Maria Gabriela de Sá
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« em: Setembro 27, 2022, 21:04:20 » |
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A mulher acabava de entrar no gabinete onde se encontravam três pessoas. Era nova, teria os seus trinta anos, e, de imediato, atraiu a atenção dos presentes numa tentativa de descobrirem a origem de um estranho efeito que causara neles. Alta, bem constituÃda, pele clara, cabelos acastanhados, durante a discreta observação de que foi alvo ninguém conseguiu desvendar aquela espécie de mistério que a envolvia. Lugar cuja vocação é, por essência, registar para que conste, a mulher ia respondendo a todas as perguntas que lhe faziam, e, para que houvesse uma ligação mais profunda entre as palavras e os sÃmbolos escritos no papel, era necessário que ela colocasse no fim do depoimento a sua assinatura. Pouco importante à primeira vista, foi a recusa da mesma que permitiu a descoberta do seu “segredoâ€. Não que ela, deliberadamente, o quisesse ocultar, bem pelo contrário. Até aÃ, tinha estado bastante inquieta, como que a querer partilhar, com aquelas três pessoas, a aventura que vivera e que a tornara num ser diferente da maioria. Mas nada disso lhe fora perguntado, por transcender o motivo que a levara à quela instituição. Pelo que, por falta de oportunidade, se limitara a guardar para si e por mais algum tempo a sua história. Finalmente, quando lhe disseram que tinha de assinar, não perdeu a ocasião de contar aquilo que acontecera: não podia assinar, tinha de ter muito cuidado, os olhos não eram seus. Os olhos não eram seus, e agora todos conheciam a causa de tão estranha impressão. Mais à vontade, todas as atenções incidiram então nessa parte do rosto da mulher, os olhos: Eram grandes, castanhos esverdados, ornados de pestanas raras. Não se pode dizer que fossem uns olhos bonitos, se pudesse afirmar-se haver olhos feios. Eram, simplesmente, diferentes e restava pois descobrir a razão de tal diferença. Trabalho difÃcil foi esse, que teve de ser feito mais à custa da sensibilidade do que do entendimento e da razão. A mulher dizia ver normalmente. Mas antes, minada por uma doença grave, estava a ficar quase cega, e os médicos entenderam dever submetê-la a uma intervenção cirúrgica de transplante, esperança a que ela se agarrou com o máximo da sua fé, na tentativa de recuperar um dos mais belos sentidos do corpo humano. Transplantaram-lhe primeiro o esquerdo, o de um homem. Esteve um mês à espera do direito, que lhe foi doado por um jovem de pouco mais de vinte anos, que, para infelicidade dele e sorte dela, havia morrido em consequência de um acidente de viação. Qualquer uma das pessoas ali presentes, não pode impedir o seu espirito de vaguear em múltiplas conjeturas. Uma delas imaginando a vida de cada um daqueles dois homens “generososâ€, cujos olhos continuavam a cumprir a sua função no rosto de outra pessoa. Deviam ter sido olhos lindos, conservavam a sua cor castanho-esverdeada, adivinham-se-lhes riso e lágrimas outrora. Agora, no rosto daquela mulher, captavam de novo o mundo e tudo o que este contem, coisas, formas e cores. Porém, faltava-lhes qualquer coisa, algo indefinÃvel, faltava-lhe talvez essência, brilho. Faltava-lhes, em suma VIDA. A mim pareceu-me que os olhos daqueles dois homens haviam morrido com eles. Diz um velho ditado que os olhos são o espelho da alma e, através daquela mulher, eu, empiricamente, transformei o ditado em lei universal. Era verdade o que ela dissera inicialmente, os olhos não eram dela. O ténue diálogo que se estabeleceu entre todos naquele momento deu como que a entender que lhe faltava a força vital, capaz de demonstrar verdadeira raiva, ódio, a amor e tudo aquilo que os olhos são exÃmios em transmitir. Permaneciam os órgãos e a função, faltava-lhes a essência. Para trás tinham ficado dois seres, duas personalidades, restando algures no seio da famÃlia e dos amigos a sua memória , o registo do seu nomes no civil, exigência de uma sociedade que os individualizará perpetuamente de entre milhões de outras criaturas. Mais nada ficava porque os “verdadeiros†olhos persistiam em acompanhar, numa simbiose perfeita, o espÃrito de quem primeiro os animara e enchera de luz. A emoção que o caso suscitou em todos os presentes não se quedou, porém e apesar de tudo, tanto pela compreensão do sentido das coisas numa estreita referencia aos mortos, mas sobretudo por uma particular ligação à vida, à vida daquela mulher. Pelos dois órgãos transplantados adquiriu ela uma nova dimensão. Por obra do acaso, ela tornou-se no veÃculo através do qual os mortos prolongaram a própria vida, que o tempo colhera demasiado cedo. Sem dúvida, a mulher deveria ser-lhes eternamente grata, pois como guardiã de tão precioso bem, cuidava religiosa e fielmente dos olhos, que não eram nem nunca seriam dela, apesar de ter deles uso exclusivo até ao fim. Milagres da Medicina, boa vontade dos Homens, alegria daqueles cuja sensibilidade lhes permite entender que retirar órgãos aos mortos para fins terapêuticos, além de não ser um ato de respeito pela Morte, é simultaneamente um Hino à Vida Crónica publicada na Revista de Investigação Criminal da PJ em ano e mês de que já não tenho memória, meados dos anos oitenta.
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