar-se a intermitência das personalidades, entrando e saindo na pele umas das outras, o meu dia promete ser movimentado. Tendo aqui três mulheres distintas e uma só verdadeira como a trindade divina, cada uma a mostrar as suas acrobacias na cama, vai ser bonito. Uma a ligar o semáforo, outra a imaginar vergastar as minhas costas com o comprido chicote onde a minha hérnia se ressentiria com os vergões, e outra ainda a dizer que quer morrer nos meus braços se, por acaso, não cristalizar nos períodos em que queria matar o César com sida, com hepatite B ou lá o que é. Eu e o mano velho somos também uma única personagem. Mas, neste momento, isso não interessa para nada.
O Professor já saiu de casa. Queira Deus que não mude bruscamente de Professor para Agricultor. Até porque, não conhecendo esta terra, o homem da hortaliça poderá perder-se pelos caminhos do Portugal rural onde os campos de milho crescem em extensão, abundância e, quase poderia dizer-se, malignidade.
A minha Sarinha, depois do pequeno-almoço, parece estabilizada nela própria. Diz-me que vai dar um passeio e não a posso impedir. É mesmo melhor ela não estar aqui até eu conseguir arranjar uma história verosímil (ou mesmo a história verdadeira…) para justificar a presença do Pombo-Correio cá em casa antes de ela o descobrir.
A Lilicas tem passado estes últimos instantes a retocar as unhas das mãos e dos pés, ainda de roupão vermelho vestido. Como está ainda meio tonta, olha para mim como se tivesse dormido um sono de séculos, atroando o ar com roncos nocturnos que a deixaram apática e sensaborona. Ainda bem. Basta ter de a aturar logo à noite, se ela entretanto recuperar da letargia.
Sara já regressou. Passou pouco mais de hora e meia desde que saiu e vem aflita. Informa-me do rapto do Professor e diz-me que, de quanto ela tem conhecimento do livro do meio, foi o Antiquário, o meu patrão das fotografias. Não sabe para onde o levaram e também não quer saber. Afinal, o homem deixou-a preocupada com a minha saúde quando foi a ponto de insinuar ser a minha palidez uma espécie de morte anunciada.
A Lilicas parece não dar por burro nem por albarda. Nem mesmo por causa do tio-avô estar por esse mundo de Deus, num lugar lúgubre, quiçá com uma mordaça na boca e até com algemas nos punhos. Já para não falar num eventual arraial de pancadaria no corpo moído de onde sobressai a cara de figo seco com que Deus o malfadou.
Digo à minha queria mulher para se acalmar e peço licença à autora para fazer um pequeno intervalo. Nesta altura dos acontecimentos, a Sara estará em melhores condições para descodificar o sentido das coisas. Sendo desta terra, tem por força mais conhecimento da vizinhança e poderá até ajudar na investigação. Será melhor a mamã não deixará surgir nela a personagem de Clara, por me parecer que a da minha mulher, neste momento, lhe deva ser mais útil. A mamã tem um excelente sentido de oportunidade.
Estou liberto. Sara vai substituir-me por alguns instantes. Que nunca a inspiração lhe acabe. Já começo a ficar farto de tudo…                                             







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« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:34:38 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #46 em: Julho 24, 2022, 16:15:40 »

"O bicho homem nunca mais aprende"...pois só aprende o que lhe dá jeito, e nisso é perfeito na imperfeição. Grande César.
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #47 em: Agosto 12, 2022, 18:59:47 »

Pois não, só na cova....





Sara

Não sei o que me passou pela cabeça, estou meia zonza. E, de hora a hora, sinto-me mais preocupada com a palidez do Gabriel.
Às vezes, quando me lembro de quem me alertou para a situação, o Professor, fico um pouco revoltada. Mas, depois, refletindo bem, devo agradecer-lhe o aviso. Assim poderei procurar ajuda junto dos meus colegas, uma vez que as doenças infecto-contagiosas, a minha especialidade, pouco me poderão ajudar no diagnóstico. Para mim, visível, visível, só mesmo a hérnia que lhe atacou os lombares. Todo o resto passa-me um pouco ao lado. É o drama da especialização… não dá duas para a caixa bem dadas no resto do cardápio das doenças. Gabriel, por sua vez, também não ajuda nada com aquela atitude de não ligar minimamente ao assunto.
Hoje procurei “o Gordo”, o meu colega, que, tal como a Clara antes de largar o tabaco por causa da asma de César, fuma como uma chaminé. O Gordo farta-se de dizer mal do velho,  que agora me encheu os ouvidos com os supostos males de Gabriel. A ponto de ele o achar uma espécie de bruxo, até com o suicídio de uma rapariga às costas inclusivamente, lá por causa dos métodos nada ortodoxos de diagnóstico,  antes de o expulsarem do necrotério literário onde prestava serviço.
Se me perguntarem quem é esta gorda personagem masculina, digo que se trata de uma manta de retalhos. Neste caso, de pedaços de papel. Se a tal organização das Placas Tectónicas do Novo Mundo lhe paga as despesas, telemóveis, portagens, almoços e deslocações, isso torna-a idêntica a César, o ex da minha irmã Clara. O César, agora meu marido com o nome de Gabriel, da fundação onde trabalhava,  usufruía das mesmas benesses que o “Gordo” recebe pelos seus trabalhinhos. A diferença é a proveniência do dinheiro. No caso do monte de banhas a massa vem de um Antiquário, um morador numa zona chique do país e objecto de constantes provocações, como aquele mais ou menos depreciativo “queque ”, a que já se habituou a resistir mesmo vindo do “Gordo”. Este colega e meu antigo apaixonado não deixa de ser um complexado. Para se sentir gente, teve até de se inscrever na Organização das Placas. Julga poder vir a dominar tudo e todos, se algum dia os Tectónicos descobrirem os planos da pólvora seca, que supostamente tem Jesus como detonador. Esta obesidade ambulante não sabe como fica ridícula com o colar das pedras preciosas, certamente furtadas do manto e da coroa da Nossa Senhora das Sete Cabecinhas. E se o Professor, que me incutiu na cabeça o mal do meu marido, é, ou pode ser, um vigarista, este outro bando a que o Gordo pertence não deixa der ser igualmente uma quadrilha de ladrões.
Depois, a rapariga com quem ele vive, a que trabalha lá no bar do hospital, é semelhante à última namorada do meu marido, antes de ele morrer com hepatite num hospital lúgubre, quando andava noutra dimensão, quando tinha quarenta e cinco anos e biscates a torto e a direito. A moça, minha ex concorrente, especializara-se em alcova num bordel espanhol. A dita rapariga é a mulher do Gordo, que se intitula como mais uma licenciada desempregada que sempre quis agarrar um doutor de verdade. Entre ela e a Lilicas não há grandes diferenças… E, entre César e o Gordo, existe a beleza de permeio. O César é lindo como o meu amor e o Gordo é gordo. Além de feio. Mas, igualmente, entre um e outro venha o diabo e escolha! Nenhum deles pode ver um par de pernas que fica logo a suspirar por despir o vestido à dona.
Nestes livros todos não faltam personagens a fazerem simultaneamente o papel de amantes e de mães, como a maioria dos homens gosta. Incluindo Gabriel, para quem às vezes não passo de uma mãezinha. Com a preocupação que me obrigou a recorrer ao “Gordo”, é como me sinto, uma mãe em duplicado. Até porque o doido do meu antigo professor foi raptado e não sei onde o encafuaram…O meu faro policial diz-me que o homem não deve estar longe do solar, mas é melhor perguntar à mamã.
Ela manda-me para casa. Tenho de me inteirar dos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, além de ter também de pôr um emplastro Leão nas costas de Gabriel o mais depressa possível. Sob pena de o rapaz, durante os próximos dias, não se endireitar, para prejuízo de toda a gente. Fico intrigada com a revelação da mamã sobre o que ainda não conheço, mas tenho de continuar a ser uma personagem obediente e uma boa dona de casa. Já eram assim todas as mulheres da Bíblia, de onde fui tirada, talvez do Antigo Testamento. Já não sei a quantas ando. Acho que me esqueci de tudo. Estou um bocado cansada. Deve ser a velhice a começar a atormentar-me…
Antes de chegar à mansão, confronto-me com o Antiquário e com o velhote, o Professor. Este reclama estar a ser vítima de um engano torpe. Afirma que não é, nem nunca foi professor de nada nem de ninguém, dizendo não passar de um pobre agricultor a tentar limpar a honra de uma sobrinha maltratada por um bando de escribas mal-intencionados a mando de uma editora que quer ter nas bancas a sátira do ano. O Professor torcia-se e retorcia-se enquanto era levado à força pelo Antiquário e eu fugia a sete pés. Vi de muito perto a possibilidade de ser sequestrada também. E assim tive conhecimento em primeira mão do rapto.
Quando chego a casa encontro Lilicas a escanhoar as unhas, tanto das mãos como dos pés. Com tanto raspar os dedos, ainda vai ficar só com os cotos, e depois não poderá pegar com mestria o chicote de dominadora sádica. Não sei o que terá acontecido. Contudo, a sanha de mulher do demo, parece-me, encontra-se perfeitamente neutralizada. Ainda bem.
Antes de projectarmos fazer qualquer coisa em prol do Professor, do Agricultor ou lá o que é, o meu amor, pedindo licença à mamã, conta-me então todos os estranhos acontecimentos da noite. Sobretudo fala-me das minhas batatas recheadas, de que tantas vezes tive de escrever a receita em latim para não ficar vulgarizada. Fiquei um bocado zangada com a autora por ela ter acrescentado a Jurema ao prato, confesso. Mas ele diz que foi para evitar umas mortes neste romance, que o tornariam num livro mal-assombrado. E ela tinha acrescentado que, para más assombrações, tinha bastado o primeiro romance, aquele de onde nos tiraram quando eu era Clara e o Gabriel era César, o Professor Agricultor e a Lilicas apenas o desdobramento de Clara. Já para não falar das outras personagens, aqui, como em todo o lado desta tremenda saga da sátira, a limitarem-se a viver papéis secundários, e, quantas vezes, tristes.
Com o maior apreço pela heroicidade do meu anjo, depois de ele andar, toda a santa noite, a transportar às costas as mulheres desta casa de um lado para o outro, coloquei-lhe o emplastro para ver se a hérnia deixava de o aborrecer durante um bocado. Foi quando fiquei a saber do Pombo-Correio escondido no quarto dos fundos.
No meio de tudo, eu pensava em como era bom viver numa terra agrícola, onde o milho abundava e chegava, tanto para gente como para galinhas, patos e perus, cisnes e gansos. Sobretudo chega também para o nosso mensageiro comer, depois de se ter auto transformado em pergaminho e num valiosíssimo documento da antiguidade, presentemente a viver enclausurado na alcova do Professor.
Agora, meu anjo, ajuda-me, porque tu foste o único a não provar o sabor da Jurema nas minhas batas recheadas. Por isso, continua. Estás sóbrio e já tens a permissão da autora. Eu rendo-me, como sempre, aos teus encantos, e bebo, sôfrega de amor, as tuas palavras.



continua
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:44:45 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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outono


« Responder #48 em: Agosto 22, 2022, 14:11:15 »

Vacas magras à solta?
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« Responder #49 em: Agosto 23, 2022, 17:32:56 »

À solta a ver se encontram uma nesguinha de erva ao lado de um riacho cantante, Nação Valente




±


Gabriel

O problema do momento nesta casa passa pelo desaparecimento do velho. O meu medo é que, no meio disto tudo, uma velha jeitosa lhe deite a luva e lhe surripie o dinheiro da conta bancária,  em detrimento dos familiares verdadeiros, quer ele seja um profissional do ensino ou um homem da agricultura.
Como a Sara é nada e criada nesta terra, além de ser uma moça por quem o “Gordo” teve uma paixão, pergunto se o apaixonado dela, por vingança, não estará metido no sequestro. Até para me eliminar e retomar a vez na candidatura à mão da minha querida esposa. À Sara isso parece absurdo, porque, hoje mesmo, ele lhe disse, relativamente à minha suposta doença, que precisava primeiro de exames para emitir um diagnóstico correcto, embora, um bocado à sorte, tivesse atirado sobre a minha palidez a hipótese de eu ter um linfoma, por aí num sítio qualquer do meu corpo lindo. A minha mulher ficou um bocado assopapada, mas foi só. Se o Gordo quisesse ver-me morto, não precisava de me curar primeiro para me matar logo a seguir. Esperava que o bicho cumprisse a obrigação de me mandar para a eternidade com os meus tenros vinte e oito anos, fazer as delícias de todas as moçoilas do Além.
Sarita, apesar de ainda sentir os efeitos da Jurema, diz-me que vai dar uma volta pela vizinhança. Entretanto aproveitará, diz-me, para comprar um bocado de broa à melhor padeira da terra, aquela que herdou dos pais a fábrica da panificação apetrechada com tudo e mais alguma coisa.
A minha mulher não está bem, mas opõe-se à minha resistência a que saia de casa e leva a melhor. E eu, com tanto trabalho pela frente, estou sem disposição para a tentar demover.
Quando, daí a alguns instantes, regressa, diz-me que falou com a Padeira, de quem fora colega na escola primária, onde, por sinal, a hoje industrial do pão era boa aluna a português. A ponto de tirar, uma vez, um catorze a português. A vizinha, dizia a Sara, era bastante ladina. Estava sempre à coca de tudo, tal como a vizinha do andar de cima no prédio de César. - Pareciam irmãs - comentara, até, a Sara, numa ocasião. E, por causa dos pormenores que deu à ex-colega sobre o Professor, incluindo o da sujidade da gabardina, vi logo não ter sido boa ideia deixar ir uma mulher inocente como Sara no encalço de sequestradores, que tinham feito o que fizeram certamente com o conluio de alguém, nem eu imagino quem por mais anjo e amigo de Deus que seja. A Sara também terá referido à criatura que o Professor fora à biblioteca da terra consultar uns manuscritos do tempo de Jesus e pesquisar a árvore genealógica Dele. Inclusivamente, a descendência, mas sobretudo a infância, dado não haver na Terra grandes dados bibliográficos sobre o assunto. Os poucos existentes tinham sido guardados naquele local por sete autores da antiguidade, sete como os escritores do livro do meio e, além do mais, as folhas do manuscrito tinham um conteúdo demasiado hermético. Era urgente decifrá-lo e só o Professor era especialista nesses assuntos. Depois, para disfarçar, Sara emendou, dizendo à Padeira que não tinham sido sete, mas sim doze os escribas, os mesmos cujo rosto estava incrustado em baixo-relevo na frontaria do edifício biblioteca, ladeados pelos signos do Zodíaco e colocados sobre outras tantas cornijas, também elas querendo significar que, tal como o ano tem doze meses, o mundo tem doze pilares a sustentá-lo quando inteiro, e apenas sete estiver a escaqueirar-se. Daí a confusão da minha pequena Sara.
A mamã, antes de eu empalidecer para além do meu estado normal, diz-me para, de novo, apelar à minha invisibilidade de anjo, tal como quando tirei a foto ao piano-relíquia e seguir de perto a Padeira. Confidencia-me que vou ter grandes surpresas…
Não perco tempo e, sem precisar de ensebar o meu pólo vermelho vestido de manhã quando eu ainda estava ensonado por causa dos acontecimentos da noite, vou à padaria, começando logo a espiar a aluna cinco estrelas, que noutro tempo foi colega de Sara. Incido de imediato nos pensamentos da broeira e constato que o Professor esteve escondido em casa dela, passando a seguir para casa de terceiros. Inicialmente foi levado pelo Gordo e pelo Antiquário com um nome falso retirado da Bíblia, e ambos disseram à Padeira que, por causa de uma doença rara,  cuja cura era preciso inventar, ele se transformara em objecto de estudo secreto. Todavia, a rapariga, fina como um alho - nisso a Sarinha tinha razão - desconfiando do outro sujeito e do Gordo, a quem quase já não via desde o tempo da escola primária, resolveu agir por conta própria. O encarcerado Professor tinha chamado não sei quantas vezes pela sobrinha Clara, dizendo em altos gritos que queria regressar, o quanto antes, ao primeiro romance, onde tinha figurado apenas como pacata personagem e sem as tribulações de hoje em dia.
O Agricultor entrara em cena, percebi logo.
No decorrer da espionagem à mente da mulher,  vi também lá guardada a imagem do pedagogo, o mesmo que lhe tinha dado a nota altíssima a língua portuguesa no nono ano. E, para tentar perceber as coisas pela raiz, a Padeira resolveu recorrer ao velho mestre. Tudo porque o velhote, o Agricultor/Professor, além de ter chamado pela Clara numa das variações de personalidade, tinha desatado a falar uma língua que ela ouvira apenas uma vez, quando fora ao cinema ver A Paixão de Cristo, um filme realizado por Mel Gibson. Mal Sara cometera com a Padeira tais inconfidências acerca da biblioteca e do homem da gabardina azeitada, a rapariga imaginou-se logo perante um assunto da mais elevada transcendência. Por isso, de imediato foi buscar a Bíblia, abrindo-a no Salmo 38. Julgando-se eleita por Deus para cumprir altos desígnios na Terra,  e não sabendo bem a que salmo recorrer, leu um que lhe parecia ter um conteúdo genérico. Provavelmente, pensou, o salmo daria para resolver todas as situações de crise onde pudesse vir a entrar como protagonista.
Esta gente parece toda clonada. A Padeira parece ter a mesma veia teatral da Claralílica, quando esta se auto inventou uma doença mortal só para pregar um susto ao mano César. Tanto uma como a outra, pelos vistos, têm jeito para a arte da representação e para o romance. Quer do género trágico, quer da verdadeira comédia. Onde desembocará o futuro de ambas? Mas é melhor continuar com o meu trabalho, a fim de não irritar a autora com a minha malandrice.
Entretanto, e recapitulando, a Padeira-artista foi a casa do mestre de línguas que lhe dera sempre boas notas. Relatou-lhe os factos passados entre as quatro paredes da casa dela, onde, além de um forno em que assava cabritos gordos e bíblicos para casamentos, tinha agora um vivo, o Professor, a falar uma língua morta,  e cuja descodificação, para o bem da Humanidade, tinha de ser feita o mais urgentemente possível,  como lhe disse o mestre mal ouviu o relato da antiga aluna hoje uma conceituada Padeira da terra.
O novo homem, o Tradutor de Línguas Antigas, logo que a Padeira lhe falou na capacidade de o Professor regressar ao passado e falar como no filme de Mel, ficou entusiasmado com a possibilidade de ele próprio ficar na História, mesmo à custa de terceiros, como o primeiro homem a viajar no tempo. Além de tudo, de marcha atrás. Ir desembocar numa terra onde o maior mistério por desvendar tinha ocorrido, o nascimento e infância de Jesus Cristo, era fascinante, dada a escassez de elementos desse período, a que, lá no regresso ao passado do velho Professor, este tinha acedido. E logo pela visão sagrada de uma pequena chupeta.
Foi por tudo isso que ambos, em plena luz do dia, trataram de mudar o Professor de casa da Padeira para a do Mestre de Línguas, depois de o pobre homem ter ingerido uma outra mistela que os dois lhe deram. Usaram o trator de transportar o milho, sob cuja folhagem ocultaram o candidato a alquimista meio inconsciente. E era ver a moçoila, rosada e milheira, a conduzir o veículo pelas ruas da terra, com elegância e rapidez tal como se a Padeirinha fosse uma nova Michelle Mouton.
Agora já havia dois prisioneiros, o velho Professor e o Pombo-Correio, que, além de tudo, eram da mesma facção. Ambos pertenciam aos Recolectores Ambidestros de Infusões Venenos e Antídotos, os bons, já que os maus estavam agregados às Placas Tectónicas do Mundo Novo, o mesmo mundo que queriam dominar, mal descobrissem o significado de uma cabala com origem em Jesus, a que, supunham, teriam acesso a partir dos manuscritos procurados por toda a gente como se fossem diamantes perdidos no pó dos tempos.
Eu, Gabriel e anjo, enquanto as coisas não dão para o torto e me vou podendo rir, dou aquela gargalhada comum ao César, lembrando-me de imediato de que estou numa missão de espionagem. E, além de tudo, invisível. Dá-me um enorme gozo imaginar os tais papéis como, só e apenas, o livro em que a autora conta a vida da Clara e do meu irmão, e que estas personagens todas andam aqui, como já andaram noutro romance, feitas baratas tontas a cavar a própria sepultura. Mas isso não são contas do meu rosário, nem devem ser as contas do colar do Gordo, aquele que a Ordem das Placas Tectónicas lhe colocou ao pescoço, quando, numa escala de 1 a 20, lhe atribuíram o grau 3 na hierarquia. A minha tarefa é narrar os factos e tão só. E os factos estão mais nítidos na cabeça da minha espiada do que estariam se eu tivesse feito deles um portfolio de fotografias ou um documentário em vídeo.
Dizem as ocorrências que o Antiquário e o Gordo estão fulos com a Padeira, pois, quando pretendiam também eles experimentar a viagem no tempo às arrecuas utilizando os dons do Professor, este tinha desaparecido sem deixar rasto. Era como se, em vez de ele aceder aos acontecimentos apenas por via da mente e das visões que a Jurema e a ED juntas lhe provocavam, tivesse recuado mesmo àquele tempo, fisicamente falando, de gabardina sebenta vestida e tudo. E era isso que ambos queriam testemunhar.
O mais curioso por agora  ─ isto nem a Padeira sabe e eu sei-o porque sou um privilegiado… ─ o Professor também já não está na gaiola do Mestre-Escola. Escapuliu-se de lá. A mistura da Jurema e da ED, aliada a uma senha, uma password a que teve acesso na mais recente viagem ao passado, fazem aquilo que a velha gabardina nunca fez, ou seja, deixam-no completamente invulnerável, depois de paralisarem os inimigos mal estes ouçam aquelas palavras e aquele som,  que parecem vindos de um lugar maldito.
Não sei se as hei-de repetir…mas, não fique o leitor curioso. A senha é “quem quiser visitar o reino das múmias e do outro mundo terá de viver no inferno por um segundo”. E, por meio deste código, foi-me revelado onde está o Professor...
Com tudo isto é noite e hoje toda a gente jejuou. A fome deve ter alastrado lá pelo solar como fogo queimando as matas de verão. Queira Deus que as três batatas recheadas guardadas na garagem não tenham sido devoradas por aqueles famintos todos. Isso seria catastrófico pela segunda vez consecutiva.
É melhor sair da minha invisibilidade temporária e levar um bocado de broa. Deve haver lá por casa umas azeitonas e umas lascas de presunto – salsichas e enchidos não levo porque o César não gosta… ─ e presumo que Sara, atordoada como ainda anda, não tenha mandado a mulherzinha fazer o jantar. Nem sequer se deve ter lembrado de dizer à mais recente tia-bisavó da terra para preparar uma açorda de bacalhau, com os restos do pão que vieram de casa de César quando esta gente toda se mudou para aqui por não cabermos lá todos.
Mal chego, nem acredito! Querida Sarinha! Mesmo ainda titubeante, depois de afirmar ser a Clara, ainda se lembrou do meu aniversário e tem uma lindíssima mesa posta para oito pessoas.
Abraço-a e dou-lhe um ligeiro beijo nos lábios. Não quero parecer exibicionista entrelaçando as nossas línguas, uma vez que a Lilicas, de novo vestida de solas e cabedais, olha para mim com aqueles olhos de mulher fatal, e com vontade de celebrar os meus anos muito para lá da mesa, onde um bolo de aniversário, com vinte e nove velas, me sugere inevitavelmente o semáforo, em que Sara quererá também uma festa mais íntima. A minha querida esposa toda ela é luz, embora hoje quem tem direito a velas seja eu.
Vejo que Lilicas recuperou da apatia e daquela atitude compulsiva de querer ficar só com os cotos das mãos e pés. O efeito da Jurema já deve ter passado, o que, por um lado, é mau, pois, parece-me, vou ter demasiadas comemorações…
Só por causa disso preferia que o Agricultor e a sobrinha Clara aparecessem de novo. Só assim conseguiria dormir, após vinte e quatro horas sem pôr os pés na cama, quando a Branca de Neve me entrou pelo solar adentro em triplicado, tendo eu de me desdobrar em príncipe beijoqueiro e relógio despertador dos novos contos do Era uma vez.
A autora diz-me que a Lilicas, hoje, merece uma noite de glória na arte de coitar, tão do agrado dela, cuja linguagem já fez escola na semântica erótica. Até porque também me comprou um bolo, que se esmigalhou dentro da caixa, na rua, depois de ela ter escorregado com as botas do sadismo num troncho de penca. Ficou completamente desconsolada com o percalço. A Sara olhou-a com olhos de medusa, quando a Lilicas lhe mostrou o presente e a pobre, depois de ter sido tão maltratada no livro do meio, merece uma colher de chá. Mas isso será depois de Sara desligar as luzes e mergulhar no sono, mal eu tire os óculos de sol com que enfrento o semáforo. Já não consigo coitar com ela sem os pôr nos olhos para esbaterem a luz, a luz de que ela tanto precisa para se deslumbrar, uma e outra vez, com o meu corpo de Adónis e agora também anjo. (Nunca é demais lembrar que o César, o meu irmão, do qual fui retirado por hábeis manejadores de personagens, é tão fascinante como eu, embora não seja anjo por inteiro. De anjo, César apenas tem a cara…)
O jantar ficou finalmente pronto. Graças a Deus hoje não há as malditas batatas recheadas, e Sara, com certeza, lembrou-se de fazer a minha comida preferida, arroz de estilhaços. Era o que a minha mãe biológica fazia, depois de me perguntar, quando eu era uma criança loura de caracóis, antes de ir para França, a salto:
─ César, filho, o que queres comer nos teus anos?
Eu dizia sempre: ─ arroz de estilhaços.
Depois, ela, com a machada da lenha, cortava o frango em pedacinhos pequeninos, e então fazia um arroz malandro que me sabia pela vida…
Mas, agora, antes de me sentar à mesa, é melhor trancar as janelas e as portas a sete chaves, porque o Antiquário (até me esqueço que ele é meu patrão e primo…), a Padeira e o Gordo, já para não falar no Tradutor de Línguas, devem andar a correr céu e terra à procura do Professor.
Cá está o arroz. Cheira lindamente e na mesa não falta ninguém. Nem o Pombo-Correio, que passou toda a tarde no quarto com o Professor, a ressonar ao lado dele, enquanto revia mentalmente toda a informação que transportava no corpo, gravada a tinta de tatuagens com o sacrifício de quem a nada se poupa em prol das grandes descobertas. Sobretudo se tiverem um carácter bíblico.
O arrozinho está bom. Mas nada que se compare com o da minha mãe… Que saudades… Devo estar a ficar velho…
Desta vez, as coisas, parece, estão a correr bem. Só não percebo por que terá a Sara mandado colocar oito lugares à mesa. Da casa somos dois e, com o Professor, a sobrinha-neta e o Pombo-Correio, ao todo, perfazemos cinco…
A brincar, pergunto à minha querida esposa se estivemos prestes a ser excluídos do jantar e se ela pensava sentar à mesa os sete parodiantes mais a coordenadora da publicação, a Dona Tita Lívia…
Ela desata a rir à gargalhada. Neste livro, todos gostamos muito de rir.



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« Última modificação: Outubro 12, 2022, 17:16:49 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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outono


« Responder #50 em: Agosto 30, 2022, 20:42:49 »

Não me aborreço nada com incoerências. Já estou habituado.
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« Responder #51 em: Agosto 30, 2022, 23:54:45 »

Ainda bem.


A seguir, Sara responde-me que era no caso de aparecerem de novo o Agricultor e a Clara, sobrinha dele, bem como o César…Ela gostaria de o conhecer melhor…
Depois da estranha resposta, Sara começa a rodopiar suavemente e, de repente, uns segundos após a cantadoria dos parabéns, seguida de umas garfadas de bolo, a dança torna-se frenética, enquanto ela, com rapidez, se vai sentar numa das cadeiras vazias. Era, tinha-me dito antes, o assento reservado a Clara. E, olhando para mim com olhos de carneiro mal morto, intitulou-se de novo a irmã. Disse que me amara como nenhuma outra mulher, nem antes, nem durante, nem depois, pudesses eu embora ter conhecido um batalhão delas, ou até uma companhia inteira, e que lhe parecia um milagre estar outra vez comigo e poder morrer de novo enroscada no meu corpo e inundada pelos meus santos eflúvios. Entretanto ajoelhava-se a meus pés, como uma tia de César se ajoelhara no quarto onde ele tinha os Cristos sobre a cómoda. Pedia-me que lhe perdoasse por ter sido tão má para mim. Só muito mais tarde - dizia - quando eu caíra naquela funda sepultura onde ela arremessara o fato Príncipe de Gales, se tinha apercebido da minha verdadeira natureza angélica, e de quanto eu era importante para a Humanidade. Sobretudo para as mulheres.
A mamã entrou outra vez em acção, embora me pareça que a dose da Jurema variou. Os efeitos não foram tão catastróficos como de véspera. A Sara está mais amena.
Olho para os outros e vejo a Lilicas impávida e serena. Numa daquelas birras de menina bem da linha infernal onde mora, só por causa de Sara ter desdenhado do bolo que ela tinha comprado com tanto amor e agora amassado como o chapéu de um pobre, decidiu não provar sequer do outro. Só comeu do dela, e está com as mãos todas lambuzadas de chantilly, depois de ter andado a catar migalhas dentro da caixa, onde trouxe os salvados do sinistro. Mas, mesmo assim, estava fresca como uma alface. Além de tudo, um sorriso cínico dançava-lhe nos lábios, gozando antecipadamente os delírios da noite, que, com certeza, pensava ter comigo. Ou não estivesse a Sara naquele estado mais ou menos catatónico e mentalmente neutralizada. A menos que eu quisesse regressar ao passado, coitando de novo com a Clara, o que, de todo em todo, lhe parecia impossível, dada a gravidade das ofensas antigas.
O Professor, de copo de champanhe na mão, fingia não se passar nada. Não vi nele nenhuma pontinha do Agricultor tio da Clara, a qual, de momento, perante não sei quantas testemunhas, assumia ter sido, pelo menos na etapa final do romance com César, verdadeiramente maquiavélica. É verdade – digo eu – apesar de, olhando para a Lilicas, me parecer que, nem de perto, nem de longe, Lilicas se assemelha à rapariga tonta descrita por renomados escritores no romance do meio.
Quanto ao Pombo-Correio, até por ser o mais recente hóspede do solar, e talvez por uma questão de respeito para com as fraquezas humanas, tendo igualmente um copo na mão, de onde de vez em quando beberica, limita-se a um educado silêncio. Só depois reparo que nenhum dos dois amigos tinha tocado no bolo da Sara, estando duas fatias inteiras no prato de cada um.
Acho tudo muito estranho e julgo que o Professor, quando andou a viajar de marcha atrás no tempo, teve, com toda a certeza, conhecimento de todo o próximo futuro daquela casa de doidos em que se tornou o meu lar e que iria haver mais um envenenamento.
Com tudo isto, é claro, não toquei no bolo comprado pela minha mulher…Desculpa mamã, mas se querias pregar-me uma partida para a Lilicas abusar de mim, não conseguiste os teus intentos. Depois desta dramática actuação da Sara, dizendo que é a Clara, eu, se eu tiver de comer um pedaço de bolo para o meu aniversário não ficar em branco, como ficou o de César, será da tarte amassada com que a minha mais recente admiradora me queria homenagear. Ainda que fique, como ela, com os dedos besuntados de creme branco, sobre o qual uma linha desconchavada de letras a chocolate dizia: Feliz Aniversário Gabriel.
Pela segunda noite consecutiva esta mansão transforma-se numa casa de comédia.
A velhota lavadeira das camisas do César, e que veio depois para aqui, cismou em visitar todas as noites o tetraneto - talvez seja só bisneto, mas não importa - deixando-nos mais uma vez sozinhos, com os restos do arroz de estilhaços e as sobras dos bolos. Que maçada!
Depois, enquanto fui à cozinha despejar os ossinhos dos pratos no lixo, a Lilicas dirigiu-se ao jardim, frente ao lago e, pegando no prato onde está o bolo envenenado a Jurema, vai-o esmigalhando e espalhando-o por todo o lado como se estivesse a deitar milho aos pombos. Quando me apercebo já não posso fazer nada. Resta-me rezar a Deus para que as aves do céu, da terra, e até os peixes do rio, já para não falar nos do lago, não fiquem intoxicados. Não pretendo ser o salvador de nenhum cisne, ou mesmo de uma codorniz gulosa e uma séria candidata à diabetes. Embora me pareça que a “doença” provocada pela Jurema não se transmita através do ar, nem, tão pouco, da água.
Reparo que o Professor e o Pombo-Correio, aproveitando os nossos afazeres domésticos de levanta-mesas e lava-loiças, deixam o solar às escondidas, não sei com que finalidade.
Enquanto isso Lilicas deita um soporífero à base da Mimosa Hostilis no copo de champanhe da Clara e, quando esta está a dormir profundamente pingando na cadeira, trato de a levar para o quarto da Lilicas sem objecções da mesma Lilicas. Se a Clara era uma personagem com origem na Sara, ou vice-versa, e como eu não queria ver a moçoila nem pintada, não havia razão nenhuma para a deitar na cama do meu quarto onde, hoje, de jeito nenhum, me apetecia levar com as luzes do semáforo para aturara a Sara. Foi por isso que não me importei muito. Pelos vistos, tanto uma como a outra só se excitavam olhando o meu corpo de todos os ângulos, precisando por isso de muita luz.
Já na minha cama, com todos os candeeiros semi-apagados, a Lilicas começou por fazer para um delicioso streep-tease. Primeiro viu-se livre do  top, que lhe deixara os ombros nus, foi prosseguindo até às botas, passou pelas calças de cabedal e pelas íntimas pecinhas pretas. Tirou tudo com uma lentidão fora do comum, depois de me ter ocorrido colocar no leitor de Cds a ópera “Elixir do Amor”. Foi divino como sempre. Sem tabus de linguagem fomos não sei quantas vezes ao céu. E durante esses momentos Lilicas gemia de gozo como a cabra impúdica que é. Ó Meu Deus!, mais uma mulher caída por mim como se eu fosse de facto um anjo! Como se, nestas coisas, tivesse trazido, logo de início, do tempo em que eu, Gabriel ou César, fui concebido no coro de uma igreja com todas as coordenadas e bússolas para fazer chegar uma mulher ao paraíso sem me limitar a ser mero veículo de transporte. E não conto mais nada, sob pena de o leitor ficar com água na boca. Ou, pior ainda, com forte possibilidade de este livro ser de novo parodiado e a mamã ter de replicar, nascendo então uma pilha de obras maior do que a de Jorge Luís Borges lá em casa de César a cheirar ao chichi do René, o velho gato francês.
Por agora tenho de mudar a Clara do quarto da Lilicas, não vá ela acordar como Sara e estranhar o roupão vermelho com que a Lilicas enfrenta todos os diabos que a impelem genericamente para o mal. Sobretudo em questões relacionadas com sexo. Já ambas dormem, estou sozinho em casa, sem conseguir conciliar o sono. Os dois homens escapuliram-se, ainda não regressaram e sinto no ar qualquer coisa que me escapa.
Com todo o cuidado, vou discretamente a uma janela da mansão e vejo o Antiquário farejando a casa como um cão perdigueiro. Deve andar atrás do Professor. Considera-o a única pessoa com capacidade para descodificar, depois de ter uma boa porção de ED no estômago, o manuscrito a cujo roubo se antecipou na célebre biblioteca da terra. Não sabe, com certeza, que os ratos do quarto dos fundos lhe roeram com a maior desfaçatez os códigos com que ele pretendia decifrar todos os segredos do mundo. O Professor anda tranquilo da vida. Não lhe passa pela cabeça deixar assomar a uma das janelas da sua dupla personalidade o Agricultor e devolvê-lo ao livro original de onde ele foi arrancado a catorze mãos. Lá porque consegue viajar ao tempo de Jesus, julga-se o supra-sumo dos mortais e já se dá ao luxo de sair sem dizer, nem água vai, nem água vem. Também é verdade que se o Agricultor regressasse de vez, era como se o Professor cometesse suicídio. A autora bem podia desde já colocar Fim no romance…
Observando com mais atenção, vejo lá fora, sentado no galho de uma oliveira centenária e numa posição algo incómoda, uma figura com uns binóculos na mão a tentar descobrir o que se passa no interior do solar. Reconheço-o imediatamente. Para lá do aparelho de catar imagens ao longe, tem na mão um porta-chaves brilhando à luz do jardim. A polícia mantém sobre nós uma vigilância discreta. O Porta-Chaves anda à coca desde o dia em que cá em casa houve uma tentativa de homicídio frustrada devido aos efeitos da Jurema e à astúcia de uma autora atenta que quer este livro imaculado e sem pinta de sangue. O Antiquário também anda por aqui, mas, mal me vê à janela, desaparece no meio das sombras. Questiono-me sobre o que andará a fazer por aqui o meu patrão e primo. Não deve ser nada de bom…
Não passaram mais de duas horas desde que o Professor e o amigo Pombo-Correio saíram de casa. De repente, ouço o velho tractor da Padeirinha a rolar até à beira do solar com uma carga de folhas em tudo semelhante aquela sob a qual haviam transportado o Professor para casa do Tradutor de Línguas Antigas. Desta vez era o Professor quem conduzia. Ainda bem que o polícia dependurado no galho da oliveira não pertence ao departamento de trânsito para fiscalizar a sua carta apreendida. Se assim fosse, de certeza o velho teria uma pesada multa às costas por ter violado a inibição de conduzir. A seguir, os dois levam o veículo para as cavalariças onde agora, por termos vendido os outros dois equídeos, só está o Tentilhão, um puro-sangue árabe que a Lilicas, numa daquelas conversas do depois de… já manifestou interesse em montar.
Pelo interior da casa desço aos estábulos e vislumbro dois corpos inanimados debaixo da folhagem. Tenho uma enorme surpresa quando constato quem são. O homem é o Gordo e a rapariga é a empregada do bar do hospital onde Sara trabalha, a Doutorinha desempregada que, dizem os entendidos, tem muito de algumas personagens do livro roubado. A um tempo é a última namorada do César, a que tinha vindo de um bordel mas, por outro lado, é a Clara em pessoa, uma grande parte das vezes ao contrário: uma era a dra. Clara, outra era a doutora desempregada, depois de cinco anos na universidade; uma gostava de cozinhar e outra não. Mas, deu-se até a coincidência de a Clara ter perguntado a César o queria comer, num jantar que lhe ia oferecer em casa e a Doutorinha, um dia, tinha instado igualmente com o Gordo para ele lhe dizer se gostava de batatas recheadas depois de ela descobrir num papel velho uma receita.
Já toda a gente percebeu que Clara é uma erudita. Cita tantos provérbios latinos como ditados populares de todos os tempos. A Doutorinha também não lhe fica atrás. Dito de outra maneira, uma é a personagem chapada da outra. Além do mais, constata-se também que todas as mulheres do livro do meio tem tudo o que a Clara possui, de bom e de mau.
A Jurema entrou então de novo em acção, presumindo eu que o Professor, na sua viagem às arrecuas pelo passado, tivesse tido conhecimento de algum evento desagradável prestes a acontecer nesta casa e que tivesse sido incumbido de mudar o nosso futuro de acordo com as intenções da mamã. Esta diz-me para me deixar de adivinhações e fazer o meu trabalho. Respondo-lhe que estou sem grandes ideias e peço-lhe uma dica. Manda-me desenrascar.
É melhor, talvez, perguntar ao Professor – é mesmo o Professor, não o Agricultor - o que está a acontecer, e questiono-o por não ter confiado em mim colocando-me ao corrente da programação. Responde-me que, com a Clara de volta e a Lilicas em casa, eu teria trabalho a dobrar. Fora essa a razão de não me informar dos planos do bando das Placas Tectónicas. Eles iam, sem mais nem menos, mandar a Doutorinha e o Gordo para os anjinhos. A ela por ter descoberto a receita das batatas e por querer transformar-se numa cozinheira tão boa como Clara, a ele por ser um borra-botas que tinha deixado fugir o Professor sem o ter forçado a descodificar o manancial de manuscritos dispersos por aí e cujo conhecimento lhes daria um poder decisivo sobre o mundo. A ponto de poderem neutralizar definitivamente o Apocalipse prometido por Jesus quando Ele andou pela terra. Com a descoberta, poderiam mandar para o inferno só quem lhes apetecesse. O Professor sabe muito do assunto e pergunto-lhe como abortou o plano dos tectónicos. Disse-me ter sabido por portas travessas - admiro o poder e a humildade deste homem…não gosta de propalar o seu dom de viajante no tempo… - e que a Doutorinha, empregada do bar, deveria ser morta à facada no estacionamento do hospital com o colar recebido pelo Gordo das Placas Tectónicas ao peito. Pusera-o naquele dia, quando se sentia mais vaidosa, para impressionar o marido de faz-de-conta. E como o Gordo tinha mais paixão pelo colar do que por ela, a polícia, mal descobrisse o corpo, haveria de lançar logo as suspeitas do homicídio sobre ele, que, por sinal, também já tinham os dias contados. As altas esferas da organização já o tinham sentenciado à morte no último conclave. Toda a gente sabia disso, menos ele. Pela quantidade de fumo negro saído da chaminé, todos puderam prever que o próximo a aniquilar seria alguém com um peso aproximado ao do Gordo. A fumarada fora, até, excessiva. O raio do homem – disse o Professor – pesava tanto como qualquer das estátuas da Ilha de Páscoa e ele e o Pombo-Correio tinham suado as estopinhas para o colocarem no tractor, depois de inanimado com a Jurema adicionada pela autora ao bolo de chocolate, tão moída como pimenta da Índia esmigalhada. Foi por todas estas coisas ─ disseram ambos ─ que saíram sem me dizer nada. Foi para obviar duas mortes, aproveitando o facto de a Doutorinha e o seu Gordo estarem juntos na sala de estar. Ela a tentar ver a novela das onze da noite e ele a fazer zapping com o comando da televisão, uma vez que a programação do Canal de História, nesse dia, incluía um documentário sobre duas seitas importantes. Uma era a dos Recolectores Ambidestros de Infusões Venenos e Antídotos e a outra era aquela a que o Gordo pertencia, a das Placas Tectónicas do Novo Mundo. Embora o Gordo não passasse de um soldado raso com cumprimento de serviço pouco eficiente.
É muito engenhoso este Agricultor/Professor abancado cá em casa com a sobrinha neta. Enquanto estávamos a festejar o meu aniversário, dissimuladamente tratou de meter dentro de uma caixa da Tuppwrere as duas fatias de bolo do prato dele e do Pombo-Correio indo depois propor uma aliança ao Gordo, que a aceitou de imediato. O Gordo sentia-se há muito tempo humilhado pelo Antiquário e era uma boa forma de se vingar dele. Foi quando o Professor, para selar o compromisso, tirou da caixinha os dois pedacitos do bolo colocando-os de seguida em dois pratinhos tirados da cristaleira pelas níveas mãos da Doutorinha, juntamente com quatro copos de champanhe. Tinha sido assim, sem mais – disse o Professor.
Pronto! E agora eu, Gabriel, o anjo, tenho em casa mais dois mortos-vivos e não sei onde escondê-los. O velho sugere-me o meu estúdio de fotografia, onde raramente alguém vai. Nem a velhota do bicarbonato na salada de frutas lhe limpa o pó. Tenho medo que confunda os ácidos de revelação das fotografias com amaciador de roupa ou com outra coisa qualquer e envenene por aí alguma pessoa. Sobretudo a mim.
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 17:18:46 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #52 em: Setembro 05, 2022, 13:16:26 »

Berbequim nas batatas não me convence... Mas gostei do que li!
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #53 em: Setembro 05, 2022, 19:03:33 »

Os livros aceitam tudo Goreti Dias, até berbequins para esburacar batas. Agora é Sara quem vai dizer de sua justiça...



Concordo com o Professor. Mas o problema é saber se hão-de ficar a dormir ou não, caso em que a minha beijoquice terá de funcionar de novo. Se o bolo lhes está embarrilado na garganta e se, com os solavancos do tractor, não saltou, então só mesmo o meu beijo para o remover. O Gordo, diz-me o velho, tem de acordar. Este precisa de lhe sacar informações sobre as conclusões dos outros acerca dos manuscritos. Só em função disso o Professor irá ou não à casa da mulher das cortinas de plástico para ela o ajudar a regressar de novo ao passado.
Lá tenho de beijar o homem… Sara nunca quis o Gordo para nada, nem sequer para um beijo numa altura de carência afectiva, e agora vou ter de ser eu a acordá-lo desta forma!? Irra! Espero ao menos que ele não se entusiasme e desate a lambuzar-me pensando tratar-se de Sara, uma paixão da qual, apesar da Doutorinha, nunca se recompôs tanto quanto dizem os ciúmes da rapariga, que expia constantemente o companheiro.
O Professor manda-me começar a actuação, ali na cama onde fotografo as auras. Ao lado do Gordo vivo-morto está a morta viva deitada e coberta com uma colcha de cetim vermelho.
Mal encosto os meus grossos lábios de africano no colega de Sara, este mexe-se abruptamente, fazendo ranger a cama e agarrando-se freneticamente ao meu pescoço. Tenta engolir o beijo que lhe deponho nos lábios, leve como se estivesse a beijar a face fria de um morto. Mas ele quer mais, quer a minha língua inteira e eu furto-me como posso a esse contacto.
Digo ao Professor para tomar providências e ele dá ao Gordo um valente sopapo na cara. Aos poucos, o homem vai recuperando a consciência. Quando isso acontece, o Professor explica-lhe que teve de os drogar e raptar para impedir o Antiquário de os mandar desta para melhor. Entretanto pergunta-lhe quais são os reais planos das Placas Tectónicas, se é que ele sabia.
O Gordo responde abertamente:
Aos primeiros sintomas Apocalípticos do Universo, a organização faria uma viagem para norte. Tanto quanto supunham, mesmo sem terem descodificado os manuscritos, as poderosas relíquias de onde emanava o poder com que os Tectónicos queriam dominar o mundo encontrar-se-iam enterradas na cripta de uma igreja, guardadas por sete santos e santas. Ou, pelo menos, por sete cabeças de santos. Ele não sabia muitos pormenores. De facto, na hierarquia, ocupava um posto demasiado rasteiro para estar ao corrente de tudo…Todavia, acrescentou, tanto quanto pôde perceber, o chefe supremo das Placas era uma personagem a quem chamavam o Velho. Além de haver gente de todo o mundo. Eram sete as línguas oficiais e, evidentemente, o português. O Antiquário era, ao que supunha, o representante máximo das Placas em Portugal.
O Professor interrompeu entretanto o Gordo, exclamando:
- Professor: Eles já sabem isso tudo e ando eu aqui preocupado com uma simples chupeta e com a infância do Menino Jesus!? Ora porra!
A mamã manda-o calar energicamente e ordena-me que verifique se se passa alguma coisa com os cisnes e com as aves, da capoeira, da terra e do céu, sem esquecer também os peixinhos do rio. Quando regresso digo-lhe que está tudo em ordem, apesar de o Porta-Chaves continuar pendurado no galho da centenária oliveira a observar o ambiente.
A autora dá um grito irado. Com personagens como nós - diz - tem de estar sempre atenta. Graças a si, está tudo bem - acrescenta. Ninguém imagina o seu trabalhão, quando andou a deitar enxofre na água e em todo lado onde a tonta da Lilicas espalhou o bolo envenenado. Fiquei então a saber que o enxofre era um tremendo desinfectante e, por agora, o Apocalipse ficou adiado.
Enquanto o Professor tenta obter mais informações do Gordo, subo e vou inteirar-me do estado da Sara, que hoje me saiu Clara. Continua a dormir no meu quarto, para onde a levei, o célebre quarto do semáforo e, de seguida, vou espreitar a Lilicas pelo buraco da fechadura. Fico embasbacado… O Porta-Chaves, até aí pendurado na oliveira, submeteu-se como um gato manso ao cio da Lilicas, e esta, com as botas esporadas e uma venda nos olhos como a do Zorro, com o grosso cinto de cabedal zurze-lhe o canastro, de que só vislumbro uma parte das nádegas enquanto ele mia.
Vou-me embora para não perturbar a sessão.
Desço de novo ao meu estúdio, onde o Professor já recolheu o máximo de informação possível que o Homem-Pergaminho anotou em folhas de papal pardo iguais às que a Sara gosta de trazer sempre na carteira para meter as azeitonas num cartucho em funil.
A morta-viva continua no mesmo estado e o Professor diz-me que tem de ficar assim. A minha casa está dividida em três mundos. Tenho o inferno a largar labaredas no quarto da Lilicas, dois cemitérios com outras tantas mortas-vivas, a Sara e a Doutorinha, e uma parte mais normalzinha constituída por três homens e um anjo. Por sinal, todos eles entusiasmados em erradicar da Terra o Apocalipse prometido por Jesus quando cá andou a pregar a homens moucos e loucos como certas pessoas.
O Professor e o Pombo-Correio, desta vez, põem-me ao corrente da situação. A viagem à mulher da casa enfeitada com franjas, ora a professora de César, ora uma bruxa famosa que gosta de embebedar os visitantes, foi cancelada. Muito mais eficiente do que as ervas da criatura para pôr as personagens KO é a Jurema. E a mamã sabe doseá-la muito bem.
E esta gente toda que não dorme! Eu, um anjo, ainda se admite o meu lúcido estado de vigia. Todo eu sou etéreo e passo bem sem o sono. Agora os terráqueos, não sei como conseguem aguentar a pedalada de três seitas, qual delas a mais perigosa e cada uma a tentar neutralizar os efeitos das outras por todos os meios.
Pergunto ao Professor e ao Homem-Pergaminho, ou Pombo-Correio (o Gordo não tem grande voto na matéria) o que irá seguir-se. Não sabem, é a resposta. Aconselham-me a pedir ajuda à autora.
Estou farto disto! Não passo de um pau mandado nas mãos de tantos escritores, famosos e de meia-tigela como a mamã. Apetecia-me debandar dos livros todos e não passar cartão a ninguém! Não sei se o não farei ainda! Até já estou a imaginar as páginas a abrirem-se como por magia e as personagens a esvoaçar de lá, saindo de dentro como se fossem um bando de borboletas numa procura frenética de flores e de mel. Embora, no caso, seja mais uma debanda pela liberdade, porque a Demanda do Santo Graal não é a nossa especialidade. Só não sei como faria a Sara voar o semáforo onde gosta de fazer amor comigo – era melhor dizer coitar, por causa da minha escola linguística, mas, fica assim…  Ah!, como me apetecia incitar toda a gente à rebelião! Imaginar o Tentilhão a saltar dos livros, o Pajem e o Fagote - dois cavalos que aparecem no livro roubado - graciosamente e de patas no ar! É uma fantasia maravilhosa… E, para ampliar o efeito, apetecia-me igualmente levar todas as ex amantes do César à insubordinação e obrigá-las a pular do livro, no cemitério e de preto como viúvas negras, com a cabeça baixa como as túlipas que o meu irmão não conseguiu cultivar durante os seus quarenta e cinco anos de vida. A seguir seriam os jaquinzinhos, os cisnes, os patos, os perus, todas estas mulheres alcoviteiras e manhosas que os autores criaram, umas vestidas de cabedal e outras de Coco Chanel, de lavradeiras, ou até mesmo de bruxas a que não faltassem as respectivas vassouras. Nunca vi um voo mais diversificado, com as personagens a atropelarem-se umas às outras na pressa da fuga, as damas a puxarem os cabelos umas às outras, aos autores e autoras, enquanto os homens tentam ajustes de contas e andam todos à bordoada. Que cena mais caricata! E não é que não consigo estancar a minha gargalhada!?
Ria-se comigo leitor, porque a autora, estando a tomar um chá de camomila com umas barrigas de freira, engasgou-se e está agora a tossir quase ininterruptamente, pedindo, nos intervalos e a gaguejar, que lhe dêem umas palmadas nas costas.
Tenho de interromper a história para a ajudar. Bem merecia um murro bem dado por ter escrito o monstruoso do primeiro romance que nos meteu nestas alhadas consecutivas… Mas, como preciso dela, lá tenho de lhe dar uma palmadita nos espaldares enquanto chamo pelo S. Brás, o advogado dos engasgados.
Quando a mamã acalma, pergunto-lhe o que irá seguir-se. Ri-se de novo e diz-me para deixarmos o Gordo a velar pela sua bela adormecida e para entramos no solar.
É o que fazemos. Mas, indo já a noite um bocado adiantada, o Professor e o Homem-Pergaminho, cansados e cheios de fome, passam pela cozinha onde um resto do bolo com Jurema ficou esquecido num prato. Dividem-no a meio e comem-no com sofreguidão, antes de eu ter tempo de os avisar da graça que a mamã fez outra vez com a planta.
De repente o Professor regressa de novo à vida de Agricultor e, como uma seta, dirige-se ao quarto onde a Lilicas acaba de exercitar os couros e cabedais de ninfomaníaca, enquanto o Porta-Chaves, com as mãos a tapar o olho do furacão, se encolhe de pudor. Sobretudo pelo enxovalho por que acabou de fazer passar a nobre instituição em que trabalha.
Agricultor: ─ Estou farto desta gente toda! Seus bandalhos! O que fizeram vocês à minha Clarinha, que a transformaram numa doida varrida? Que inferno! Nunca pensei que com a minha idade tivesse de passar por todos estes constrangimentos! Seus anormais desmiolados!
Já o Porta-Chaves tinha saído à pressa, quando, cheio de calma e modos carinhosos, eu disse à regressada personagem do Agricultor que a Clara, a sobrinha dele, estava deitada no meu quarto, para onde foi nos meus braços quando disse quem era, embora eu continuasse com a secreta esperança de que ela fosse, simplesmente, Sara, a doce mulherzinha com quem casara depois de apenas três meses de namoro.
O homem ficou fulo e prosseguiu:
Agricultor - Mas que pouca-vergonha vem a ser esta?! – Agora você, Gabriel, que até é anjo, põe a minha sobrinha a dormir no seu quarto como se ela não passasse de uma reles concubina? Ó Clarinha, onde é que tu estavas com a cabeça quanto te meteste com esta gentalha!?
O Pombo-Correio, depois de ter comido o pedaço do bolo, adquirira pose de santidade. Ou, quando muito, de livro sagrado. Devia sentir-se verdadeiramente um Homem-Pergaminho por causa dos escritos do seu corpo. E talvez quisesse mesmo petrificar-se ali como a estátua sagrada da bíblia, ou até do Corão, que um sacerdote daí a pouco pudesse folhear com a reverência das coisas sagradas.
E eu aqui sozinho, sem saber o que fazer... Ah, não! Desta vez a mamã tem de me ajudar! E muito...  É o meu pensamento quando me dirijo ao semáforo, onde a Sara, a Sara, sim senhor, me faz uma autêntica proposta desonesta…
- Hoje?!... De maneira nenhuma! – respondo, enérgico. Tinha-me esquecido dos óculos de sol no laboratório… Deixei-os lá quando aí pusemos a morta-viva da Doutorinha mais o seu Gordo e não havia forma de os ir buscar. Também não o queria fazer e, pela primeira vez depois de muito tempo, tinha uma verdadeira desculpa para não levar com todas aquelas luzes na cara. Não haveria coito para ninguém.
E agora mamã?!


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« Última modificação: Outubro 12, 2022, 17:20:47 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #54 em: Setembro 12, 2022, 17:52:46 »

Mas o rapaz tem semáforo de que cor?
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« Responder #55 em: Setembro 17, 2022, 13:25:05 »

Sem Olivier, pode ser?
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« Responder #56 em: Setembro 25, 2022, 19:05:55 »

Não, caso encerrado, Goreti!



E agora mamã?!
- Agora, as mesmas palmadinhas que me deste quando me engasguei com as barriga de freira, vais dá-las, primeiro no Agricultor e, a seguir, na “Bíblia”, o Homem-Pergaminho que tens especado no teu salão. Depois, se o Gordo não tiver conseguido acordar a Doutorinha (não admira porque ele, de facto, não passa de um sapo) vais ter de fazer isso. Nada a que não estejas habituado deste que chegaste ao meu novo romance. Finalmente, convocas uma reunião de emergência para daqui a meia hora.
Adianta alguma coisa dizer que a minha hérnia discal, depois de carregar tantos pesos durante toda a noite, me está a morder os lombares como uma víbora? É claro que não! A vida de personagem é demasiado dura. Nos livros, a obediência aos autores é uma regra para não ser discutida. A menos que eles permitam e, neste momento, não me apetece discutir nem reivindicar nada com a minha criadora.
Felizmente quando chego ao estúdio a Doutorinha já está acordada e completamente ao corrente dos factos.

A reunião começou a horas e aqui vai a grande surpresa:
A Sara tem uma semana para organizar um grande jantar onde Mel Gibson tem de estar presente. Será o famoso cozinheiro Jamie Olivier a organizá-lo, e se até lá a mamã não mudar de ideias, Jamie ficará incumbido, entre outros pratos, de confeccionar a receita das batatas recheadas. A mamã diz-me para ninguém se preocupar. Sara pode gastar dinheiro à vontade por conta do dinheiro que ganhará com a Sátira do Livro Roubado.
Para espanto de toda a gente, autora convidou também o Antiquário, o mesmo que queria tirar a tosse ao Gordo e à Doutorinha. Mas o homem tinha ido a Chaves ver um primo prestes a morrer tuberculoso e a quem até o padre tinha dado já os últimos sacramentos. Por isso era uma viagem inadiável. E, quanto à Padeira, teve de deixar a fornada das broas a meio, a fim de atender à minha chamada, já para não falar do Mestre de Línguas mortas, que veio de ceroulas e tudo. Foi a mamã quem presidiu aos trabalhos. A ordem tinha apenas um único parágrafo: saber até que ponto cada personagem estava contente com o seu papel e medidas a tomar daí para o futuro.
Não as contei, mas pareceu-me que não estavam todas. Nem pouco mais ou menos…Por isso, sobretudo as queixas do Gordo e da Doutorinha, que a essa altura já deveriam já estar a fazer pó de tijolo, como não havia quórum, ficaram em águas de bacalhau e a aguardar nova ata. Ficou,  entretanto,  acordado que os presentes de todos os livros teriam de avisar os ausentes para uma magna reunião em data a anunciar oportunamente e de acordo com a disponibilidade dos convidados ilustres.
Sara, através de correio eletrónico, começou de imediato a fazer os convites para o próximo jantar, daí a uma semana. Foi estabelecido um prazo assim curto porque Mel Gibson tinha a agenda demasiado sobrecarregada. Havia apenas o furo do fim-de-semana em que a Austrália comemora o seu dia. Por sorte, coincidia com uma sexta-feira, e ele tinha o tempo suficiente para se deslocar ao local onde os acontecimentos estavam então a tomar dimensões catastróficas. Mel teria de dar o seu contributo para obviar o fim do mundo indesejado por todos. E ninguém como ele para perceber as reais intenções de Jesus, quando proferiu as palavras apocalípticas para, uns tempos depois, serem escritas na Bíblia.
A minha mulher, é claro, teve de recomendar a Mel para trazer o dicionário de aramaico antigo, enquanto lhe explicava que, cá no velho continente, na sua parte mais ocidental, as coisas estavam a fugir ao controlo. Sentia-se isso no ar,  e era também nesse sentido que ia a interpretação de três seitas de cariz internacional, há tempos a estudar o assunto quase compulsivamente. Uma delas professava uma versão mitigada entre o apócrifo e agnóstico da vida e sabedoria de Jesus,  e queria, a todo o custo, evitar o Apocalipse prometido por Ele no tempo em que veio do céu à terra nas entranhas da Virgem Maria. A presença do realizador de A Paixão de Cristo era importante, ele que, certamente, estudara a vida de Jesus, desde a concepção à flagelação, nas fontes originais e sem as corruptelas linguísticas dos escribas posteriores. Quanto a Olivier, se ele não pudesse preparar o banquete, haveria com certeza um bom cozinheiro nacional para a festa. Pelos meus cálculos, incluindo pessoas, cavalos aves e peixes, rondarão as sessenta criaturas, ainda sem contar com a orquestra que o mano, o César, vai arranjar através da fundação. Os músicos vão ter apenas direito a uns doces e a um pouco de champanhe francês, antes ou depois da ctuação ainda se há-de ver, mas, mesmo assim, é muita criatura a quem dar de jantar.
O Chef inglês ficou encantado com o convite. Embora estivéssemos a correr alguns riscos, Sara prometeu-lhe, desde logo, além do que ele pretendia cobrar em libras pelo trabalho, se não a vida eterna – começávamos a acreditar que poderíamos neutralizar o Apocalipse com a ajuda de Mel e do seu aramaico… – pelo menos uma boa longevidade,  para ele virar e revirar as panquecas nas frigideiras da cozinha na sua escola-restaurante inglesa, se muito bem calhar, protestante. Este homem também não dorme…
O meu irmão, o César, conseguiu convencer o primo, o Antiquário, a comparecer, bem como os restantes membros das Placas Tectónicas, embora o chefe, o “Velho” russo declinasse o convite. Não admira. Já está um bocado farto das tropelias que variadíssimos livros têm feito da sua personagem ao longo dos últimos tempos. Por isso delegou a representação da organização no Antiquário. Pelos vistos haveria ainda uma outra personagem mistério, mas o Velho não a quis submeter a exposições públicas suscetíveis de lhe corromper a imagem para sempre.

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« Última modificação: Outubro 12, 2022, 17:30:23 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #57 em: Outubro 03, 2022, 16:01:39 »

Mistério para Poirot? A Sarinha, tão bondosa deve ser excluída.
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« Responder #58 em: Outubro 12, 2022, 17:47:37 »

Isto aqui havia umas repetições e teve de levar uma volta, pelo que os vossos comentários não estarão ajustados, desculpem lá


Ninguém queria acreditar quando Mel nos bateu à porta do solar, com uma pequena mala Louis Vitton na mão, e todos nos penalizámos por não termos ido esperá-lo ao aeroporto. Para nossa surpresa, tinha antecipado a viagem. Ele, um entusiasta da Vida de Jesus, não resistira à tentação de vir mais cedo, para, sem os mil e um mirones a que está habituado, poder conhecer, antes do encontro oficial, pelo menos em linhas gerais, os acontecimentos pré anunciadores do final dos tempos.
Felizmente – parece mesmo obra de Deus - Olivier e os seus alunos tiveram a mesma ideia e, quando Mel chegou, pode assim comer umas maravilhosas batatas à Henrique VIII, inventadas pelo Olivier quando ainda brincava no restaurante do pai, no dia em que, pela primeira vez, matou uma galinha cortando-lhe o pescoço. 
Não sei se fiquei sugestionado com esta história da nova receita. Mas imaginei logo cabeças decapitadas, e lembrei-me, entretanto, de uma afirmação da mamã quando falou em empanturrar as pessoas com a receita de Maria Madalena. Era, segundo disse, para algumas cabeças irem saciadas para o outro mundo….
Na série de coincidências em que tantos livros andam envolvidos, pelos vistos foi já uma premonição do cozinheiro inventar o novo prato ainda tão jovem, mantendo-o virgem para o poder cozinhar num dia de apocalipse doméstico e num sítio tão remoto como esta terra. Levando as coisas mais longe, só o facto de ter sido construído este solar nesta aldeia, faz pensar na mão do destino como a grande impulsionadora de fantásticos acontecimentos futuros e próximos. Não deve ser por acaso que o meu lar se poderá vir a transformar no palco de revelações que abalarão o mundo de Cristo, incluindo também o quintal literário de um pequeno burgo como Portugal.
No meio de tudo isto, com tanto sangue à vista, penso se a mamã não terá perdido a razão, ela que quis economizar em mortes num momento, para as esbanjar noutro e quando tiver os parodiantes à frente para os poder aniquilar com a verdade. Não será apenas uma vingança fria, mas um autêntico icebergue, que cairá no prato de cada um dos visados. Mas, quem sou eu para discutir isto e outras coisas? Tenho de limitar-me à condição de personagem e mais nada. Quanto às novas batatas do Jamie, a origem do nome só pode advir do facto de elas, antes de serem cozinhadas, serem guilhotinadas com um instrumento que o Olivier montou na cozinha. E também não quero saber pormenores…
A mamã, julgo, não irá usar a Jurema desta vez… Quanto mais não seja para não desbaratar a fama do inglês, nem provocar alterações de personalidade às cinco ou seis dezenas de personagens convidadas para a reunião, sendo uma delas tão ilustre como Mel Gibson.
Os autores do livro do meio só no último momento confirmaram a presença. Isso não provocou embaraço algum. Toda a gente contava com uma resposta negativa. A grande admiração foi eles aceitarem. Embora tenha as minhas dúvidas de que Clara não tenha exercido sobre eles alguma coacção psicológica e, porque não, chantagem?
Apesar de o solar ser grande, não tem uma sala com condições para acomodar tantas personagens e, além de tudo, de natureza tão diversa. Por isso, com algum alívio, vimos o Olivier montar uma grande tenda numa das alas do jardim, naquela que vai até aos plátanos da quinta, mais ao fundo. Não se esqueceu de nenhum pormenor: comedouros e bebedouros para os cavalos, aquários para os peixes, gaiolas de diversos tamanhos para as aves, enfim, nada ficou ao acaso, confirmando-se o grande estratega que Olivier é quando tem de dar de comer a muitas criaturas, sejam embora difíceis os dentes de uns e de outros.
Eu, como o único a quem a autora não conseguiu fazer provar da Jurema, seguindo o esoterismo de Sara e depois de me ter apercebido de que as personagens são sempre as mesmas, tratei de ordenar os lugares segundo as nossas conveniências para não haver problemas. Umas vezes era Clara quem entrava em cena, outras era a doidivanas da Lilicas. Já noutros momentos era a doçura da minha mulher, aquela que queria morrer nos meus braços derretida como manteiga, nas horas em que nos dedicávamos ao ato bíblico da criação, embora ela, por ser já um bocado velha, só possa vir a ser mãe adotiva. Por isso deixámos bastantes lugares vazios à mesa. Se alguma personagem se transviar noutra, é necessário que ocupe a cadeira respetiva, de preferência bem longe de uma outra personagem a arrogar-se o direito de ser quem a outra disser que é. Sempre orientado por Olivier, mandei colocar três mesas na tenda. Duas delas, redondas, ficaram nos topos de uma rectangular bastante comprida. E, atendendo aos papéis principais e à precedência dos livros, tive de sentar o César numa das mesas circulares, tendo reservado o seu lado esquerdo para Mel Gibson. À direita de César é o meu lugar de anjo, seguido da Sara e da Clara. Tendo as duas um feitio semelhante, e querendo ambas morrer de amor nos meus braços, se, por azar, acontecer de novo um episódio de transmutação de personalidades, não andarão à pancada uma com a outra.
Já Lilicas vai ficar na mesa comprida, entre a cadeira do Pombo-Correio e a do Professor,  e, quanto ao Mestre de Línguas Mortas, ficou à esquerda do Mel Gibson, não muito chegado. Até porque tive o cuidado de deixar um bocado de espaço livre da mesa para o realizador da Paixão de Cristo colocar o dicionário de aramaico, bem como qualquer outra documentação vinda de Israel. Principalmente de Belém e de Nazaré. As atenções aqui vão para os Recolectores Ambidestros de Infusões Venenos e Antídotos (RAIVA) de que o Professor é o representante máximo. O homem, além de se centrar a sua pesquisa nos evangelhos apócrifos acerca da infância de Jesus, tem também um pé nos escritos gnósticos. Segundo alguns, deve andar por lá perdida a chave para descobrir o grande elixir, para muitos o verdadeiro Santo Graal da Humanidade. Foi à conclusão a que ele chegou, depois do delírio com a chupeta e no meio de uma visão meio amalucada no dia do seu rapto pelas Placas Tectónicas do Novo Mundo e depois da delação do Gordo, o velho apaixonado da Sara, quando também este experimentou o efeito alucinogénio da Jurema mudando de barricada. O Antiquário, esse coloquei-o no outro lado da mesa comprida, separando-o do Gordo e da Doutorinha pelo Porta-Chaves, apesar de, quanto a este, ser de esperar que, para além do exercício da sua actividade de polícia, durante o jantar não tire os olhos de Lilicas.
Já aos autores dos livros, abanquei-os na segunda mesa redonda, por ordem alfabética, ficando a nossa querida mamã, a par com um outro M dos autores do livro do meio, juntamente com a Dona Tita Lívia.
A mamã prometeu-me que não iria arrancar os olhos a ninguém, e eu não tenho razões para desconfiar da sanidade dos seus carretos. Não se deve passar deles desta vez. Depois, os criadores precisam de ficar entre pares,  para trocarem impressões acerca dos seus livros,  e para dedilharem entre si aquela linguagem de metáforas e hipérboles que usam para dizer em muitas palavras o que poderia ser dito em duas ou três. As restantes personagens, sentei-as, ou melhor, reservei-lhes o lugar, mais ou menos segundo as afinidades, línguas e gostos. Apesar de o argentino, membro das Placas, perceber perfeitamente, tanto quanto julgo, o português, até pelos encontros sistemáticos que tem com o chefe luso da organização, o Antiquário. Os cavalos, as aves e os peixes ficaram um bocado mais abaixo, como não podia deixar de ser. Era para não incomodarem muito com as relinchadelas e as grasnadelas, embora os peixes sejam mudos.
O jantar começou com o atraso de meia hora. Os autores do livro do meio e a Dona Tita Lívia chegaram muito depois da hora combinada. Tinham ido a uma audiência de julgamento, e o juiz atrasou-se na leitura da sentença que, pela cara deles, não lhes foi favorável. Assim, eu e a Sara, enquanto esperávamos, podemos ir juntos dar milho aos pombos, aos patos e às galinhas, sem esquecer os cisnes do lago e as outras avezinhas mais pequenas, que voam livres pela quinta. Lançámos até uns grãos a mais para elas. A festa, além de tudo, pretendia também ser um verdadeiro bodo aos pobres. Houve ração fresca para os cavalos e, se não ficassem satisfeitos com o jantar, no fim sempre podiam ir mondar à dentada a erva, que abunda por aqui, especialmente junto ao rio perto da Igreja de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas.

Continua....
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« Responder #59 em: Outubro 14, 2022, 20:41:18 »

Anuncia-se um jantar e peras.
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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Boa quinta para todos.
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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